Liderança do movimento lésbico feminista
Rosely Roth nasceu em 21 de agosto de 1959, parte de tradicional família judia de São Paulo. Foi uma das mais célebres ativistas pelos direitos das mulheres lésbicas da história do Brasil. Tal é observável através de suas 2 aparições no programa da apresentadora Hebe, em 1985 e 1986, bem como através de sua vida acadêmica.
Rosely diplomou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1981 e cursou pós-graduação em Antropologia também na PUC-SP, entre 1985 e 1987, concluindo com as teses “Vivências Lésbicas – Investigação acerca das vivências e estilo de vida das mulheres lésbicas a partir da análise do funcionamento dos bares frequentados predominantemente por elas” e “Mulheres e Sexualidades”.
Rosely contribuiu com os grupos Lésbico-Feminista/LF e SOS Mulher, participando de formar diversas no ecossistema ativista dos anos 1980. Em outubro de 1981 fundou com Miriam Martinho o Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF) com o propósito de dar continuidade na luta pelos direitos das mulheres lésbicas.
Em 25 de maio de 1985, Rosely Roth participou do programa da Hebe, exibido ao vivo na TV Bandeirante, um programa de grande audiência em rede nacional. Rosely foi convidada para discutir um tema que ainda era tabu e, através do programa, conseguiu tornar o GALF conhecido nacionalmente. Durante sua participação, ela divulgou duas vezes a Caixa Postal do grupo e mostrou o boletim ChanaComChana.
Uma das participantes desse debate foi a mãe de uma lésbica, que longamente expôs sua homofobia contra as lésbicas, dando a Rosely a oportunidade de debater com ela. Marisa Fernandes (2014) reforça que a repercussão da participação de Rosely no Programa da Hebe foi significativa, a ponto de atrair a repressão da ditadura, destacando a coragem e a importância de seu ativismo em um período de intensa opressão.
Como parte do GALF, destaca-se a criação a produção do que se tornaria um famoso jornal ChanacomChana. Além disso, Rosely escreveu os seguintes textos para a fanzine: Depoimento Pessoal, de 1983, Autonomia, de 1983, Desarmamento Nuclear, de 1984, Família, de 1985, Lésbicas X Censura, de 1985, Homossexualidade na Constituinte, de 1985, Homossexualidade nas Leis, de 1986, VIII Encontro Nacional Feminista, de 1986, Balanço das Eleições, e no periódico Um Outro Olhar 1: VERA, de 1987, e O Lesbianismo enquanto Postura Política.
Segundo Miriam Martinho, Rosely produziu e não publicou trabalhos com os seguintes títulos: A constituição da identidade de um grupo de mulheres lésbicas-feministas, A identidade da mulher, Papéis de gênero e a questão das identidades, Contribuições de Lévi-Strauss e de Pierre Castres para se pensar a questão dos papéis de gênero, e Vivências lésbicas (tese sobre vivências lésbicas em bares e boates).
A relevância do debate público proposto por Rosely e suas companheiras também é digna de nota. Conforme ensina Julia Aleksandra Martucci Kumpera em Resistências lésbicas à ditadura militar no Brasil: imprensa, ativismo e a redemocratização, o texto Homossexualidade nas Leis, componente da 10ª edição da publicação ChanaComChana, juntamente com o Grupo Gay da Bahia e o Triângulo Rosa do Rio de Janeiro, defendeu a inclusão de um parágrafo no artigo 153 da Constituição Federal de 1969 com a redação: “contra a discriminação por preferência ou orientação sexual”. O caput do artigo dispunha: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Júlia explica que, graças à campanha promovida por esses grupos, pela primeira vez os temas referentes à homossexualidade foram debatidos no Congresso Nacional. Embora a proposta não tenha sido aprovada, tratou-se de um acontecimento inédito de grande importância na época.
Júlia também menciona que Rosely analisou o impacto das leis brasileiras na vida de mulheres lésbicas e homens gays. Por exemplo, em relação ao estupro, a lei vigente considerava que este se dava apenas mediante a “conjunção carnal” (penetração), excluindo outras formas de violência sexual, que eram consideradas apenas “atos libidinosos”. Para Rosely, a lei possuía um fundamento patriarcal, pois, como publicou em 1996, na revista ChanaComChana: “A lei do estupro, na minha opinião, visa proteger e assegurar a paternidade, defendendo os direitos de um homem em relação aos abusos de outros sobre a sua propriedade: a mulher. Só assim se explica o porquê da formulação de uma lei que não leva em conta outras formas de abusos sexuais (…). Ao não se pensar na possibilidade dos homens virem a ser estuprados, o direito demonstra ter bastante convicção na eficácia dos papeis de homem e mulher que condicionam os primeiros a serem opressivos, violentos e a identificarem as mulheres como objetos, mercadorias disponíveis, cuja função principal é lhes servir” .
Rosely também tem uma vasta publicação de artigos e outra publicações relevantes, com destaque para: artigo Adotar filhos, desafio para os homossexuais (Folha de São Paulo, 1985), depoimento Desenrusta-se! (Big Men Internacional, 1984), a resenha do livro História e Sexualidade no Brasil, O Sexo do Brasil (Jornal Mulherio, 1987), entrevista Lesbianismo é um estilo de vida mais criativo (Pasquim, 1985), entrevista (Club dos Homens, ano não localizado), artigo Homossexuais disfarçam na hora de adotar (Notícias Populares, 1985), artigo Lesbianismo na TV: polêmica aumenta (Folha de São Paulo, 1986), depoimento sobre a expulsão do GALF pelo grupo Centro Informação Mulher (Cim) – os grupos dividiam a sede no Bairro da Luz, São Paulo – (Jornal da Tarde, 1984), e artigo Só Tabu (Folha da Tarde, 1987).
Em relação a aparições públicas na televisão brasileira, além de ter prestigiado Hebe Camargo para discutir a homossexualidade feminina nos programas de 25.5.1985 e 29.4.1986, Rosely também participou dos seguintes programas da TV Bandeirantes: Em Julgamento (Homossexualismo é Doença? 1986), Programa Blota Júnior (Homossexualidade X Constituinte, 1986). Neste sentido. Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil em Dicionário Mulheres do Brasil nos ensinam sobre o pioneirismo de Rosely: “Sua presença constante, declarando corajosamente sua orientação sexual na mídia, garantiu-lhe dois convites, em 1985 e 1986, para participar dos programas da apresentadora Hebe Camargo, em cadeia nacional, falando aberta e tranquilamente sobre lesbianidade, com grande repercussão na imprensa. Rosely Roth foi pioneira no que se convencionou chamar de ‘política da visibilidade’ na década de 1980, época em que, com raras exceções, ninguém mais o fazia, aliando aparições públicas, geralmente marcantes, a uma fundamentação teórica que lhe permitia ir além do ramerrão vitimista e reformista que muitas vezes caracteriza o discurso e as atividades dos grupos sociais discriminados. Produziu e publicou dezenas de artigos e textos acadêmicos, concedeu inúmeras entrevistas, sempre com enfoque especial para a questão da homossexualidade e seus desdobramentos político e sociocultural”.
Importa descrever a realidade social das mulheres lésbicas na São Paulo dos anos 1980. Júlia nos ensina que as mulheres lésbicas eram vítimas de perseguição policial. O delegado José Wilson Richetti comandou diversas rondas com o objetivo de “limpar a cidade”. Inclusive, a edição de julho de 1980 do jornal Lampião denunciava a perseguição político-ideológica da polícia de São Paulo, a exemplo da Operação Cidade, anunciada em 22 de maio de 1980, resultando em 172 prisões nas 24h de duração da operação. Em 15 de novembro de 1980, passaram a ser alvo da Operação Sapatão, com foco nos principais bares frequentados por lésbicas. Com o argumento de que “é tudo sapatão”, 200 mulheres lésbicas foram detidas na operação.
Dentre os bares alvo das operações da polícia de São Paulo, o Ferro’s foi palco do que foi chamado de “nossa pequena Stonewall”. O nome faz referência ao episódio de resistência civil a violências contra pessoas LGBTQIA+, ocorrido em 28 de junho de 1969, em Nova York, iniciado por outra mulher, Marsha P. Johnson. Ou seja, as mulheres lésbicas militantes foram hostilizadas dentro do Ferro’s em 23 de julho de 1983. Os donos do bar, o segurança e o porteiro teriam bloqueado a entrada de Rosely e outras companheiras que tentavam vender o zine ChanaComChana no interior do estabelecimento, expulsando-as através de gestos e palavras agressivas. Ainda que as mulheres lésbicas sempre tenham frequentado o bar, a lesbofobia teria se tornado mais explícita a partir da intervenção política do espaço. Em resposta à lesbofobia do Ferro’s e em defesa dos direitos daquelas que resistiram à discriminatória expulsão, Rosely Roth, Célia Miliauskas, Elisete Neres, Luiza Granado, Míriam Martinho, Alice de Oliveira, Vanda Frias e outrasativistas integrantes do GALF articularam um protesto, que aconteceu no dia 19 de agosto de 1983, com a presença de organizações e movimentos de mulheres lésbicas, gays, feministas, parlamentares e a imprensa. Mais de uma centena de pessoas estiveram presentes nessa manifestação e testemunharam o contundente discurso feito por Rosely, em cima de uma mesa no interior do estabelecimento.
O protesto foi tão forte que a presença e a venda do folhetim passaram a ser permitida no Ferro’s Bar, desde então. O boletim de número 04 do ChanaComChana, publicado dias depois do protesto, estampa na Capa “19 de agosto: Uma Vitória contra o preconceito”. Vanda Frias comenta numa das reportagens: “As militantes do GALF conversam com o dono e conseguem que ele declare diante delas, da imprensa e de outras companheiras(os), que o grupo poderá divulgar seu boletim dentro do bar sustentado pelas lésbicas. Findo o episódio, Irede Cardoso (vereadora feminista) dá um viva a democracia”. E completa: “Batalhamos na organização do happening do 19 de agosto durante quase um mês, enquanto distribuímos no gueto um panfleto denunciando a atitude do Ferro’s, que não é isolada. Com a reconquista do Ferro’s, buscávamos também lutar pelo legítimo direito de circular livremente em todos os locais”.
A data, que ficou marcada como Dia do Orgulho Lésbico, foi reconhecida pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em 2008, através do Projeto de Lei 496/2007 apresentado pelo deputado Carlos Giannazi (PSOL).
Neste sentido, citamos também Irina Bacchi, que explicita a relevância do evento: “E como recordou Carmen Luiz, o evento do Ferro’s Bar é um marco na história do movimento de lésbicas não só porque teve como protagonismo as lésbicas no enfrentamento ao silêncio e à violência imposta pelo dono do bar, que não aceitava a distribuição da publicação ChanaComChana, mas também pelo fato de ter enfrentado a repressão imposta na época pela polícia paulista sob o comando do Delegado José Wilson Richetti”.
Rosely faleceu em 28 de agosto de 1990, tendo cometido suicídio em função da esquizofrenia, doença que havia começado a se manifestar pouco antes do episódio. Martinho rememora: “Ao final de 1987, durante o IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (19 e 25 de outubro), no México, Rosely passou a apresentar as alterações perceptivas, tanto auditivas quanto visuais, que caracterizam a esquizofrenia, doença que atinge jovens adultos na faixa dos 28 a 30 anos (no caso das mulheres). Fruto de um desequilíbrio químico-cerebral, de provável origem genética, a esquizofrenia, apesar dos avanços nos medicamentos de controle dos surtos, ainda hoje leva mais de 10% de suas vítimas ao suicídio, inclusive porque a acompanham períodos de intensa apatia e depressão. Após 2 anos e meio lutando com a doença, Rosely se suicidou no apartamento de sua namorada, Vera Lúcia S. de Barros, em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de 1990”.
Com base nos ensinamentos de Miriam Martinho, podemos refletir sobre a relevância de lutarmos contra a lesbofobia e a psicofobia, haja vista os sofrimentos que causam às pessoas que são seus alvos. Rosely será sempre lembrada pelo brilho de sua trajetória política, pelo seu incansável dinamismo e pela coerência discursiva.
Em agosto de 2023 foi lançado o filme Ferro’s Bar, roteiro de Aline A. Assis, Fernanda Elias, Nayala Guerra e Rita Quadros que “mostra como as mulheres tornam-se um sujeito político que se ergue contra a censura a um dos maiores periódicos lésbicos da época: o ChanacomChana” e Rosely Roth é uma das protagonistas homenageada nesse documentário.
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Texto Adaptado do verbete contido no Dicionário Mulheres do Brasil por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
REFERÊNCIAS
Produções acadêmicas:
BACCI, Irina Karla. Vozes lésbicas no Brasil: a busca e os sentidos da cidadania LGBT. Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH da Universidade de Brasília – UnB: Brasília, 2016. Disponível em: 2016_IrinaKarlaBacci.pdf (unb.br). Acesso em 22 nov 2022.
KUMPERA, Julia Aleksandra Martucci. Resistências lésbicas à ditadura militar no Brasil: imprensa, ativismo e a redemocratização. XXIV Encontro Estadual da Associação Nacional de História: São Paulo, 2018. Disponível em: XXIV Encontro Regional da ANPUH-São Paulo. Acesso em 22 nov 2022.
MARTINHO, Miriam. 19 de Agosto – Dia do Orgulho Lésbico no Brasil. Apoio da Rede de Informação Um Outro Olhar: São Paulo, 2011. Disponível em: 19deagostolivreto-120828140253-phpapp02.pdf (gay.blog.br)
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
Sites:
Camtra – Casa da Mulher Trabalhadora. Série Visibilidade Lésbica: Rosely Roth. 20 de agosto de 2020. Disponível em: Série Visibilidade Lésbica: Rosely Roth | CAMTRA – Casa da Mulher Trabalhadora. Acesso em 22 nov 2022.
Elza. HOMENAGEM A UMA LÉSBICA: ROSELY ROTH. Blog Backup Fazendo Estrelas: 3 de setembro de 2007. Disponível em: homenagem a uma lésbica: rosely roth – backupfazendoestrelas (sapo.pt). Acesso em 22 nov 2022.
Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Art. 153. Disponível em: Constituição67emc69 (planalto.gov.br). Acesso em 22 nov 2022.
Rede de Informação Um Outro Olhar. 19 de agosto: há 38 anos, o GALF realizava a primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil. 19 de agosto de 2019. Disponível em: 19 de agosto: há 38 anos, o GALF realizava a primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil | Um Outro Olhar. Acesso em 22 nov. 2022.