
Professora, economista e política
Maria da Conceição de Almeida Tavares nasceu em Anadia, no centro-oeste de Portugal, em 24 de abril de 1930. Filha de Fausto Rodrigues Tavares e de Maria Augusta de Almeida Caiado. Sua mãe era católica e seu pai, um anarquista que acolheu refugiados da Guerra Espanhola, em plena era ditatorial de Salazar. Casou-se duas vezes, teve dois filhos e dois netos. É difícil encontrar detalhes sobre sua infância. Sua vida acadêmica parece atiçar mais o interesse das leitoras que acompanham a sua trajetória. Frequentou a Universidade de Lisboa, tendo iniciado o curso de Engenharia e posteriormente transferindo para Matemática, concluindo em 1953. Sufocada pela ditadura salazarista e perseguida pelos contatos com comunistas relevantes da época, como Bento Caraça, deixou Portugal. Chegando no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1954, numa terça-feira de Carnaval, a cientista instantaneamente se identificou com o Brasil, conforme revela em uma entrevista à Boitempo. Ela vinha grávida da sua primeira filha, junto ao marido, e talvez não imaginasse o impacto que teria no país em que chegava.
Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil em Dicionário Mulheres do Brasil revelam que Conceição “viveu a euforia dos anos dourados do governo Juscelino Kubitscheck e acreditando na força do povo solicitou a nacionalidade brasileira”. Três anos depois de sua chegada no Rio de Janeiro, em 1957, matriculou-se, no curso de Economia na Universidade do Brasil, hoje UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. No entanto, importa lembrar que ela não conseguiu equivalência de diplomas, de forma que não pôde imediatamente dar aulas em universidades. Por isso, antes de iniciar Economia, Conceição Tavares começou a trabalhar como estatística no INC – Instituto Nacional de Imigração e Colonização, atual Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Logo após se graduar na antiga UFRJ, se tornou a primeira professora da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas. Antes disso, foi assistente do então professor titular Octávio Gouvea de Bulhões. Outro pioneirismo de Maria da Conceição Tavares foi contribuindo com a ONU. Ela foi a primeira mulher a trabalhar na Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe (CEPAL), criada em 1948 para promover a cooperação voltada ao desenvolvimento regional. Imagina-se o quanto era reconhecida a desde jovem a pesquisadora e intelectual, que em poucos anos alcançou espaços até antes tidos como masculinos.
Seu pioneirismo iniciou no instante em que ingressou no curso de Economia no Brasil, posto que as mulheres ainda hoje representam apenas cerca de 35% de estudantes de Ciências Econômicas e Sociais. Mas, claro, Maria da Conceição Tavares não foi pioneira apenas por isso. Ela foi uma das primeiras pessoas, de quaisquer gêneros, a se graduar com a honraria summa cum laude na antiga UFRJ – hoje, a UFRJ concede este título a estudantes que se graduam com o coeficiente de rendimento acumulado igual ou superior a 9,5, e já naquela época devia ser este o parâmetro, senão mais rigoroso. Não à toa, em 1958, ela se tornou analista-matemática pelo BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, fundado em 1952. Lá, trabalhou até 1960, elaborando estudo matemático sobre a distribuição de renda no Brasil.
A brilhante estudante se tornou em fervorosa professora. Ela fundou, ao lado de colegas, as pós-graduações da Unicamp – Universidade de Campinas e UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. No ano seguinte, foi contratada como assistente de Anibal Pinto. Mas seu brilhantismo não foi visto com bons olhos por todos, considerando que sofreu perseguição da ditadura militar enquanto chefiava o Escritório da Cepal no Brasil, após Anibal Pinto voltar a Santiago, Chile. Após negociações com o Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a Cepal foi transferida para Brasília, e ela foi para o Chile, se tornando professora da Escolatina – Escuela de Estudios Latinoamericanos para Graduados, da Universidade do Chile. Suas falas, seminários, palestras para estudantes brasileiros que vivam no exterior não eram bem vistas pelo governo autoritário instalado no Brasil.
Infelizmente, a ditadura militar brasileira fez com que Maria da Conceição Tavares desaparecesse em novembro de 1974. Isto porque sua licença de afastamento da UFRJ expirou em março de 1973. Retornando ao Brasil para lecionar a pesquisar, provavelmente reflexo de sua atuação política em nível internacional, Maria da Conceição Tavares se tornou alvo, e foi presa. Após alguns dias, o então presidente da república Geisel mandou solta-la, após interferência dos ministros Mário Henrique Simonsen e Severo Gomes que solicitarem a sua libertação. A partir desse episódio, Conceição não mais saiu do Brasil a trabalho. Focou na UFRJ e na Unicamp. Além de ter ajudado a fundar a pós-graduação em Economia nessas universidades, ela participou da criação do próprio curso de Economia da Unicamp.
Entrevistada pela Boitempo, Conceição, aos 94 anos, relembrou-nos que deu muitas entrevistas após o Plano Cruzado, aparecendo constantemente na mídia. Ela não podia sair na rua que todos a reconheciam na época. A professora relembra que eram especialmente as mulheres que manifestavam admiração por ela. Podemos refletir que o povo brasileiro se apaixonou por Conceição por causa de seu discurso contudente, crítico aos falsos economistas, meramente tecnocratas, que argumentavam ser necessário primeiro acumular riqueza para depois distribuí-la ao povo. Inflamada e séria, Conceição aparecia na televisão defendendo a dignidade de vida do povo e a democracia.
Sobre a democracia, aliás, Maria da Conceição Tavares disparou, quando ainda era Bolsonaro o presidente: “O trem da redemocratização saiu do trilho. Só há direitistas agora. Nunca tivemos um homem de direita no poder como este que está aí. Isto não tem precedente histórico, nem na ditadura. Este governo que está aí é um espanto. A desgraça é dar um recuo desses. É difícil de entender a última eleição. Haddad poderia ser ou não uma figura simpática, até era, mas não exportava o ódio. Espero que não, mas, sim, pode ser que tenhamos retornado a algumas bases de 1964. Pode ser que a redemocratização tenha sido apenas um soluço nessa dinâmica, eu espero que não. A direita voltou muito violenta.” Sem sombra de dúvidas, sua sabedoria e seu brilhantismo apenas se apuraram com o passar das décadas, nos oferecendo uma análise cirúrgica do final dos anos 2020.
A intelectual reuniu admiradores ao longo da carreira, como Cláudio de Moraes, professor de Macroeconomia e Finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da UFRJ. Ele descreve Conceição como extremamente culta, e relembra que ela tinha diversos alunos que a admiravam. Gilberto Braga, professor titular de controladoria e contabilidade do Ibemec – Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais confirma o que já falamos aqui: “Ela sempre defendeu o papel do Estado como indutor do desenvolvimento e da despesa pública como fator de geração de riqueza econômica. Ela se contrapunha ao pensamento mais liberal que defende um equilíbrio fiscal mais rígido”. Ele mesmo teve Conceição Tavares como patrona de sua turma na Ucam – Universidade Cândido Mendes. Para a Agência Brasil, ele afirmou que a intelectual escreveu alguns livros obrigatórios para a formação de economistas brasileiros, como Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro. Publicado em 1972, este livro teve 13 edições nacionais e 2 mexicanas. Inicialmente publicado como o ensaio Auge e declínio da substituição de Importações, ele analisa o arranco da industrialização nacional pela perspectiva do pensamento clássico cepalino.
Conceição Tavares é reconhecida por suas 2 teses de livre docência: (i) Acumulação de capital e industrialização no Brasil, de 1974, através da FEA-UFRJ; e (ii) Ciclo e Crise: o movimento recente da Economia Brasileira, de 1978, para se tornar professora titular na UFRJ. Para a página Teoria e Debate, Hildete Pereira de Melo relembra que ela também escreveu a coluna Lições Contemporâneas para a Folha de S. Paulo, durante 11 anos.
Nesta época, Luís Inácio Lula da Silva e o PT – Partido dos Trabalhadores surgiram a nível nacional como a opção da esquerda para construir a democracia. Entusiasmada, Conceição se filiou ao partido em 1994, concorreu ao cargo de Deputada Federal pelo PT-RJ e venceu as eleições. Trabalhou como Deputada entre 1995 e 1999. Em entrevista, ela revela que sua campanha foi baseada em muitas palestras em espaços públicos como universidades, institutos de pesquisa e empresas públicas. Os eventos estavam sempre lotados. Já as doações de campanha foram feitas por ex-alunas e ex-alunos da UFRJ e (fundamentalmente, ela destaca) da Unicamp. Ela guardou a camiseta de campanha até os dias de hoje. Reflexo de sua oratória e de seu brilhantismo, Maria da Conceição Tavares angariou votos da esquerda e da direita, na sua campanha enraizada nos ambientes intelectuais do Rio. Como nos mostram Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil “no Parlamento destacou-se como crítica feroz da estratégia econômica adotada pelo governo, chamando atenção para os riscos da política cambial e para a destruição do patrimônio público nacional”
Retratando a sua vida, o cineasta José Mariani produziu o documentário Livre Pensar em 2019. Nele, ela revelou sua visão ao chegar no país: “Acreditei que o Brasil iria ser uma democracia e uma civilização original dos trópicos. Eu realmente acreditei”. No documentário, ela também refletiu sobre os desafios enfrentados antes e depois de chegar ao Brasil: “Quando saí de Portugal, os problemas lá eram democracia, humanismo, terror. Já no Brasil, eram injustiça social, o atraso e a presença do imperialismo”. Destemida, ela enfrentou os problemas brasileiros de frente, inclusive ajudando execução do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Ela tabém foi membro do Geimape – Grupo Executivo de Indústria Mecânica pesada, um dos coletivos que surgiram no governo JK. Segundo Juliana Moraes para o UOL, ela trabalhava no Conselho do Desenvolvimento, que respondia diretamente à Presidência da República e era encarregado de elaborar e coordenar os programas setoriais definidos pela política econômica do governo.
Impossível falar de sua enorme contribuição intelectual sem falarmos de seus títulos. Maria da Conceição Tavares, além de Matemática e Economista Política, se tornou especialista, em 1960, pela Comision Economica Para America Latina, mestra em 1972 pela Universite de Paris II, e doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia em 1975 pela UFRJ – onde também se tornou Professora Emérita, é claro. E por falar em títulos, ela é vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Economia de 1998.
A publicação A biographical dictionary of dissenting, em 2000, a citou como uma das 4 únicas mulheres entre 100 economistas heterodoxos mais importantes do mundo. Ela foi a única economista da América Latina na publicação, uma das economistas mais famosas da história do Brasil e, provavelmente, a de maior impacto sociocultural, considerando que influenciou ao menos 2 presidentes da república: Luís Inácio e Dilma Rousseff.
No sábado de 8 de junho de 2024, Maria da Conceição Tavares faleceu na cidade de Friburgo, onde estava internada. Deixou dois filhos: Laura e Bruno. Dissemos adeus à portuguesa naturalizada brasileira, que chegou ao Brasil com 23 anos fugindo da ditadura salazarista, que se debruçou na Economia Política aqui no Brasil. Por enquanto, ficam apenas as lembranças daquela que marcou o desenvolvimento intelectual do Brasil, e que trabalhou no BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social desde que se chamava apenas BNDE. Pioneira em tantos sentidos, ela nos deixa com saudades de sua grandiosidade, ainda que saibamos da naturalidade de sua partida, de seu descanso, tão merecido depois de décadas de explosiva vivência intelectual. Para matarmos um pouco as saudades, recomenda-se a leitura de Maria da Conceição Taves: Vida, ideias, teorias e políticas, organizado por Hildete Pereira de Melo. Uma leitura riquíssima para todos nós, fascinados pela intelectual que é fenômeno nacional.
Em um dos diversos vídeos que circulam suas falas na internet, Maria da Conceição Tavares destacou que a economia deveria resgatar o seu nome original: Economia Política. Ela destacava que economistas que não pensavam na responsabilidade social relacionada a este estudo são apenas tecnocratas, e não economistas. Neste sentido, devemos abraçar os ensinamentos de Maria da Conceição Tavares, utilizando a economia para o enfrentamento ao neoliberalismo, sem reproduzir a demagogia de que o país precisa crescer economicamente antes de garantir a distribuição de renda e acesso pleno a direitos. Ficam as saudades da matemática e economista que nos ensinou lições importantes, como a lição contida na sua frase “Ninguém come PIB”, para avançarmos política, social e academicamente, rumo à um cenário justo e igualitário, em defesa da democracia.
Texto escrito por: Emilson Gomes Junior
Palavras-Chave/TAG: #economiapolitica #matematica #magisterio #professora #classismo #desigualdadesocial #lutadeclasse #ditaduramilitar #onu #feminismo
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
MELO, Hildete Pereira de. Maria da Conceição Taves: Vida, ideias, teorias e políticas. Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, Centro Internacional Celso Furtado de Políticaspara o Desenvolvimento: Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: LivroMCT.pdf (ufrj.br). Acesso em 1 jul 2024.
SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
- Sites:
COSTA, Gilberto. Conceição Tavares: economistas apontam legado para repensar Brasil. Agência Brasil: 9 de junho de 2024. Disponível em: Maria da Conceição Tavares – vida, ideias, teorias e políticas – Expressão Popular (expressaopopular.com.br). Acesso em 1 jul 2024.
COUTINHO, Sidney. Adeus a Maria da Conceição de Almeida Tavares. UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro: 8 de junho de 2024. Disponível em: Adeus a Maria da Conceição de Almeida Tavares – Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj.br). Acesso em 1 jul 2024.
Diplomas de Dignidade Acadêmica. UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: PR1 – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1 (ufrj.br). Acesso em 1 jul 2024.
Maria da Conceicao de Almeida Tavares. Escavador. Disponível em: Maria da Conceicao de Almeida Tavares | Escavador. Acesso em 1 jul 2024.
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES. Câmara dos Deputados. Disponível em: Biografia do(a) Deputado(a) Federal MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 1 jul 2024.
MELO, Hildete Pereira de. Maria da Conceição de Almeida Tavares (1930 – 2024): uma precursora! Teoria e Debate: 19 de junho de 2024. Disponível em: Teoria e Debate | Maria da Conceição de Almeida Tavares (1930 – 2024): uma precursora! – Teoria e Debate. Acesso em 1 jul 2024.
MORAES, Juliana. Maria da Conceição formou economistas e chamou Bolsonaro de fascista. UOL, Economia: 8 de junho de 2024. Disponível em: Maria Conceição Tavares formou líderes de esquerda e critica bolsonaro (uol.com.br). Acesso em 1 jul 2024.
Morre professora Maria da Conceição Tavares, referência da economia brasileira. Unicamp – Universidade de Campinas: 8 de junho de 2024. Disponível em: Morre professora Maria da Conceição Tavares, referência da economia brasileira – Portal Unicamp. Acesso em 1 jul 2024.
OSÓRIO, Luiz Felipe; METRI, Maurício. Maria da Conceição Tavares: Eu não desisto deste país | Entrevista Margem Esquerda. Blog da Boitempo: 26 de abril de 2024. Disponível em: Maria da Conceição Tavares: Eu não desisto deste país | Entrevista Margem Esquerda – Blog da Boitempo. Acesso em 1 jun 2024.