Considerada a primeira travesti brasileira
Xica Manicongo é a primeira travesti brasileira não-indígena. Sua história revela como a colonialidade institucionalizou o ódio contra pessoas que superam a cisheteronormatividade eurocêntrica. Nascida no Congo, século XVI, foi levada para Salvador (BA), onde, escravizada, trabalhava como sapateira, experienciando a brutal desumanização da colonialidade. Ainda assim, resistiu à opressão contra a sua autoexpressão. Ela usava roupas quimbandas, da região congolesa em que nasceu e cresceu, ou seja, usava um pano amarrado em sua cabeça, com a ponta cingida virada para a frente, tal como as mulheres da sua terra. Enfim, bastou que Xica não aceitasse o nome imposto, Francisco do Congo ou Francisco Manicongo, e usasse roupas que queria, ao invés das roupas “de homem” do colonizador, acusaram-na e julgaram-na culpada pelas práticas de sodomia e de formação de quadrilha de feiticeiros sodomitas. Condenada a ser queimada viva pelo Tribunal do Santo Ofício, Xica cedeu às imposições coloniais para sobreviver, abriu mão de sua identidade feminina, passou a usar o nome Francisco e às roupas consideradas adequadas pelos escravocratas para se manter viva.
Há registros dela que datam 1591, em Salvador, na Bahia. Na época, o código penal equiparava sodomia ao crime de lesa-majestade. Ou seja, a pena para sodomia era sempre a queima do corpo do infrator em praça pública, seguida do confisco dos bens pela Igreja Católica e da infâmia lançada sobre seus descendentes até a terceira geração.
A história de Francisco Manicongo ganhou visibilidade a partir dos anos 1990, devido às pesquisas do antropólogo Luiz Mott. Segundo o pesquisador, Francisco teria sido “o homossexual mais corajoso de que se tem notícia neste começo da nossa história”. No entanto, foi na década de 2000, que Marjorie Marchi, travesti e ativista negra, ressignificou o personagem histórico, nomeando-a como uma travesti com o nome social de Xica Manicongo.
Séculos após tal cenário brutal, sua história inspira artistas, ativistas e acadêmicos de todo o Brasil. A exemplo, Millena Lyra Valença produziu a dissertação de mestrado ““Folhas de narrativa sequestrada”: uma proposta transfeminista para o ensino de História através da HQ Xica Manicongo. O trabalho apresenta a HQ E será que tinha travesti?, que resgata a trajetória de Xica Manicongo, a partir de uma história ambientada em sala de aula. Leitura interessante para crianças de todas as idades.
Xica Manicongo pode significar “Rainha Xica”, na medida em que “Manicongo” era um título utilizado pelos governantes do Reino do Congo para se referir aos seus senhores e às suas divindades. Similarmente, celebrarmos a existência do Troféu Xica Manicongo, da Astra-Rio – Associação das Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro, criado em 2010 para homenagear personalidades e organizações, como Fabiana Brazil, UNAIDS e o espetáculo Divinas Divas.
Em 2021, Erika Hilton (PSOL), primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Câmara de São Paulo e a vereadora mais votada em 2018, apresentou o projeto de lei que regulamenta a nomeação de uma rua na Zona Sul da capital em homenagem à Xica Manicongo, com a justificativa de que “ela representa a luta das travestis brasileiras pelo seu direito à memória e reconhecimento e por isso é importante homenagear sua luta e existência”. Aprovado aguarda regulamentação da prefeitura de São Paulo. À altura de Xica Manicongo, a escola de samba Paraíso do Tuiuti, de São Cristóvão, desfilará com o enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo?”, em 2025.
Contra a intolerância e contra os preconceitos que buscavam desumanizar Xica e pelo direito a diversidade de gênero é importante celebrar sua memória.
Texto escrito por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #diversidadedegenero #travesti #congo #racismo #colonialidade #antirracismo #escravidao #cisheteronosmatividade #cultura #trans #LGBTQIA+
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
VALENÇA, Millena Lyra. “Folhas de narrativa sequestrada” : uma proposta transfeminista para o ensino de História através da HQ Xica Manicongo. UFPE – Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 2022. Disponível em: RI UFPE: “Folhas de narrativa sequestrada” : uma proposta transfeminista para o ensino de História através da HQ Xica Manicongo. Acesso em 14 mai 2024.
- Sites:
COTTA, Diego. Troféu Xica Manicongo homenageia personalidades na Casa de Cultura Laura Alvim. Revista Consciência: 5 de março de 2010. Disponível em: Troféu Xica Manicongo homenageia personalidades na Casa de Cultura Laura Alvim – Revista Consciência (revistaconsciencia.com). Acesso em 14 mai 2024.
JESUS, Elísha Silva de. Impactos políticos-pedagógicos do uso do nome social nas histórias de vida de travestis negras brasileiras. UFSCar: Sorocaba, 2022. Disponível em: Microsoft Word – Dissertação_Mestrado_ElÃŁsha – PPGEd UFSCar, campus Sorocaba.docx. Disponível em: 14 mai 2024.
JESUS, Jaqueline Gomes. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra. Capire: 20 de novembro de 2022. Disponível em: Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra – Capire (capiremov.org). Acesso em 14 mai 2024.
LEÃO, Sérgio. Alô, São Cristóvão! Paraíso do Tuiuti vai contar a história da primeira travesti do Brasil no carnaval de 2025. Nova Brasil: 10 de maio de 2024. Disponível em: Alô, São Cristóvão! Paraíso do Tuiuti vai contar a história da primeira travesti do Brasil no carnaval de 2025 – Novabrasil (novabrasilfm.com.br). Acesso em 14 mai 2024.
OXALÁ, Paulo de. Porque Oxalá usa Abẹ̀bẹ̀ e indumentária feminina? Paulo de Oxalá: 18 de fevereiro de 2022. Disponível em: Porque Oxalá usa Abẹ̀bẹ̀ e indumentária feminina? (paulodeoxala.com.br). Acesso em 14 mai 2024.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Bazar do Tempo, tradução de Wanderson Flor do Nascimento, 1ª ed: Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: A Invenção das Mulheres (uff.br). Acesso em 14 mai 2024.
QUEM FOI XICA MANICONGO, CONSIDERADA PRIMEIRA TRAVESTI BRASILEIRA. Casa 1: São Paulo, 9 de junho de 2022. Disponível em: Quem foi Xica Manicongo, considerada primeira travesti brasileira – Casa 1 (casaum.org). Acesso em 08 dez 2022.
VALENÇA, Millena Lyra. E será que tinha travesti?? UPFE – Universidade Federal de Pernambuco, eduCAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior: 2022. Disponível em: E será que tinha travesti?? – eduCAPES. Acesso em 14 mai 2024.
Xica Manicongo: a primeira travesti do Brasil foi negra. A Verdade: 31 de janeiro de 2022. Disponível em: Xica Manicongo: a primeira travesti do Brasil foi negra – A Verdade. Acesso em 14 mai 2024.