• CNDM, uma visão histórica

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11 de abril de 2024 por 

Schuma Schumaher

Tentando evitar o saudosismo, tarefa quase impossível para quem participou do grupo que fundou o Conselho de São Paulo, acompanhou de perto a criação do CNDM e fez parte de sua equipe na primeira gestão, traçarei um brevíssimo panorama histórico desse mecanismo institucional.

Foi num contexto de crise da democracia, mas também de construção de novos modelos sociais que ressurge o feminismo organizado no início da década de 70, também chamada de a segunda onda feminista.
As mulheres que faziam parte desses grupos, vinda quase na sua totalidade dos agrupamentos de esquerda, debatiam-se com inúmeras questões: feminismo ou movimento de mulheres? luta geral ou luta específica? defender quem? Todas ou as mais oprimidas? Quem era o inimigo principal:o homem, a sociedade ou o capitalismo? Seremos todas irmãs na luta pela igualdade?

A confluência dessas idéias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares e aquelas que priorizavam os partidos políticos, não se dá sem conflitos. A segunda metade dos anos 70 foi em boa parte consumida por essa discussão, imprescindível, para chegar na próxima década com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo País. Despidas de suas diferenças, encontram na defesa da autonomia do movimento, as suas semelhanças. Autonomia essa, experimentada de maneira distinta. Autonomia com relação aos homens (poucas), autonomia com relação aos partidos políticos (muitas) e autonomia com relação ao Estado (todas). Estando o País mergulhado numa ditadura, não era difícil.

Em 1982, quando a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, com a convocação de eleições diretas para governadores um grupo de feministas paulistas propõe a criação de um órgão específico, responsável pela defesa da cidadania feminina e implementação de políticas públicas para as mulheres na estrutura do estado. Assim nasce em 1993 os 2 primeiros Conselhos Estaduais do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais.

É importante ressaltar que a escolha desse modelo de órgão, cuja proposta original era de composição pluralista suprapartidário, foi torpedeada por parcela significativa do movimento de mulheres. Havia as que se recusavam participar de qualquer organismo governamental por temerem a descaracterização de suas reivindicações por parte do Estado, perda de autonomia do movimento e outros que por questão mais partidárias que feministas se mantiveram distante.

Essas experiências regionais repercutem nacionalmente e em 1984, um dos encaminhamentos aprovado no Seminário Mulher e Política, realizado, em São Paulo, é propor ao governo federal a criação de um órgão nacional de defesa das mulheres.
A articulação política necessária para tal propósito, tendo à frente a Deputada Ruth Escobar (Coordenadora do Seminário), tem início nos bastidores do Planalto Central, que naquele momento se dava no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, num encontro histórico com o Governador Tancredo Neves, futuro presidente eleito pelo Colégio Eleitoral.

Temores e comentários se espalharam pelo movimento de mulheres, passando por questões que iam desde a polêmica participação num governo não legitimado pelo voto direto, pouca discussão entre os grupos de mulheres e composição do referido organismo; um provável colegiado de “notáveis”.
Já com os ânimos mais acalmados, em agosto de 1985, é criado, por Lei, o CNDM com a finalidade de “promover em âmbito nacional, políticas que visem eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País”.

O CNDM nasce vinculado ao Ministério da Justiça, com autonomia administrativa e financeira e sua estrutura é composta por uma Conselho Deliberativo, Assessoria Técnica e Secretaria Executiva. Na mesma Lei é criado o Fundo Especial de Direitos da Mulher para onde serão enviados os recursos orçamentários e extra-orçamentários.

A primeira presidente, escolhida dentre as conselheiras, foi a Deputada Ruth Escobar(que se licenciou do seu mandato) e depois a socióloga e militante feminista Jacqueline Pitanguy. O corpo técnico era composto, na sua expressiva maioria, por feministas autônomas vindas de diversas regiões do país e trazendo na bagagem não só o pioneirismo mas, sobretudo, o grande desafio de abrir espaço na estrutura política do governo, ser um canal de interlocução com os movimentos de mulheres, além da formulação e monitoramento de políticas públicas.

Nessa primeira gestão, que vai de 1985/1989 o Conselho apostou em diferentes frentes e muitas foram as ações desenvolvidas. Investiu nas áreas de saúde, educação, trabalho (rural e urbano) violência, combate ao racismo, através do programa Mulher Negra, políticas de creche, legislação, etc.

O perfil do CNDM foi marcado pela dualidade de sua atuação (um voltado para o Estado e outro para os movimentos de mulheres). O maior exemplo deste aspecto foi a campanha “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. Contra os interesses do Governo(do qual fazia parte) se manteve firme na defesa das propostas feministas contidas na Carta das Mulheres aos Constituintes, como licença-maternidade de 120 dias e a legalização do aborto.
Investiu numa grande campanha publicitária e acompanhou de perto o trabalho das comissões, mantendo um canal permanente com as mulheres nos estados, estimulando um verdadeiro lobby nacional, o lobby do batom, como ficou conhecido.

Analisando sua curta trajetória, pode-se dizer que a atuação do CNDM, nesse primeiro período, esteve muito mais voltada para a articulação com os movimentos de mulheres do que com o próprio Governo. Teve mérito de não haver jamais atuado partidariamente ou de ter se transformado em cabide de empregos. Tampouco foi “maternalista”, na medida em que sempre devolveu aos grupos de mulheres a responsabilidade de pensar suas alternativas e encaminhamentos.

Vítima do sucesso, não foi capaz de garantir sua permanência, nos moldes originais, dentro do aparelho estatal. Em janeiro de 1989, o Ministro da Justiça Oscar Dias Corrêa, faz uma declaração na imprensa de que o CNDM já havia cumprido sua função, pois havia conquistado 80% das reivindicações na nova Constituição Brasileira e deveria passar por um enxugamento proporcional e ser transformado em apenas um órgão deliberativo.
Ao cortejo das ações visando minar a atuação do órgão, em julho do mesmo ano, mais uma medida arbitrária surpreende as integrantes do Conselho e o movimento de mulheres com a nomeação de 12 novas conselheiras, sem identidade com o movimento de mulheres, provocando a renúncia coletiva da equipe técnica e conselheiras.

Com a credibilidade abalada e para completar o estrago causado, logo em seguida, na “Era Collor”, uma Medida Provisória, n° 150 de 15/08/1990, acaba com sua autonomia administrativa e financeira.

Em 1994, impulsionado pelo Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos, uma nova proposta foi apresentada aos candidatos à Presidência da República – tratava-se da criação do Programa para Igualdade e Direitos da Mulher alocado na Casa Civil da Presidência da República, cuja estrutura contaria com um Conselho Deliberativo e uma Secretaria Especial.

Com a posse de Fernando Henrique Cardoso em 1995, contrariamente ao esperado, o novo Governo reativou o CNDM sem estrutura administrativa, sem orçamento próprio e, usando de suas prerrogativas, decidiu sobre a composição do colegiado e nomeou a nova presidente sem consulta formal aos movimentos organizados de mulheres. A presidente Rosiska Darcy de Oliveira e as conselheiras assumiram os seus cargos com o compromisso de realizar as mudanças consideradas necessárias no interior desse mecanismo.
Com o objetivo de implementar a plataforma de ação, resultante da IV Conferência Mundial sobre a Mulher firmou uma série de protocolos de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e elaborou com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais as estratégias para a igualdade.

Em 1997, durante a reforma administrativa do Estado, apesar de ter alcançado uma maior visibilidade nos meios de comunicação e implemento uma série de ações como por exemplo, o Programa Nacional de Promoção da Igualdade e Oportunidade na função pública, desenvolvido em parceria com o Ministério da Administração; o CNDM foi rebaixado dentro da hierarquia do Ministério da Justiça.

Considerado um mecanismo institucional frágil e desproporcional, a sua missão política, em 1999, mais uma vez, as articulações e redes nacionais se mobilizam para pressionar o governo com intuito de abrir o debate sobre a reformulação desse organismo. Nesse mesmo ano, uma nova presidente, Solange Bentes, e colegiado tomam posse. Em 2002, no último ano deste mandato, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher subordinada ao Ministério da Justiça. Sua competência e estrutura não foram definidas pela lei que o instituiu.
Não podemos esquecer que qualquer avaliação sobre os caminhos e descaminhos do CNDM deve-se levar em consideração a conjuntura política do governo do qual ele fez parte. Se por um lado, a criação dos conselhos trouxe e traz para o cenário nacional o debate público sobre os direitos das mulheres e a questão da igualdade, por outro, seu poder de intervenção efetiva mostrou não dar conta de permear a estrutura do Estado para a implantação de políticas mais permanentes.


Em 2003, ano que completa sua maioridade, estamos aqui para com as experiências do passado e possibilidades do presente, confiança no processo e retomada de interlocução com os movimentos de mulheres, repensar seu papel e conquistar seu devido espaço.

Brasília, maio de 2003. Publicado pela SPM