Elaine Gomes
Vanessa Guimarães
Publicado originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pl-1904-o-uso-do-corpo-das-mulheres-como-moeda-de-troca-politica-18062024?non-beta=1&
A Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para a tramitação do PL 1904/2024. O texto restringe a aplicabilidade das três hipóteses legais de interrupção da gestação existentes atualmente no Brasil: 1) gravidez fruto de violência sexual (estupro); 2) risco de vida à gestante e 3) vida inviável do feto fora do útero (casos de anencefalia).
O PL 1904 equipara a pena do aborto nas hipóteses legais à pena do homicídio simples, caso haja viabilidade fetal, esta presumida em gestações acima de 22 semanas. Então, é possível a interpretação de que este projeto de lei não se limite a criminalizar o aborto praticado acima de 22 semanas, mas em qualquer etapa da gestação caso seja reconhecida a viabilidade do feto. O que aumenta o retrocesso trazido pelo texto. Para analisar os efeitos práticos do atual texto modificativo do Código Penal é necessário observar dados sobre a realidade brasileira.
A OMS aponta 39 mil mulheres e meninas morrem por ano em todo mundo, em decorrência da prática de aborto inseguro. No Brasil, as interrupções inseguras estão entre as cinco principais causas de mortalidade materna. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023) demonstram que 61,4% das vítimas de estupro no Brasil são meninas com menos de 13 anos, 64,4% das meninas são estupradas por familiares e 68,3% dos crimes ocorrem em casa.
A dinâmica intrafamiliar dos estupros ocasiona demora na identificação das gravidezes. A fixação de um marco temporal gestacional e da viabilidade do feto como critérios cria obstáculos de acesso a interrupção legal da gravidez obrigando as meninas a uma maternidade compulsória, ou seja, um processo de tortura física e psicológica.
O PL 1904 pretende equiparar o aborto legal ao homicídio. E causa uma inversão legislativa chocante: a pena pelo estupro pode chegar a 12 anos, se causar lesão corporal de natureza grave ou for praticada contra vítima menor de 18 ou maior de 14 anos; já aquela que praticar a interrupção da gestação causada por estupro pode ser condenada a 20 anos de reclusão. No “conto de aia” do Poder Legislativo brasileiro aquele(a) que pratica o aborto terá pena maior do que aquele que praticar o estupro de vulnerável.
No choque com a realidade brasileira, o texto do PL 1904 significa, dessa forma, proteção aos estupradores e a materialização jurídica do ódio. É preciso destacar que a ação do presidente da Câmara dos Deputados usa o corpo das meninas, mulheres e pessoas que gestam como moeda de troca política.
Estamos diante de um jogo de poder entre o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário, de olho no controle político de posições importantes na Câmara dos Deputados e nas eleições municipais. E neste jogo, a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam é colocada em risco, em nome de uma falsa proteção à “vida”.
A estratégia de acionar um tema que causa pânico moral e de pautar um projeto de lei relativo a costumes e direitos sexuais e reprodutivos é conhecida. Percebe-se que o que está em jogo não é a defesa da vida e, menos ainda, um debate público sério em prol da coletividade ou da saúde pública. Pautar o PL 1904 é um aceno político a extrema direita.
Importante lembrar dois pontos: 1) o impacto das redes sociais em campanhas políticas e 2) ataques a legitimidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF).
A disputa eleitoral municipal se aproxima e a exploração de “pautas-bomba morais” gera engajamento nas redes sociais. Partidos e políticos vão explorar a repercussão do PL n. 1904/24 com suas bases eleitorais. A exploração do pânico moral gera capital político em nichos específicos, e consequente, ocupação de espaços decisórios nas prefeituras e câmaras municipais. Passo preparatório para as eleições de 2026.
Nas redes sociais, os políticos da extrema direita utilizam o debate em torno do PL 1904 para construir a ideia de uma luta contra o mal, empreender uma verdadeira cruzada antiaborto. Isso é um instrumento de chantagem política para desmoralizar publicamente aqueles que forem contra o PL 1904, associando-os a inimigos da moral, da família e dos bons costumes.
A necessidade de regulação das redes sociais torna-se premente para que as próximas eleições não sejam manipuladas por projetos de desinformação, tornando o processo eleitoral controlado por um cabresto midiático e informacional. Todavia, ao contrário do PL 1904, a Câmara engavetou o texto do PL 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News), ao criar um grupo de trabalho para discutir um novo projeto.
Por outro lado, a reação do Poder Legislativo frente a decisões recentes do Poder Judiciário, sobretudo, as decisões do STF, configura um contra-ataque político à atuação da Corte Constitucional na preservação e ampliação dos conteúdos protetivos dos direitos humanos e fundamentais (efeito backlash). O Poder Legislativo sustenta medidas agressivas para resistir a direitos de grupos vulnerabilizados, como forma de manter suas bases eleitorais conservadoras.
Recentemente, o STF suspendeu a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia médicos de realizarem a chamada assistolia fetal, um procedimento usado nos casos de aborto legal decorrentes de estupro. A Corte Constitucional ao analisar a resolução afirmou que o CFM ultrapassou a lei e a Constituição ao impedir a realização da “assistolia fetal” em gravidezes acima de 22 semanas, o que atingia a interrupção da gestação permitida por lei.
Destaca-se que se trata de um caso de judicialização da política, que em nada se confunde com ativismo judicial. Visto que o CFM criou resolução contrária ao direito prestacional de acesso à saúde pública nos casos de interrupção da gestação permitida pelo Código Penal (1940).
A reação do Poder Legislativo não tardou. Alguns meses depois, ocorreu a votação para a tramitação do PL 1904 em regime de urgência, que durou 24 segundos. A existência de vícios formais no processo de formação da lei infraconstitucional e de vícios materiais, ou seja, inconvencionalidade e/ou inconstitucionalidade no conteúdo do projeto de lei, geram a possibilidade de judicialização.
O conteúdo do projeto de lei é contrário à legislação internacional e constitucional de proteção aos direitos das crianças e das mulheres, tornando inevitável a realização de controle de convencionalidade e de constitucionalidade pelo STF.
É fundamental questionar, portanto, em que medida o Poder Legislativo deseja e age, intencionalmente, para a transferência do ônus político e social para o STF, que em caso de vícios formais ou materiais, deve interferir em atos legislativos e administrativos que se oponham aos parâmetros constitucionais e convencionais.
O corpo das meninas, mulheres e pessoas que gestam não é moeda de troca política. A aberração social e jurídica do PL 1904 deve ser rechaçada.
ELAINE GOMES – Advogada. Mestre em Direito pela UFRJ. Especialista em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ)
VANESSA GUIMARÃES – Advogada. Especializada em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Membra da Comissão Popular de Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro (CPDHRJ)