Psicanalista, educadora sanitária, socióloga e professora.
Virgínia Leone Bicudo é uma das mais importantes intelectuais brasileiras para o desenvolvimento da psicanálise no Brasil. Participou do pioneiro grupo de psicanalistas responsável pela formação da Sociedade Brasileira de Psicanálise, secção São Paulo. Nasceu em São Paulo, no dia 21 de novembro de 1910, filha de Theófilo Júlio Bicudo, homem negro nascido com a condição legal de liberdade apenas em virtude da Lei do Ventre Livre, e Giovanna Leone, imigrante italiana. Virgínia Bicudo deixou um legado acadêmico e institucional ímpar.
A Sociologia estava se institucionalizando no Brasil quando Virgínia completou sua graduação. Similarmente, a prática psicanalítica estava se iniciando no Brasil quando Virgínia havia se formado. Virgínia destacou-se por conduzir um estudo abrangente sobre as relações sociais em São Paulo, integrando sociologia, antropologia e psicologia social. Sua pesquisa aborda a mobilidade social e o preconceito racial como aspectos significativos na dinâmica da cidade. Além disso, seu trabalho é visto como pioneiro na interseccionalidade, ao sugerir que as dinâmicas raciais no Brasil estão interligadas com questões de gênero e classe.
Foi a primeira mulher negra a produzir trabalhos acadêmicos em ciências sociais no Brasil. Sua dissertação de conclusão de curso foi particularmente inovadora, pois combinou análises de classe, gênero e cor, marcando um avanço significativo na abordagem dessas temáticas. Trata-se da obra Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, apresentado à divisão de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo em 1945, com orientação de Donald Pierson. À época, Virgínia era professora assistente de Psicanálise e Higiene Mental.
Em relação à expansão da psicanálise no Brasil proporcionada por Virgínia, ao lado de seus colegas, Carlos Cesar revela que a intelectual liderou um programa de rádio em São Paulo na década de 1950. Virgínia também escreveu uma série de artigos semanais em jornal de grande circulação, bem como editou o livro Nosso mundo mental, de 1956, reunindo diversos artigos.
Virgínia Bicudo utilizava meios de comunicação de massa para disseminar conhecimentos psicanalíticos, oferecendo orientações sobre educação infantil e lidando com questões emocionais do dia a dia. Seu trabalho extrapolava a mera aplicação de teorias psicanalíticas europeias, adaptando-as às necessidades da população brasileira. Entre 1955 e 1960, já como analista, Bicudo morou em Londres, onde realizou uma nova análise e participou de atividades na Clínica Tavistock e no Instituto de Psicanálise de Londres. Ela teve contato próximo com o grupo kleiniano, incluindo figuras como Bion e Melanie Klein, e foi influenciada pelas Controvérsias e pelo Grupo de Bloomsbury. Em Londres e em São Paulo, Bicudo estava inserida em ambientes multiculturais críticos ao funcionamento de suas sociedades, os quais tiveram impacto profundo em áreas como artes plásticas, literatura, psicanálise, economia e política.
Virgínia iniciou um novo ciclo em sua vida após retornar de Londres, divulgando ideias kleinianas e bionianas. A pesquisadora também estruturou e dirigiu o Instituto da SBPSP, promoveu o lançamento do Jornal e Psicanálise em 1966, incentivou o relançamento da Revista Brasileira de Psicanálise em 1967 e incluiu a formação de analistas de crianças e adolescentes no Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP.
Em 1970, no Distrito Federal, Virgínia iniciou a formação da primeira turma de candidatos de Brasília, que futuramente origina a Sociedade de Psicanálise de Brasília, mais um de seus legados institucionais. Foi responsável pela criação da revista Alter, lançada em outubro de 1970, publicação que até hoje veicula produções dos membros e candidatos da SBPSP e da comunidade psicanalítica. Enquanto diretora do Instituto, postulou que algumas áreas do conhecimento deveriam estar presentes na formação dos psicanalistas.
Sobre sua estada em Londres, Carlos Cesar Marques Frausino em Virgínia Bicudo: Um capítulo da história da psicanálise brasileira reflete: “Se nos anos 20, Virgínia Bicudo esteve envolvida, indiretamente, na eclosão e nos ecos do movimento modernista em São Paulo, em Londres, no final dos anos 50, encontra as repercussões das controvérsias na Sociedade Britânica e do Grupo de Bloomsbury, que, no primeiro terço do século passado, reunia os nomes da vanguarda das artes inglesas, alguns desses com estreitos vínculos com o movimento psicanalítico e com críticas à era vitoriana. Em Londres e em São Paulo, Virginia esteve imersa em um clima cultural de transformações, fruto de uma concentração de pensadores da cultura que apontavam para novos vértices de reflexão sobre a dinâmica societária e a psicanálise.” Neste artigo, o autor também relembra que Virginia frequentou cursos com John Bowlby, assistiu seminários com Klein, dentre outros intelectuais, no Instituto de Psicanálise da Sociedade Britânica, e fez curso de observação de bebês e supervisões de análise de crianças com Esther Bick. Este último curso, inclusive, teria estimulado a inclusão da formação de analistas de crianças, com colaboração de Lygia Alcântara do Amaral, Frank Philips e Izelinda de Barros, no curso de formação do Instituto de São Paulo, desenvolvido nos anos 1970 e institucionalizado em 1981.
Virgínia Bicudo se destacou como uma prolífica autora na área da psicanálise, com artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Ela destacou-se como a primeira integrante da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) a publicar um artigo no International Journal of Psychoanalysis, alcançando esse feito em 1964. Apesar de sua vasta produção acadêmica, ainda falta uma sistematização precisa de seus trabalhos, o que representa um desafio pendente para os estudiosos do desenvolvimento da psicanálise no Brasil.
Virgínia Bicudo também se concentrou sobre estudos relacionados à criança, à família e à escola, compreendendo que o preconceito é aprendido e ensinado. A exemplo, apresentamos trecho da obra A Patologia do Branco Brasileiro, citado por Janaína Gomes: “concluímos que um dos meios mais indicados para o melhor estabelecimento das relações raciais consiste em ajudar a criança a estabelecer os laços afetivos com pais e irmãos com base no amor, ou, em outras palavras, ajudar a criança a desenvolver a capacidade de amar e usar a sua agressividade em sentido construtivo.”
Virgínia faleceu em 2003, aos 93 anos. Felizmente, apesar do apagamento de suas contribuições, é possível localizarmos algumas páginas compartilhando a sua trajetória. A exemplo, mencionamos o texto Virgínia Leone Bicudo, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC. A Sociedade Brasileira de Sociologia também publicou a bionota intitulada Virgínia Leone Bicudo, enquanto a MultiRio fez a reportagem Virgínia Leone Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais. Por fim, destacamos a reportagem Virgínia Leone Bicudo: quem foi a psicanalista negra pioneira homenageada pelo Google, informando que Virgínia foi a primeira não-médica a ser reconhecida como psicanalista. Em seu aniversário de 112 anos, em 21 de novembro de 2022, o Google homenageou a pensadora na página principal do buscador, através do Doodle (versão especial do logotipo do Google para comemorar feriados, aniversários e eventos).
Texto Adaptado do livro Mulheres Negras do Brasil por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #racismo #classismo #antirracismo #lutadeclasse #psicanálise #infancia #preconceito #sociologia #higienemental #psicanalistanegra
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
FRAUSINO, Carlos Cesar Marques. Um olhar sobre Virgínia Leone Bicudo. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 54, n. 3, 227-236: São Paulo, 2020. Disponível em: v54n3a17.pdf (bvsalud.org). Acesso em 10 dez 2022.
FRAUSINO, Carlos Cesar Marques. Virgínia Leone Bicudo: Um capítulo da história da psicanálise brasileira. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 54, n. 3, 227-236: São Paulo, 2020. Disponível em: v54n3a17.pdf (bvsalud.org). Acesso em 10 dez 2022.
GOMES, Janaína Damaceno. Os Segredos de Virgínia: Estudo de Atitudes Raciais em São Paulo (1945-1955). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social: São Paulo, 2013. Disponível em: 2013_JanainaDamacenoGomes.pdf (usp.br). Acesso em 10 dez 2022.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRASIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Senac Editora: Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: Mulheres Negras do Brasil 9788574582252 – DOKUMEN.PUB. Acesso em 08 dez 2022.
TEPERMAN, Maria Helena Indig; KNOPF, Sonia. Virgínia Bicudo – uma história da psicanálise brasileira. Jornal de Psicanálise 44(80), 65-77: São Paulo, 2011. Disponível em: *jp 44-80.pdf (bvsalud.org). Acesso em 10 dez 2022.
- Sites:
BBC News Brasil. Virgínia Leone Bicudo: quem foi a psicanalista negra pioneira homenageada pelo Google. 21 de novembro de 2022. Disponível em: Virgínia Leone Bicudo: quem foi a psicanalista negra pioneira homenageada pelo Google – BBC News Brasil. Acesso em 10 dez 2022.
FERNANDES, Fernanda. Virgínia Leone Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais. MultiRio: Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2020. Disponível em: Virgínia Leone Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais (rio.rj.gov.br). Acesso em 10 dez 2022.
MAIO, Marcos Chor. Virgínia Leone Bicudo. Sociedade Brasileira de Sociologia, Bionotas. Disponível em: Virgínia Leone Bicudo – Sociedade Brasileira de Sociologia (sbsociologia.com.br). Acesso em 10 dez 2022.
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC. Virgínia Leone Bicudo. Disponível em: Virgínia Leone Bicudo – SBMFC. Acesso em 10 dez 2022.
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