
Ativista lésbica feminista
Maria de Lourdes Alves Rodrigues, carinhosamente chamada de Lurdinha, nasceu em fevereiro de 1960, em Santana do Cariri (CE). Ainda criança mudou-se com os pais e irmãos para a capital São Paulo e depois foi viver em Jundiaí, cidade do interior do estado. Oriunda de família simples e sem referência política, era uma adolescente quando em plena ditadura militar, passou a fazer parte do movimento secundarista.
Por volta de 1977, volta a viver na capital paulista e, seduzida pela proposta de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, filia-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) passando a integrar o movimento operário, através do Sindicato dos Têxteis, um ambiente majoritariamente masculino. No contato com outras trabalhadoras decidiram criar um espaço dentro do sindicato para discutirem as especificidades das mulheres no mundo do trabalho.
Foi desse lugar de militante da causa operária que conheceu o movimento feminista que estava se reorganizado após longo período de repressão durante o governo militar. Num primeiro de maio, no final da década de 1970, Lurdinha foi convidada a participar do evento em São Miguel Paulista, representando as operárias. Sua fala comovente em defesa das mulheres trabalhadoras chamou a atenção de muita gente, dentre essas a jornalista Amelinha Teles que, naquele momento, fazia uma reportagem para o Jornal Brasil Mulher. A despeito de pertencerem ao mesmo partido político, o PCdoB, foi através da luta feminista que elas se aproximaram.
Em 1979 Lurdinha participou do 1º Congresso da Mulher Paulista, representando o Sindicato dos Têxteis de São Paulo, quando teve a oportunidade de conhecer mais de perto outras expressões do feminismo paulistano. Desde então, muitas divergências e incômodos começaram a surgir no interior do Partido Comunista do Brasil, ao qual ela pertencia, especialmente quando passa a perceber a falta de compromisso político do partido com a agenda das mulheres. Estimuladas pelo movimento feminista que ressurgia com força no período de redemocratização do país, Lurdinha Rodrigues, Amelinha Teles, Criméia Almeida, Terezinha Gonzaga e Kátia Antunes começaram a discutir a criação de uma entidade de mulheres mais emancipacionista, justamente pela necessidade de ter autonomia e poder falar por si mesmas, longe daquilo que consideraram posturas autoritárias e avessas do partido.
Assim, em 1981 com o desejo coletivo de criar um espaço autônomo nasce a União de Mulheres de São Paulo – UMSP, com foco central de atuação no enfrentamento à violência doméstica e a formação política. Fundada no Sindicato dos Químicos, no bairro da Liberdade, reuniu cerca de trezentas mulheres articuladas com diversos movimentos sociais. Embora idealizada pelas então militantes do PCdoB, a UMSP rompeu com vínculos partidários, estabelecendo-se como uma organização independente voltada à luta pelos direitos das mulheres e pelas liberdades democráticas. Sua fundação representou um gesto de autonomia política diante das limitações impostas por partidos que resistiam ao feminismo, fortalecendo uma atuação crítica e combativa em prol das vozes das mulheres.
Nessa época, Lurdinha ainda não tinha se descoberto uma mulher com orientação sexual divergente da heteronormatividade. Como ela mesma afirmou inúmeras vezes ao contar sua história, na década de 1980 a questão da sexualidade ainda era tabu e pouco presente no debate público. Para ela, o movimento feminista teve papel central para mudar essa realidade, trazendo visibilidade e contribuindo para que tantas mulheres “saíssem dos armários”, afirmando a lesbianidade com orgulho e sem medo de dizer “sim, sou sapatão!”. E, assim foi com ela também!
Em 1987 Lurdinha é expulsa do PCdoB por divergências importantes que passaram a atravessar de forma ainda mais intensa o seu protagonismo e compromisso com a luta feminista. Como disse ela: ”fomos expulsas juntas aliás, eu a Amelinha e a Terezinha, as três “inhas””. Daí para a frente Lurdinha, juntamente com essas e outras companheiras, se dedica a tornar a UMSP uma referência na luta pelos direitos das mulheres, promovendo ações que reivindicavam a equidade de cidadania entre os gêneros e denunciavam a violência institucional contra os corpos das mulheres. A associação enfrentou o discurso jurídico que tentava controlar os desejos e a autonomia das mulheres, e ousou criticar as interferências do Estado e da Igreja na vida íntima das cidadãs. Ao se posicionar em defesa da descriminalização do aborto e propor o projeto de lei da licença paternidade, a UMSP buscou desconstruir visões tradicionais de família e estimular uma nova percepção sobre maternidade e relações parentais. Sua atuação histórica ajudou a abrir caminhos para novas formas de pensar a sexualidade, a justiça e os direitos civis.
Durante os anos 1990, Lurdinha Rodrigues ampliou sua trajetória militante ao ocupar espaços estratégicos de articulação nacional voltados à defesa dos direitos humanos. Sua colaboração no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) foi decisiva para fortalecer institucionalmente esse órgão recém-reestruturado no contexto de redemocratização. Como autora colaboradora do Curso de Formação de Conselheiros em Direitos Humanos — promovido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e pela Ágere Cooperação em Advocacy —, contribuiu com reflexões sobre justiça, enfrentamento à violência institucional e fortalecimento da cidadania. Com olhar sensível e político, Lurdinha aproximou o compromisso com os direitos humanos da luta feminista, reforçando que a dignidade humana só se constrói com liberdade, igualdade e participação popular.
Seu compromisso com a igualdade racial a levou também a colaborar com iniciativas que antecederam a realização da 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), em 2005. Ao longo da década, sua presença nesses fóruns e espaços formativos consolidou sua visão política comprometida com a dignidade humana e os princípios feministas, articulando gênero, raça e classe como eixos inseparáveis de transformação social.
Militância lésbica e a fundação da Liga Brasileira de Lésbicas
O compromisso e a atuação de Lurdinha também se destacam na construção da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), fundada em 2003 durante o Fórum Social Mundial e estruturada no 5º Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), em São Paulo. Lurdinha foi essencial para a estruturação da organização, que surgiu como resposta ao desejo histórico das mulheres lésbicas por um espaço político próprio, com diretrizes feministas e compromisso com a transformação social. Em 2004, no Primeiro Encontro Nacional da LBL, ela esteve presente na formulação da carta de princípios – que incluíam não apenas a defesa da livre orientação sexual, mas também o enfrentamento ao machismo, racismo, lesbofobia e à exploração capitalista. Tornou-se uma das articuladoras nacionais da Liga, contribuindo para a construção do processo de formação política e feminista contínua que passou a orientar a LBL.
Ainda em 2004, participou da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, articulando pautas específicas das lésbicas ao lado de delegadas feministas e, em 2006, celebrou duas conquistas históricas: a inclusão de uma cadeira para o segmento lésbico no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e outra no Conselho Nacional de Saúde para o segmento LGBT.
Lurdinha tornou-se a representante do movimento LGBT – no Conselho Nacional de Saúde (CNS), ocupando o assento conquistado pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). Sua presença foi estratégica para inserir a perspectiva lésbico-feminista nas políticas públicas de saúde e ampliar o debate sobre os direitos da população LGBT no sistema único de saúde (SUS).
Nesse período, ela coordenou a criação da Comissão Intersetorial de Saúde da População LGBT, tornando-se sua primeira coordenadora, cargo que exerceu durante quatro anos como conselheira titular e por mais um semestre como suplente. Sob sua liderança, a comissão articulou pautas sobre acesso, prevenção, enfrentamento à violência institucional e formação dos profissionais de saúde com foco na equidade.
Já em 2007, a LBL, mais organizada e visível, garantiu a inclusão do eixo 9 no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, voltado ao combate à lesbofobia, racismo e machismo. Lurdinha esteve entre as articuladoras dessa presença, contribuindo diretamente para essa conquista, que representou o reconhecimento institucional das interseções entre gênero, raça e orientação sexual, consolidando a pauta lésbica no planejamento estratégico das políticas públicas para as mulheres. O protagonismo de Lurdinha e da LBL nesse processo reafirmou o compromisso com uma sociedade mais igualitária e diversa, onde a luta feminista incorpora, de forma concreta, as vozes e experiências das mulheres lésbicas.
A atuação de Lurdinha nesses espaços reafirmou sua capacidade de construir pontes entre o feminismo, os direitos humanos e as políticas de saúde, mantendo sua militância voltada à dignidade, diversidade e justiça social.
Lurdinha, também colaborou com o Instituto Patrícia Galvão organização reconhecida por sua atuação na defesa dos direitos das mulheres e pela produção de conhecimento voltado à comunicação feminista. Em sua passagem pelo Instituto, contribuiu com debates e ações que buscavam ampliar a visibilidade das pautas das mulheres lésbicas e fortalecer políticas públicas inclusivas.
Em fevereiro de 2012, Lurdinha passou a integrar a equipe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), sob a gestão da ministra Eleonora Menicucci. Com a criação da Coordenadoria-Geral da Diversidade Sexual, assumiu o cargo de coordenação, liderando ações voltadas à promoção dos direitos e à construção de políticas públicas de enfrentamento à discriminação e à violência.
Sua atuação nesse espaço institucional era marcada pela escuta ativa, articulação com movimentos sociais e defesa da diversidade como valor fundamental para a democracia. Lurdinha trouxe para a SPM o olhar sensível e aguerrido que sempre caracterizou sua militância, aproximando a gestão pública da realidade das ruas e dos territórios de luta.
Mas, tragicamente sua trajetória foi interrompida bruscamente. Em 14 de fevereiro de 2015, durante o feriado de Carnaval, Lurdinha, perdeu a vida em um acidente de carro no interior da Bahia, enquanto seguia viagem rumo à Chapada Diamantina ao lado de Rosângela Maria Rigo, que também integrava a SPM com o cargo de Secretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas (SAIAT). No carro ainda estava a também amiga e companheira de militância, Célia Maria Escanfella. Nenhuma das três sobreviveu ao impacto. Lurdinha havia completado 55 anos poucos dias antes. Sua morte abalou profundamente os movimentos feminista e LGBT, que reconheceram nela uma liderança generosa, articuladora nata e defensora incansável dos direitos humanos.
Entre as inúmeras notas de pesar que circularam naqueles dias, vale ressaltar a da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) que, em um texto emocionado, destacou que ela “fortaleceu a Liga com sua presença marcante, sua determinação, sua sensibilidade feminista e seu compromisso político inabalável”. A ausência de Lurdinha deixou um vazio irreparável, mas sua trajetória permanece como referência viva — ecoando nas memórias compartilhadas e impulsionando as lutas que continuam inspiradas por sua coragem, afeto e generosidade militante.
Como disse a então ministra Eleonora Menicucci: “Acima de tudo perdemos duas grandes amigas e companheiras de militância feminista. Ambas deixam um legado excepcional de coragem, determinação e alegria para a transformação dos sonhos e utopias na luta pelo avanço das conquistas dos direitos das mulheres”.
A trajetória de Lurdinha Rodrigues é marcada pela coragem de enfrentar sistemas de opressão e pela generosidade de construir caminhos coletivos de liberdade. Operária, feminista, lésbica, intelectual, ativista dos direitos humanos — ela foi muitas ao mesmo tempo, sem abrir mão de nenhuma. Sua militância atravessou partidos, conselhos, ruas, fóruns, plenárias e territórios afetivos, sempre pautada pelo compromisso com a justiça social e o respeito à diversidade.
Mesmo após sua partida precoce em 2015, Lurdinha permanece como referência ética, política e emocional para quem luta por um Brasil mais justo e plural. Sua presença é lembrada não apenas pelas conquistas que ajudou a viabilizar — como os assentos institucionais, os planos nacionais e a fundação da LBL — mas também pela escuta generosa, pela capacidade de articulação e pelo afeto que permeou cada espaço por onde passou.
O legado de Lurdinha não cabe apenas nos registros formais: ele vive nas histórias compartilhadas, nos movimentos que seguem resistindo, e nas mulheres que encontraram, em sua trajetória, inspiração para transformar o mundo.
Texto escrito por: Liliane Brum Ribeiro e Schuma Schumaher
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Referências:
Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). Nota de pesar pelo falecimento de Maria de Lourdes Alves Rodrigues. Publicada em 2015. Disponível no site oficial do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Nota de pesar pelo falecimento de Rô Rigo e Lurdinha. 20 de fevereiro de 2015. Disponível em https://www.cut.org.br/noticias/nota-de-pesar-pelo-falecimento-de-ro-rigo-e-lurdinha-cbac. Capturado em 22/7/2025.
Nota de pesar: Lurdinha, Rosângela e Célia, presentes! Agência Patrícia Galvão, 15/02/2015. Disponível em https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/nota-de-pesar-lurdinha-rosangela-e-celia-presentes/. Capturado em 22/7/2025.
Nota de pesar. Centro Latino-americano em sexualidade e direitos humanos. Fevereiro, 2015. Disponível em https://clam.org.br/noticias-clam/nota-de-pesar/18494/. Capturado em 22/07/2025.
OLIVEIRA, Júlia Glaciela da Silva. Dos Encontros à União. A formação da União de Mulheres de São Paulo. CLIO – Revista de Pesquisa Histórica – n. 31.2, 2014. Universidade Estadual de Campinas –Unicamp. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24431/19768. Capturado em 22/7/2025.
Publicações e registros da 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), 2005. Referências disponíveis em documentos da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Registros do 5º Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), São Paulo, 2003. Documentos internos e relatos disponíveis em acervos da Liga Brasileira de Lésbicas.
Rodrigues, Maria de Lourdes Alves; Gomes, Verônica Maria Silva. Formação de Conselheiros em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. Disponível na Rede Virtual de Bibliotecas.
Rosângela Maria Rigo (1964-2015) e Maria de Lourdes Rodrigues (1960-2015) – Feministas, lutavam pelo direito das minorias. Folha de São Paulo, 4 de março de 2015. Disponível em https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/rosangela-maria-rigo-1964-2015-e-maria-de-lourdes-rodrigues-1960-2015-feministas-lutavam-pelo-direito-das-minorias/. Capturado em 22/07/2025.
Rosângela Maria Rigo (1964-2015) e Maria de Lourdes Rodrigues (1960-2015) – Feministas, lutavam pelo direito das minorias. Folha de São Paulo, Cotidiano, 4 de março de 2015. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1597742-rosangela-maria-rigo-1964-2015-e-maria-de-lourdes-rodrigues-1960-2015—feministas-lutavam-pelo-direito-das-minorias.shtml. Capturado em 22/07/2025.
SDH/PR emite nota de pesar pela morte de Lurdinha Rodrigues e Rosângela Rigo. 18/02/2015.
Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/sdh/noticias/2015/fevereiro/sdh-pr-emite-nota-de-pesar-pela-morte-de-lurdinha-rodrigues-e-rosangela-rigo. Capturado em 22/7/2025.
29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica. Por Carla Gisele Batista – 30 agosto de 2019. Disponível em https://www.justicadesaia.com.br/29-de-agosto-dia-da-visibilidade-lesbica/. Capturado em 22/7/2025.