Liliane Brum Ribeiro
Texto publicado originalmente no livro Mulheres, um século de transformação. Agencia O Globo, 2016. p. 55-68.
Lugar de mulher é também nos gramados, nas quadras, no mar, no tatame, nas piscinas e onde elas quiserem, demonstrou a brilhante participação das atletas da delegação brasileira nos jogos Olímpicos de 2016, empolgando torcedoras e torcedores de norte a sul do país. Não faz muito tempo, pisar em nesses e outros espaços esportivos estava longe das possibilidades dadas às mulheres. Basta pensar que em 14 de abril de 1941, pleno Estado Novo, o Presidente Vargas publica o Decreto 3.199 que, em seu Art.54 afirmava “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. O famoso documento, que decretava para as mulheres distância de certos esportes, fora uma resposta à carta de José Fuzeira, cidadão brasileiro que escrevera ao então Presidente da República, as seguintes palavras: “Que V. Ex. Snr. Presidente acuda e salve essas futuras mães, do risco de destruírem a sua preciosa saúde; e, ainda, a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil”. Com isso, o processo higienista e intervencionista, que tinha como grande aliado a ciência médica – sempre autorizada a definir com bases na biologia o destino moral das mulheres -, atingiu em cheio a alegre prática esportiva feminina brasileira.
A partir de então, jornais que antes exaltavam as moçoilas que se aventuravam a praticar alguns esportes, começam a advogar pela boa conduta das mesmas, que deveriam ser melhor controladas por seus pais. Afinal, lugar de mulher só poderia ser no campo doméstico ou, no máximo, nas arquibancadas onde poderiam flertar e, quem sabe, encontrar seus futuros maridos. Uma curiosidade: o famoso cronista Coelho Neto, que frequentando os gramados do Fluminense ainda na primeira metade do século XX, ao notar que as moçoilas, nervosas com o jogo, torciam e retorciam suas luvas, escreveu:
“enquanto eles jogam, elas torcem”, consagrando não apenas o termo torcida, mas também o lugar dado a elas em disputas esportivas.
Mas, as mulheres chegaram à segunda metade do século XX, trazendo na bagagem muitas conquistas e, sobretudo, o justo desejo de exercerem sua cidadania em plenitude. Subvertendo regras, algumas se aventuraram enfrentando várias barreiras e preconceitos. Se hoje não existem atividades interditadas a elas, muitas ainda sofrem discriminações que contribuem para o fortalecimento de estereótipos de gênero, raça e orientação sexual, que acabam por afasta-las das carreiras esportivas.
No que tange aos Esportes Olímpicos, as brasileiras saíram atrás, mas mostrando que garra, determinação e alegria não lhes falta. Em 1896 aconteceram os primeiros jogos Olímpicos da Era Moderna, e a proporção geral de mulheres manteve-se baixa até a edição de 1928, em Amsterdã, quando somaram apenas 10% dos atletas. A primeira participação brasileira e sul-americana no evento mundial aconteceu somente em 1932, quando Maria Lenk representou o Brasil na natação. Um fato histórico e espetacular! Em 1948, Melania Luz, recordista brasileira e sul americana no atletismo, ao correr os 200 metros rasos e de revezamento 4 x 100 metros nos Jogos Olímpicos de Londres, carimbou a presença heroica da primeira atleta negra a representar o Brasil na competição. Na edição seguinte, no ano de 1952 em Helsinque, Wanda dos Santos e Deise Jurdelino de Castro, integrantes da equipe brasileira composta por 5 atletas, também inscreveram seus nomes na participação de brasileiras em jogos olímpicos. E os relatos da discriminação racial vivida vão desde competidoras não se aproximarem delas, quanto por outras que buscavam toca-las em função a cor que as diferenciava.
Já em 1964, entre as precursoras olímpicas brasileiras, disputando o salto em altura, encontramos Aida dos Santos que conseguiu a impressionante marca de uma quarta colocação em Tóquio. Assim, os saltos, braçadas e distâncias percorridas por essas vanguardistas suplantaram, em muito, os aspectos físicos, integrando e visibilizando o simbólico das barreiras superadas contra os preconceitos que teimavam em afastá-las do esporte, para galgar seu lugar na história. A partir daí a porcentagem das atletas brasileiras tendeu a crescer, ainda que em ritmo lento, chegando à virada do século, nos jogos Sydney, com 41% de mulheres na delegação. Em Pequim (2008) e Londres (2012), damos um salto e chegamos ao recorde, somando aproximadamente 48% do total de atletas. Em 2016 fomos representadas por 209 mulheres, número que equivale a 45% do total da delegação brasileira, demonstrando a evolução da presença feminina nos Jogos Olímpicos.
Nessa trajetória, trinta e dois anos depois da primeira participação das mulheres brasileiras e com presença já consolidada na maioria das modalidades, um fato inusitado marca a trajetória das nossas meninas, quando Jaqueline da Silva, a Jackie, integrante da vitoriosa equipe feminina de vôlei, ao retornar dos Jogos Olímpicos de 1984 realizados em Los Angeles denunciou que apenas o time masculino receberia o valor estabelecido com os patrocinadores. E isso lhe rendeu o corte da seleção! Desde então, ficou evidente que a luta das mulheres deveria ir muito além do fato de chegar a uma equipe olímpica. Era necessário lutar pela igualdade e equidade nos esportes.
Os primeiros pódios vieram em todas as cores nas olimpíadas de Atlanta de 1996. Foram medalhas em esportes de duplas ou coletivos. Ouro no vôlei de Praia para Jackie, integrada novamente à equipe Olímpica e, Sandra Pires, numa final brasileira que deixou a prata com Adriana Samuel e Monica Rodrigues. Prata também para o memorável time de basquete feminino que contou com a presença de nomes como “Magic” Paula, Hortência e Janeth, e bronze para o também histórico time de vôlei feminino de Ana Moser, Márcia Fu, Leila, Fernanda Venturini, Virna dentre outras.
No Campeonato Mundial de Ginástica Artística, em 2003, a gaúcha Daiane dos Santos foi a primeira ginasta brasileira, entre homens e mulheres, a conquistar uma medalha de ouro com seu salto duplo twist carpado e, em 2004, ao disputar as Olimpíadas de Atenas. Apesar de não conseguir medalha, teve cunhado seu segundo movimento, intitulado Dos Santos II, a variação esticada do primeiro. Daiane saltou para a história!
Para as mulheres, as olimpíadas de 2008 em Pequim foram decisivas. As equipes femininas ganharam de forma inédita o ouro no vôlei, a prata no vôlei de praia e no futebol. E, foi também nesta olimpíada que Maurren Maggi consagrou o primeiro ouro olímpico feminino para o Brasil no salto em distância. As mulheres foram as responsáveis por duas das três medalhas de ouro em Pequim e seis das 15 medalhas totais da competição. Na edição de 2012, em Londres, as brasileiras conquistaram o ouro no vôlei e Sara Menezes ganhou o inédito ouro no judô.
Não obstante esses 84 anos de participação feminina brasileira nos Jogos Olímpicos, a desigualdade de gênero e social ainda se mantem nos diferentes esportes, especialmente aqueles que demandam recursos financeiros para serem praticados. As dificuldades encontradas por meninas, principalmente as das periferias das grandes cidades, ainda são exorbitantes. A modalidade do futebol, por exemplo, seus símbolos e suas origens patriarcais ainda preservam, em pleno século XXI, um universo cruel e machista que contraria a participação das mulheres como um todo. Até 1979, eram proibidas de jogar futebol no país (nessa época a seleção masculina já era tricampeã mundial e Pelé já era ídolo). Ocupar os gramados era algo considerado incompatível com o que se defendia como adequado para as mulheres. No país do futebol, apesar dos avanços, a modalidade feminina ainda esbarra em limitações que não são poucas e incluem preconceitos e dificuldades, que passam pela falta de patrocínio, por descaso por parte da CBF que, dentre outras coisas, não assina carteira de trabalho para elas, por falta de interesse por parte dos clubes, etc. Mas, aos poucos, o talento e esforço das atletas da seleção brasileira de futebol vem abrindo espaços e conquistando o país, como demonstraram os estádios lotados por onde passaram nesses Jogos Olímpicos desse ano. E, de fato, nessa modalidade esportiva ninguém nos supera! A alagoana Marta Vieira da Silva, a Marta, foi eleita pela FIFA, entre 2006 e 2010, a melhor jogadora de futebol de todo o mundo. Em 2004 já havia sido premiada com o troféu Bola de Ouro e em 2007, com o troféu Chuteira de Ouro. Ainda pela mesma Federação Internacional a brasileira Cristiane Rozeira de Souza Silva foi escolhida em 2009, como a segunda melhor jogadora do mundo e, nos anos de 2007 e 2008, a terceira melhor. Como elas, podemos citar ainda a inigualável Formiga – única a participar de seis edições Olímpicas -, Aline Pellegrino, Juliana Cabral e tantas outras heroínas dos gramados que sonham com a conquista de uma medalha de ouro, driblando inúmeros preconceitos em campo e fora dele.
Não são poucas as atletas que atuaram e ainda defendem times ou equipes espalhadas pela Europa, América do Norte e Ásia. Contudo, isso se deve não apenas ao reconhecimento de talentos, mas, também, à ausência de oportunidades de permanência no Brasil. Quando as mulheres fazem uma opção de vida pelo esporte, encontram um caminho tortuoso, tendo que driblar preconceitos de uma sociedade que teima em não enxergar que a paixão nacional vai muito além de um espaço reservado para que apenas os homens o ocupem.
Nossas atletas paralímpicas conquistaram pela primeira vez uma vaga nos jogos de 1976, em Toronto no Canadá e, já em 1984, em Los Angeles, protagonizam feito inédito: das 24 medalhas conquistadas pela equipe paralimpica brasileira, 15 foram delas, consagrando-as mundialmente. E eram apenas 6 atletas, enquanto eles somavam 23! A presença feminina ainda mantém-se aquém da masculina, ligando o sinal amarelo para o fato de que as superações que elas vivenciam no esporte, para além da condição física, vem ratificada por uma questão de gênero e raça.
O destaque que o Brasil tem conseguido nas edições dos Jogos Paralímpicos conta com a contribuição das medalhistas Marcia Malsar, Anelise Hermany, Miracema Ferraz, Amintas Piedade, Ádria Santos, Roseane F. dos Santos (Rosinha), Suely Guimarães, Maria José Guimarães (Zezé), Shirlene Coelho, Terezinha Guilhermina, Jerusa Santos e Jhulia Santos, todas das premiadíssimas equipes de Atletismo; mas também, com as medalhistas no Judô, Daniele Silva, Deanne Almeida, Karla Cardoso, Michele Ferreira e Lúcia da Silva. A equipe de Natação subiu ao pódio em diferentes edições dos jogos Olímpicos, com Maria Jussara Matos, Graciana Alves, Edênia Garcia, Fabiana Sugimori, Verônica Almeida e Joana Maria Silva, bem como a do Remo com a medalhista Josiane Lima, além de outras campeãs nacionais que merecem nosso destaque pela força, determinação e garra com que enfrentaram e enfrentam as inúmeras adversidades para integrar nossos times Olímpicos. Na edição e 2016, teremos 97 atletas brasileiras para 181 homens, chegando ao recorde histórico de participação feminina nas paralimpiadas. Rio 2016, que legado queremos?
Nesse novo século, superando obstáculos e preconceitos, o esporte feminino configura-se como realidade no Brasil. Em cidades grandes ou pequenas; capitais ou periferias; áreas remanescentes de quilombos e reservas indígenas, equipes amadoras ou profissionais reúnem meninas, moças e mulheres que evidenciam habilidades e gosto pelos diferentes esportes, mas nem sempre compatível com suas possibilidades de investimento ou com as estruturas disponíveis que lhes possibilitariam a formação adequada.
Chegamos às Olimpíadas do Rio 2016, ainda com inúmeras desigualdades, enormes desafios, mas também com muita esperança. A extraordinária vitória de Rafaela Silva, com a conquista da medalha de ouro nessa edição, no judô, é um exemplo de superação que certamente motivará tantas outras meninas. Deu a volta por cima, ao enfrentar a pobreza e o racismo da qual foi vitima logo após as Olimpíadas de Londres, quando pensou em desistir do esporte. Sua vitória comoveu o país, e a campeã Rafaela é um exemplo de que as brasileiras não desistem nunca!
E nessa onda, a medalha dourada no peito das velejadoras veio para confirmar o esforço de muitas na busca pelo pódio. Kahena Kunze que, juntamente com sua companheira de vela, Martine Grael surpreendeu a todos com a extraordinária vitória na classe 49er FX, foi taxativa: “os homens que se segurem”. Sim, as mulheres chegaram para conquistar o seu lugar!
Soma-se à peleja das atletas inúmeras inciativas de organizações que fortalecem o enfrentamento ao machismo, já protagonizado em diversos campos pelas feministas brasileiras desde os tenros anos do século XX. O facebook tem sido uma das principais ferramentas para romper tais barreiras, como demonstram as campanhas de mobilização nacional lançadas por organizações feministas como o #TemMulherNaJogada, iniciativa da Rede de Desenvolvimento Humano – Redeh, em parceria com a street football brasil – sfw e a campanha #QueroTreinarEmPaz, das ONGs Think Olga e AzMina, entre outras. Ambas reforçam a luta das esportistas brasileiras por igualdade e equidade no mundo dos esportes, mas também das meninas que sonham em um dia ser atletas profissionais e conquistar um ouro olímpico.
A igualdade de gênero e raça no mundo dos esportes ainda tem vários troféus a conquistar. Mandar os tênis ou chuteiras para escanteio e tentar a sorte em novas profissões têm sido uma opção, nem sempre com final feliz para muitas atletas.
Que as Olimpíadas e Paralimpíadas de 2016 nos presenteiem com um legado que marque novos tempos para as mulheres brasileiras! Um Salve às nossas atletas!
Rio, agosto de 2016
¹ Texto publicado originalmente no livro Mulheres, um século de transformação. Agencia O Globo, 2016.
P. 55-68
² Antropóloga e ativista feminista.