Joanna Burigo
Publicado originalmente em Carta Capital – 2 de junho de 2016. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-cultura-do-estupro/
“Uma rosa, por qualquer outro nome, teria o aroma igualmente doce”. Este trecho de Romeu e Julieta, a peça mais famosa de William Shakespeare, é frequentemente referenciado em artigos e debates sobre o peso e a volatilidade da linguagem. Na cena onde esta fala se dá, Julieta – uma Capuleto – argumenta que não importa que Romeu seja um Montéquio, família arqui-inimiga da sua, pois o amor que sente é pelo rapaz, e não por seu nome. A beleza desta citação é o que ela implica: os nomes que damos às coisas não necessariamente afetam o que as coisas realmente são. “Estupro, por qualquer outro nome, seria uma ação igualmente violenta.” Seria. Mas ao contrário das rosas – que reconhecemos como rosas, por isso chamamos de rosas – relutamos em sequer reconhecer quando um estupro é estupro para poder então chamá-lo de estupro.
Até o texto da Wikipédia em português dá uma indicação do quão problemático é determinar o que é ou não estupro, visto que o direito penal sexual é uma complexa ramificação do direito penal, influenciada por pautas da moral e dos bons costumes, o que tumultua a conceituação. Para compreendê-lo, é necessário explorar a formação do código penal, criação de leis, normas e regulamentos, e as modificações trazidas por evoluções e involuções sociais. O Estupro pode ser entendido como qualquer prática não consensual do sexo que seja imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Não acho exagero considerar que qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração, configura estupro. E se aceitarmos que esta é a definição de estupro, quantas já sofremos um, e quantos já cometeram um? Garanto que muita gente.
Consentimento é um conceito-chave para compreendermos e admitirmos que existe uma diferença entre sexo e estupro. Sexo é consensual, e se for adiante sem consentimento, deixa de ser sexo e passa a ser estupro. A pessoa pode estar embriagada, vestida de forma sensual, pode já ter indicado querer sexo, pode estar nua e na cama e até mesmo já ter iniciado o sexo. No momento que ela declara não querer sexo, ou querer interromper o sexo, a ação deve parar. (E vale ressaltar que a ação não deve nem começar se a pessoa não estiver em condições de dizer sim…). Precisamos levar a sério a asserção de que qualquer ato sexual que ocorre sem o consentimento de uma das partes envolvidas é um estupro. Apenas o sexo praticado com o consentimento das partes envolvidas pode ser chamado de sexo. O ato sexual praticado sem consentimento não é sexo: é violência. É estupro. Não pode ser tão difícil que concordemos a este respeito.
Ainda que a prática vitime homens e mulheres, historicamente as mulheres são as mais atingidas. A permanência deste padrão é garantida pelo que chamamos de cultura do estupro. A violência contra a mulher é concreta, sistemática, e balizada por números reais e dados científicos que são publicados por organizações competentes e sérias. O feminismo se ocupa, dentre outras coisas, de revelar esta violência com o intuito de reduzi-la – extingui-la. Que gastemos tempo disputando quais narrativas que articulam como a luta feminista contra a violência são mais ou menos eficazes é compreensível. Mas é uma perda total de tempo e energia disputar a realidade que fomenta estas narrativas. Nossa realidade é a desigualdade, e tornar visível a ameaça constante da violência que mantém essa desigualdade (violência cujas manifestações mais agudas são o estupro e o feminicídio), é o que faz o feminismo. Não deveríamos desperdiçar nenhum segundo evidenciando o que já está provado, mas infelizmente ainda precisamos fazer isso. É preciso que a sociedade passe a acreditar no que dizem as mulheres, e é urgente pararmos de disputar se estupro é ou não estupro. É sexo sem consentimento? É estupro.
A cultura do estupro é a cultura que normaliza a violência sexual. As pessoas não são ensinadas a não estuprar, mas sim ensinadas a não serem estupradas. Cultura do estupro é duvidar da vítima quando ela relata uma violência sexual. É relativizar a violência por causa do passado da vítima ou de sua vida sexual. É ser mais fácil acreditarmos em narrativas de uma suposta malícia inerente das mulheres do que lidarmos com o fato de que homens cometem um estupro. A cultura do estupro é visível nas imagens publicitárias que objetificam o corpo da mulher. Nos livros, filmes, novelas e seriados que romantizam o perseguidor. No momento que acatamos como normal recomendar às meninas e mulheres que não saiam de casa à noite, ou sozinhas, ou que usem roupas recatadas. Todas estas ações revelam o que chamamos de cultura de estupro porque todas normalizam que a responsabilidade pelo estupro é da vítima. Não é. O protagonista do estupro é o estuprador.
A cultura do estupro é machista, e o machismo cria e mantém a cultura do estupro. É machismo partir do pressuposto de que o que uma mulher revela sobre estupro é invenção. É machismo duvidar das mulheres por partir do pressuposto que uma declaração sobre estupro é falsa. Na cultura machista que sustenta a cultura do estupro, a voz das mulheres é tomada como dissimulação. Na cultura machista as mulheres são malignas (olá Eva, bruxas e súcubos do imaginário coletivo), e os homens são eternas vítimas de nossas calúnias. Mas os números não mentem, e se a manutenção da lógica machista depende da fantasia, o feminismo aponta para a realidade.
Você conhece um estuprador? Eu conheço pelo menos três. Moços “de bem”, de família, que chegaram a frequentar a minha casa e que, por causa da cultura do estupro, acharam que fazer sexo em (não com – “em”) três amigas minhas enquanto elas dormiam porque estavam embriagadas era aceitável. Elas estavam bêbadas. Elas estavam de roupas curtas. Mas elas definitivamente não estavam pedindo. Acreditar que elas estavam pedindo sexo por estarem alcoolizadas ou vestidas de um ou outro jeito é sucumbir à cultura do estupro.
Cultura de estupro é assunto de todos. Estupro é uma violência, e uma violação grave dos direitos humanos que atinge mulheres desproporcionalmente. Precisamos falar sobre cultura de estupro. Precisamos falar sobre machismo. Precisamos falar sobre misoginia. Precisamos falar sobre cultura patriarcal. Estas coisas estão conectadas. E precisamos falar sobre elas. O feminismo existe como movimento organizado, em grande parte, porque a voz das mulheres e as nossas falas são tão desvalorizadas socialmente que é preciso coletivamente darmos conta de articular a realidade de forma convincente para uma sociedade propensa a não acreditar em nós.
Precisar explicar que qualquer ato sexual que acontece sem consentimento é estupro, ad infinitum, é evidência da permanência da cultura do estupro. É exaustivo disputar a realidade com quem não quer enxergá-la porque não é diretamente afetado por ela. Por isso precisamos revelar que existe, sim, uma cultura que normaliza o estupro e a violência contra as mulheres. Falar é uma ação, denunciar o machismo é uma ação, revelar a misoginia é uma ação. Pois falemos, então, com a linguagem adequada. A cultura do estupro existe e é visível, e sexo sem consentimento é estupro, ainda que alguns relutem em admitir isso. Uma rosa, por qualquer outro nome…
Palavras-chave: estupro, consentimento, Shakespeare