Dulce Pereira
Publicado originalmente na coluna Em País, 26.01.2023 https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/eles-sao-brasileiros/
Cocares, turbantes e tranças como marca de poder e não como representação caricata, mulher negra confirmando o presidente e demarcando suas responsabilidades como chefe de Estado. Cerca de vinte e nove por cento do comando do governo é de mulheres. Ainda, a estratégia conciliatória do presidente torneiro mecânico nordestino, prevaleceu sobre os interesses permanentes de grupos do poder financeiro, políticos e demais agentes da direita, articulados em projeto nazifascista que incluiu tentativa de golpe terrorista com depredação dos prédios públicos do centro do poder de Estado. Perdurará a união institucional para que haja governabilidade democrática? Que perspectivas os intensos 26 primeiros dias de governo nos inspiram? O ano ainda é novo, muito aconteceu, no entanto, 339 dias de vida nos esperam.
A começar, o atentado que tinha o objetivo de produzir um golpe, expõe o que foi feito no governo Bolsonaro: desmonte, desconstrução das instituições e estímulo ao ódio! As imagens da destruição são retrato simbólico do que o governo anterior fez com o Executivo. O relatório do grupo de transição, que é apenas uma visão geral da estrutura, mostra o estrago indica que há que se fazer um inventário público. Onde estavam as instituições de fiscalização e controle? À medida que a pressão e denúncias da oposição ao então governo Bolsonaro, era desqualificada pela base bolsonarista, tratadas como sendo de interesse partidário, a fiscalização do governo, sob responsabilidade do congresso, foi cada vez mais pífia. Teve pouca relevância além da CPI da Covid. O projeto de genocídio ao povo Yanomami e outros povos originários, como a fome e pobreza imposta a povos negros em áreas rurais, onde as terras são contaminadas ou invadidas, tão denunciados, desmascaram a intenção de eliminação de brasileiros para atender perversos interesses de poder, movidos por ideologia nazifascista. Por isso a destruição das instituições. E o Congresso votou várias vezes a favor do desmonte.
Qual o nível de compromisso agora, após o lastimável diagnóstico da realidade institucional, exposta a prevaricação até dos responsáveis pela manutenção da ordem e segurança na capital federal, com a reestruturação do Executivo e com as necessárias reformas? Haverá reformas que potencializem o Estado Democrático de Direito, com capacidade de precaução e prevenção de desastres, terrorismo, riscos climáticos e de ataques à democracia? Reformas fundamentais que vão da fiscal à das Forças Armadas, do sistema penal, do sistema de justiça e outras, para que a nação seja servida por um estado cidadão? Isso importa para o povo representado, no executivo e no legislativo, agentes públicos, negros e indígenas, empossados a partir do dia 1 de janeiro. Todavia, será que a nova Câmara e o Senado serão capazes de tornar a republiqueta comandada exclusivamente por homens brancos em República, 200 anos depois do ato formal? A contribuição de parlamentares negras, negros e indígena, minoritários, será devidamente considerada, com intencionalidade republicana?
As ministras Anielle Franco e Margarete Menezes, também o ministro Silvio Almeida, com suas capacitadas equipes, assumem funções executivas, apesar dos desafios, com as maiores possibilidades de ação política e de poder no governo, que os coletivos nacionais que compõe a base da pirâmide socioeconômica, jamais tiveram no Brasil. Contarão também com o suporte legislativo de bancadas lgbtqia+, indígena e de uma bancada negra elevada qualidade política – excluindo-se os mentirosos autodeclarados negros. No entanto, a estabilidade das políticas públicas que devem entregar à população, está subordinada à estabilidade democrática, à justiça socioambiental e climática e à reorganização do Estado.
O presidente Lula assumiu, após eleito, como indicado no programa Lula-Alckmin, a prioridade de assegurar os direitos constitucionais às pessoas negras; indígenas; lgbtqia+; quilombolas; ribeirinhas; atingidas por barragens; artistas; religiosas de grupos perseguidos e discriminados, como aqueles de matrizes africanas; famílias de executados pela polícia e de mortes não esclarecidas, como é o caso de Marielle Franco e de muitos outros brasileiros vulnerabilizados pela pobreza e ataques de grupos como garimpeiros e corporações que provocam riscos e deslocamentos, além do crime organizado. Nosso país é campeão mundial em homicídios. Apesar da ainda sub-representação de negros e indígenas em relação ao contingente populacional e às complexidades socioeconômicas resultantes do racismo, tais como a exclusão racista das instituições de justiça, não há dúvida que há intenção de mudanças estruturais. Esta intenção é compartilhada pelos demais poderes? E o setor financeiro, que controla o mercado, somar-se-á aos interesses em uma democracia participativa, portanto cidadã? Os bolsonaristas sairão dos esgotos e porões e se organizarão como força política à luz da democracia?
Perguntou-me uma senhora quilombola, do interior do Maranhão, se aqueles brancos destruidores violentos são brasileiros. Disse ainda: Estão falando que são brasileiros, mas são tão brancos e a polícia está tão cuidadosa… Realmente os protagonistas do vandalismo terrorista são brancos, em sua grande maioria. Que contraste com as imagens do povo que marcha em Brasília, ao longo de sua história, por direitos, todas pacíficas. Mil e tantos brancos presos, um deles caricaturado de Índio, uns pouquíssimos negros que precisam ser pinçados pela imprensa, todos foram reunidos e financiados para atentar contra a estabilidade democrática. E sim, são brasileiros. O Brasil precisa do memorial proposto pela primeira-dama Janja e pela ministra Margareth Menezes. E que se inclua um inventário acessível ao conjunto da população por meio de diversas medias. Ademais, há que constar a informação sobre quem são os destruidores e quem financiou os que quebraram o lugar de trabalho das instituições em Brasília.
Um bom sinal de mudança democrática será que se estabeleça que o tratamento dispensado às pessoas que vandalizaram as instituições da capital federal, desde o ato de prisão e dos procedimentos do sistema penal ao sistema carcerário, a partir de agora, torne-se o padrão para todo o Brasil, para todas as pessoas detidas, para todos os capturados pela polícia. Refeições de qualidade nos horários de necessidade humana, audiência de custódia qualificada, ações penais incluindo-se encaminhamento digno e acompanhamento jurídico. Entrar na era do cumprimento da ordem jurídica e do respeito aos direitos humanos, sobretudo do exercício Estado Democrático de Direito, com engajamento dos setores brasileiros que se associaram pela solidez política após o 8 de janeiro, pode ser auspicioso para os próximos dias do ano de 2023 d. C. no Brasil.
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DULCE PEREIRA Arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto, onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental. Primeira embaixadora negra do Brasil, foi secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi suplente do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e presidiu a Fundação Cultural Palmares. Mãe, feminista e ativista do Movimento Negro Unificado, integra várias redes nacionais e internacionais de pesquisadores e cientistas. Seu principal tema de estudos, nos anos mais recentes, têm sido as contaminações e desastres ambientais causados por rompimento de barragens.dulce@congressoemfoco.com.br