Heroína indígena
Clara nasceu no Rio Grande do Norte. A nação potiguar habitava a margem esquerda do Rio Potengi, de forma que Clara provavelmente nasceu em Aldeia Velha, próximo a Natal. Recebeu o nome de Maria Clara dos padres jesuítas e o sobrenome do marido, o indígena Poti, que ao ser batizado pelos religiosos ficou conhecido como Antônio Felipe Camarão, inclusive, poti significa camarão, por isso o sobrenome do casal.
Segundo a Fundação José Augusto, de Natal (RN), Clara dominava o arco e a flecha, a lança e o tacape. Desde o casamento, Clara participou de diversos combates ao lado do marido. As tradições potiguares proibiam que o casal batalhasse junto. Então, a solução foi Clara comandar seu próprio pelotão de indígenas potiguares.
Sua primeira missão oficial, liderando suas companheiras, foi a escolta de famílias que buscaram refúgio na cidade alagoana de Porto Calvo, na década de 1630. Vale lembrar que toda a região era palco de fortes conflitos entre holandeses e luso-brasileiros. Crucial destacar que a atuação de Clara e sua tropa ia além das habilidades bélicas. Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil destacam que o casal Camarão atuou de forma a permitir que as demais mulheres seguissem em fuga para o sul, levando seus filhos, na batalha de Porto Calvo. O contexto era periclitante, tendo o comandante Henrique Dias sido ferido a ponto de perder uma mão, não restando escolha a Felipe Camarão: ele assumiu o comando da tropa com o apoio de Clara. Eles utilizaram a desordem da batalha para viabilizar a fuga da população civil. Naquela época, os holandeses estavam ganhando terreno sobre os portugueses, chegando a Pernambuco em 1630. Isso obrigou os portugueses a abandonar a Vila Formosa do Serinhaém em julho de 1635. Felizmente, apesar da tentativa de invasão brutal dos holandeses, Clara e Felipe Camarão conseguiram reverter a situação através de estratégias ímpares e inigualável valentia.
Defendendo seu território, Clara e seu pelotão protagonizaram vitória importantíssima das tropas luso-brasileiras. As tropas do príncipe Maurício de Nassau avançava contra o território Poti após ter incendiado Olinda, em 1637. Clara e suas guerreiras conseguiram conter os inimigos. Fernanda Fernandes revela que Clara Camarão teve outra atuação importantíssima por volta de 23 de abril de 1646, na Batalha de Tejucupapo. Os holandeses tentaram invadir Tejucupapo pois sabiam que Felipe Camarão e suas tropas estavam protegendo a capital de Salvador (BA). As indígenas potiguares ferveram tonéis de água e adicionaram pimenta para gerar um vapor que deixou os combatentes holandeses desnorteados, com os olhos ardendo – assim, elas os atacaram, saindo vitoriosas com seus arcos, lanças e tacapes. Clara e sua tropa ficaram assim conhecidas como Heroínas de Tejucupapo.
Em 1648, as Heroínas de Tejucupapo foram chamadas para confrontar os holandeses na primeira Batalha dos Guararapes. Relata-se que esta foi a última atuação de Clara Camarão. Provavelmente isto ocorreu porque seu marido, Felipe, morreu de malária meses após a batalha. De toda forma, seus esforços foram recompensados, pois os holandeses se renderam em Recife anos após, em 1654. À época, provavelmente Clara estava recolhida em Aldeia Velha, atual Igapó, vivendo sua viuvez e seu anonimato.
Em vida, conforme nos infromam Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, Clara Felipa Camarão gozou de regalias como o título de “Dona” e do hábito de Cristo, concedido pelo rei Filipe IV a Felipe Camarão pelos serviços prestados à nação portuguesa. Séculos após a atuação decisiva de Clara Camarão e seu marido para a expulsão dos holandeses, hoje temos homenagens ao casal através da ONG Conexão Felipe Camarão e da Escola Estadual Clara Camarão, instituições localizadas no bairro Felipe Camarão, em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Há também a Refinaria Potiguar Clara Camarão em Rio Grande do Norte, em homenagem à heroína. Similarmente, em 1970, foi fundada a ENIC – Escola Normal Indígena Clara Camarão, uma parceria entre a FUNAI – Fundação Nacional do Índio e da IECLB – Igreja Evangélica Confissão Luterana do Brasil, renomeada CTCC – Centro de Treinamento Clara Camarão em 1977. A instituição iniciava o processo de formação de professores bilíngues indígenas no Brasil, em linha com o resgate da cultura indígena falada e escrita. Hoje, a instituição se chama Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Gomercingo Jẽtẽ Tenh Ribeiro.
Assim entrou para a história Clara Felipe Camarão, a primeira das heroínas indígenas brasileira de que se tem notícia. Em 2017, o nome de Clara Camarão foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que fica no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Texto escrito por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #indigena #potiguar #holandeses #natal #riograndedonorte #feminismo #antirracismo #guerra #genocidio #mulheresnegras #guerreirasdetejucupapo
REFERÊNCIAS:
Produções acadêmicas:
Clara Camarão. Fundação José Augusto, A Mulher Potiguar – Cinco Séculos de Presença. Disponível em: DOC000000000108188.PDF (adcon.rn.gov.br). Acesso em 18 abr 2024.
RELATÓRIO DE FISCALIZAÇÃO – RESUMIDO, CT nº. 9841/2010-5, Fiscalização nº. 290/2010. Tribunal de Contas da União. Disponível em: sintetico_2010_290.pdf (camara.leg.br). Acesso em 18 abr 2024.
ROSA, Arão da. A língua Kaingang na educação infantil da Escola Gomercindo Jẽtẽ Tenh Ribeiro da Terra Indígena Guarita. UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2015. Disponível em: Arao-da-Rosa.pdf (ufsc.br). Acesso em 18 abr 2024.
SCHUMAHER, Schuma. Gogó de Emas: a participação das mulheres na história do Estado de Alagoas. Rio de Janeiro: REDEH e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
Sites:
FERNANDES, Fernanda. Quem foi Clara Camarão, heroína indígena brasileira. MultiRio: 13 de outubro de 2020. Disponível em: Quem foi Clara Camarão, heroína indígena brasileira (rio.rj.gov.br). Acesso em 18 abr 2024.
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Marta Moura