• Coincidentemente Negros? O colonialismo nas relações entre clientes, entregadores, supervisores e a iFood

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15 de abril de 2024 by 

Emilson Gomes Junior

Recentemente, notícias por todo o país demonstram a precariedade vivida pelos entregadores do iFood que atuam no Brasil. Em Entregador é impedido de subir em elevador de prédio no Rio de Janeiro, nos deparamos com o caso vivido por João Eduardo Silva, de 18 anos, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. João publicou um vídeo de 7 minutos, mostrando a cliente dizendo “Você não vai subir aqui não”, impedindo sua entrada no elevador. Destaca-se que a cliente do iFood estava praticando uma medida ilegal no Rio de Janeiro, pois desde 2023 o prefeito Eduardo Paes sancionou uma lei que proíbe o uso dos temos “elevador social” e “elevador de serviço” em prédios privados da cidade do Rio. João inclusive informou isso à cliente: “Isso é uma lei agora. A senhora não sabe? Se a senhora não sabe, está sabendo agora. E eu vou subir sim”

Ele prestou queixa na polícia, e o caso foi registrado como injúria por preconceito. Nas palavras de João: “Ela fez tanta questão de uma coisa tão fútil, sabe? Um pouco pela minha cor também e pela classe social, talvez por eu ser entregador. É triste, é desgastante também. Desgaste emocional, estou um pouco abalado. A gente acorda cedo para trabalhar, para correr atrás do pão de cada dia e se depara com pessoas assim”. Infelizmente, a discriminação contra entregadores, especialmente negros, é uma realidade particularmente brasileira, ainda mais aguda no Rio de Janeiro. Na matéria Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador, já foram notificadas 13.576 denúncias de ameaça e agressão física à plataforma só em 2024 – e a matéria foi publicada em 7 de março deste ano. Dentre os quase 14 mil casos, 16% aconteceram porque o cliente exigiu que os entregadores subissem nos apartamentos. A plataforma chegou a lançar a campanha Bora Descer para conscientizar as pessoas sobre a própria política da plataforma, de que o entregador não é obrigado a subir no apartamento das clientes.

A reportagem destaca que o Rio de Janeiro é considerado o lugar mais crítico. Não ironicamente, é justamente a cidade que foi capital do Império brasileiro, e que constrói sua identidade em torno de seu passado escravocrata. Estes elementos não parecem ser coincidência, considerando o recente caso de Nilton Ramos de Oliveira, baleado por Roy Martins Cavalcanti. O cabo da Polícia Militar baleou o jovem de 24 anos após o mesmo se recusar a subir com a entrega, seguindo os protocolos da plataforma iFood. Na matéria ‘Menino de coração gigante’, diz amigo de entregador baleado; motoboys fazem protesto onde rapaz foi alvejado por PM, o G1 apresenta uma reportagem do RJTV, demonstrando algumas cenas da violência verbal sofrida por Nilton, conhecido como Sorriso, antes de ser baleado pelo cliente do iFood. No mesmo local da ocorrência, na Vila Valqueire, Zona Oeste do Rio, entregadores protestaram. Destaca-se que este é apenas mais um caso dentre muitos: nos últimos 8 anos, 44 entregadores foram baleados na Região Metropolitana do Rio; O Instituto Fogo Cruzado informa que 36 dessas vítimas morreram.

Após Nilton ser baleado, segundo a reportagem PM que atirou em entregador de aplicativo no Rio tem conta banida de plataforma, o cabo Roy Martins Cavalcanti teve sua conta banida. A empresa estaria em contato com a família, que recebe apoio jurídico através de uma advogada da Black Sisters in Law. Felizmente, Nilton finalmente abriu os olhos após sua segunda cirurgia, no Hospital Salgado Filho. O disparo sofrido por ele atingiu a veia femoral, tendo o projétil atravessado a perna do jovem Sorriso. Sobre o autor do disparo, ele se apresentou na 30ª DP – Delegacia de Polícia, em Marechal Hermes. A 28ª DP abriu um inquérito para investigação, e a Corregedoria da Polícia Militar abriu um procedimento para apuração.

Ainda no Rio de Janeiro, outro caso ganhou as redes sociais. No texto Após entregador se recusar a subir, mulher desce com cutelo para receber pedido em São Conrado; veja vídeo, mostra entregador após se recusar a subir, podemos assistir uma cliente do iFood indignada pelo entregador não subir em seu apartamento, em São Conrado, Zona Sul. “Que palhaçada é essa agora que não sobe na casa da pessoa?”, perguntava a mulher gritando, desinformada sobre a política da plataforma que ela própria usa. O entregador Gabriel Jesus, de 22 anos, relata que simplesmente chegou no prédio informando ao porteiro que gostaria do código para deixar o pedido, pois não subiria. Automaticamente, o porteiro interrompeu Gabriel, informando que a cliente não passaria o código se o entregador não subisse. Assim, Gabriel informou que cancelaria o pedido caso não recebesse o código. Após diversas agressões verbais, com seu cutelo em mãos, a cliente finalmente passou o código. O iFood novamente publicou nota informando seu apoio através das Black Sisters In Law, destacando também a Central de Apoio Jurídico e Psicológico da empresa.

São Conrado parece ser o epicentro desses casos. Vide a matéria Mulher que chicoteou entregador em São Conrado é banida do iFood, relembrando da nutricionista Sandra Mathias Correia de Sá, que saiu às ruas chamando entregadores de “lixo”, mandando-os “voltarem para a favela”, os ameaçando com suas relações familiares e políticas por ser “prima de um delegado da polícia federal e do governador” Cláudio Castro. Sandra puxou a camisa de um entregador e lhe deu socos, logo em seguida pegando a guia da coleira do seu cachorro para chicotear suas costas – e chicotear as costas de um negro parece familiar, não? O motivo de tudo isso foi Sandra não ter gostado de ver entregadores na calçada de uma loja (que nem era dela, destaca-se). Max Ângelo, uma das vítimas, declarou: “Eu me senti muito mal, porque pareceu que ela tava dando chicotada num escravo. O escravo não fez um serviço direito, ela foi lá e deu chicotada nele. Me senti muito humilhado.” O iFood providenciou uma moto e uma bicicleta elétrica a Max, que se emocionou ao recebê-las. Ele revelou ao UOL que vinha pedalando 12 horas por dia, podendo chegar a 16 ou 18 horas, para pagar as contas.

Ainda que tantos entregadores, como Max, trabalhem mais de 8 horas por dia, eles não têm recebido o amparo que um trabalhador merece. Isso é exposto em “A sensação é que nossa situação é análoga à escravidão”, declara entregador de aplicativo. Entre 29 de março e 1º de abril de 2022, entregadores de todo o Brasil realizaram paralisação nacional por direitos como acesso a água potável e banheiro, a garantia da revisão anual das taxas de entrega e a transparência e automação do sistema de cálculos de recebimentos aos entregadores. Abel Santos, vice-presidente da Associação de moto Frentistas Autônomos e Entregadores de Aplicativos do Distrito Federal, afirmou: “É difícil falar que estamos trabalhando, a sensação é que nossa situação é análoga à escravidão, porque não temos amparo nenhum”. Ele relembra que aquele era o quinto breque, considerando o início das articulações dos entregadores no início da pandemia, quando começaram a lutar pelos efeitos necessários para combater o vírus.

Na entrevista, Abel revela também que os trabalhadores da Nuvem tinham menos prioridade em relação aos OLs – Operadores Logísticos. Assim, os trabalhadores Nuvem, que trabalham conforme seus próprios horários, estavam em desvantagem para receberem chamados. Abel também pontuou que, se o entregador estivesse com duas entregas para endereço igual ou próximo, uma das taxas de entrega seria paga no valor de apenas 30% ou 50% do total. Abel revela que acompanhou o estudo organizado pela Oxford, apontando que os aplicativos brasileiros não oferecem condições mínimas de trabalho. Ele relata que os constrangimentos e impedimentos para acesso ao banheiro, além da falta de acesso a água, são fatores para construir a realidade observada por Oxford. Ele também destaca que, em caso de acidente, o entregador precisa arcar com toda a despesa médica para então solicitar um reembolso, um processo burocrático e desgastante. Pior ainda: entregadores não têm direito à previdência, ao INSS, o que significa a falta de acesso a uma série de direitos. Reflexo disso, o entregador acidentado tem que arcar com os reparos da moto e com os dias não trabalhados. Inegável o desconforto psicológico, físico e emocional desses trabalhadores ao retornares de acidentes de trabalho, precisando trabalhar ainda mais para compensar os dias não trabalhados por força de acidentes de trabalho.

Os entregadores OLs podem não ter contrato de trabalho assinado, mas com certeza têm patrões. E patrões que negam o acesso desses trabalhadores a greves. Conforme exposto em “Sistema jagunço”: Por que o iFood tenta esconder sua relação com empresas intermediárias (OL)?, o economista Marcio Pochmann afirma que os centros urbanos vivem uma “guerra civil pelo emprego […] coordenada pelo que denominamos sistema jagunço no Brasil”. No caso da iFood, 20% dos trabalhadores são OLs. Com jornada fixa agendada previamente, eles respondem hierarquicamente a um supervisor, o “líder de praça”, ou também simplesmente OL. Sem férias, folga remunerada ou salário fixo, esses entregadores iniciam seu trabalho na sede fixa do OL. Sem opção de rejeitar corridas ou mudar seus horários, esses entregadores são penalizados se descumprem regras: o OL aplica o “gancho”, deixando o trabalhador fora da escala seguinte; o iFood bloqueia temporariamente o aplicativo, de 30 minutos a 3 horas. Nesse sentido, a reportagem revelou que um entregador teve seu perfil na plataforma transferido para “indisponível” por seu supervisor OL após ele aderir à greve dos entregadores.

Na matéria, Leo Vinicius Liberato, doutor em Sociologia Política e pesquisador em segurança e saúde no trabalho, revela: “O iFood não cria, mas se utiliza de uma situação de subemprego em massa, em que as pessoas estão se submetendo a trabalhos extremamente precários e à margem da legislação. […] E o que está à margem é um campo aberto para ser controlado por um sistema de jagunço para aferir a força de trabalho.” Isso se mostra através dos áudios que circularam no WhatsApp às vésperas da greve marcada para 18 de julho de 2021, no Rio de Janeiro. Um deles direcionava: Já vai avisando para a frota que o fato deles alegarem que não vão rodar para não ter problema, isso aí é uma manifestação camuflada e a gente não pode concordar com isso. […] Eu estou ouvindo rumores que os [entregadores] OLs estão aderindo a esse movimento. Isso é muito complicado. Então, já vamos organizando para a gente minimizar isso, tá ok?”

Apesar do cenário nefasto, devemos relembrar que estes trabalhadores podem e devem acessar os seus direitos de outras formas, como a via judicial. Um exemplo é o caso de Leandro, destaque da matéria, autor de ação judicial para reconhecimento de seus direitos trabalhistas referentes ao período de maio de 2019 e junho de 2020, quando trabalhou para a OL E.D. Goulart (sim, OL pode ser também uma pessoa jurídica). O autor conseguiu o reconhecimento do vínculo trabalhista em 1ª instância, de forma que receberá os valores devidos por seu trabalho. Destaca-se, no entanto, a importância de mobilizações prudentes, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Conforme a reportagem A inovadora parceria entre o iFood e as milícias, no Rio de Janeiro, os supervisores OL do iFood teriam usado a milícia fluminense para impedir protestos e piquetes, em julho de 2021. Segundo Diplomatique Brasil, o iFood teria dado preferência à modalidade supostamente gerida com a participação da milícia.

É possível refletir sobra a importância da modalidade OL para a iFood na medida em que, mesmo representando a minoria dos trabalhadores, são justamente os supervisores OL, pessoas físicas e jurídicas, aqueles que alegadamente conseguem influir negativamente na luta dos entregadores pela conquista de seus direitos. Assim, eles mantêm sob controle uma parcela significativa de entregadores, que coagem a trabalhar diariamente e sem acesso a direitos trabalhistas. Para além disso, também impedem a articulação política até mesmo de trabalhadores nuvem, que nem sequer estão subordinados a OLs, possivelmente em associação com milicianos. É desastrosa a realidade vivida pelos entregadores de aplicativos no Brasil, e devemos nos organizar para assegurar realidades dignas a todos esses trabalhadores.

Palavras-Chave/TAG: #entregadores #trabalhadores #ativismo #racismo #igualdade #ifood #greve #breque #foodtech #politica

REFERÊNCIAS:

  • Sites:

BOECKEL, Cristina; NASCIMENTO, Rafael; ALVES, Luana. ‘Menino de coração gigante’, diz amigo de entregador baleado; motoboys fazem protesto onde rapaz foi alvejado por PM. G1 Rio e TV Globo: Rio de Janeiro, 5 de marçço de 2024. Disponível em: ‘Menino de coração gigante’, diz amigo de entregador baleado; motoboys fazem protesto onde rapaz foi alvejado por PM | Rio de Janeiro | G1 (globo.com). Acesso em 11 mar 2024.

CARDOSO, Rafael. Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador. Agência Brasil, Notícia Preta: Rio de Janeiro, 7 de março de 2024. Disponível em: Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador (noticiapreta.com.br) e Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador | Agência Brasil (ebc.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

CASTRO, Mariana. “A sensação é que nossa situação é análoga à escravidão”, declara entregador de aplicativo. Brasil de Fato: Imperatriz, 1 de abril de 2022. Disponível em: “A sensação é que nossa situação é análoga à escravidão”, | Geral (brasildefato.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

Entregador agredido por ex-atleta no Rio ganha bicicleta e moto. UOL: São Paulo, 14 de abril de 2023. Disponível em: Entregador agredido por ex-atleta no Rio ganha bicicleta e moto (uol.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

Entregador baleado por PM abriu os olhos e conversou com família, diz tio. UOL: São Paulo, 5 de março de 2024. Disponível em: Entregador baleado por PM no RJ abriu os olhos e conversou com família (uol.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

Entregador é impedido de subir em elevador de prédio no Rio de Janeiro. UOL: São Paulo, 6 de fevereiro de 2024. Disponível em: Entregador é impedido de subir em elevador de prédio no Rio de Janeiro (uol.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

LIBERATO, Leo Vinicius. A inovadora parceria entre iFood e as milícias. Le Monde Diplomatique Brasil: 23 de julho de 2021. Disponível em: A inovadora parceria entre o iFood e as milícias – Le Monde Diplomatique. Acesso em 11 mar 2024.

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MONCAU, Gabriela. “Sistema jagunço”: Por que o iFood tenta esconder sua relação com empresas intermediárias (OL)? ABET – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho: São Paulo, 16 de abril de 2022. Disponível em: “Sistema jagunço”: Por que o iFood tenta esconder sua relação com empresas intermediárias (OL)? (abet-trabalho.org.br). Acesso em 11 mar 2024.

Mulher que chicoteou entregador em São Conrado é banida do iFood. UOL: São Paulo, 15 de março de 2023. Disponível em: Mulher que chicoteou entregador em São Conrado é banida do iFood (uol.com.br). Acesso em 11 mar 2024.

SANTO, Thaís Espírito. PM que atirou em entregador de aplicativo no Rio tem conta banida de plataforma. G1 Rio: Rio de Janeiro, 6 de março de 2024. Disponível em: PM que atirou em entregador de aplicativo no Rio tem conta banida de plataforma | Rio de Janeiro | G1 (globo.com). Acesso em 11 mar 2024.

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