• Esperança Garcia (séc. XVIII)

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11 de setembro de 2023 por 

Negra escravizada, considerada a primeira mulher a redigir uma carta na história do estado do Piauí.

Esperança Garcia morou, boa parte de sua vida, na Fazenda Algodões, na cidade de Oeiras, antiga capital da Capitania de São José do Piauí, resultado do desmembramento da região do Maranhão. A Fazenda dos Algodões pertencia ao sertanista Domingos Afonso Mafrense. Após seu falecimento em 1711, a fazenda, junto com outras propriedades rurais, foi deixada como herança para os padres jesuítas. Em 1760, com a expulsão da Companhia de Jesus da colônia brasileira pelo Marquês de Pombal, as terras foram incorporadas ao patrimônio real. Elas foram divididas em três inspeções, e a Fazenda dos Algodões passou a pertencer à Inspeção de Nazaré, sob a administração do Capitão Antônio Vieira de Couto.

Letrada, cogita-se que Esperança Garcia tenha aprendido a escrever com os padres jesuítas, embora fosse proibida a instrução escolar de pessoas escravizadas, pois a educação formal e o letramento estavam restritos à burguesia masculina, em regra. Ao arrepio dos processos de silenciamento e desumanização, em 06 de setembro de 1770, com 19 anos, ela escreveu uma carta dirigida ao Governador nomeado da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Loureço Botelho de Castro.

Na carta, Esperança Garcia denunciava as condições subumanas a que ela e suas companheiras eram submetidas, utilizando-se da questão religiosa para ser ouvida. Uma vez que além de relatar os maus tratos e agressões sofridos por ela, seus filhos e suas companheiras, informava que não era concedido o direito ao batismo e à confissão. Por meio de um dos únicos direitos garantidos às pessoas escravizadas, o direito ao batismo, Esperança Garcia insurgiu-se contra a estrutura escravocrata e excludente, haja vista que sabia ler e escrever, possuía conhecimento dos seus direitos, dominava as formas pelas quais podia postular sua concretização e, sobretudo, denunciando abusos e as violências sofridas.

Esperança também rogava a sua humanização, demandando seu reconhecimento como esposa e mãe. Solicitava que retornasse a viver com seu marido, reconhecendo a família constituída e o direito de ser e existir junto com aqueles que amava, tendo em vista que foi sequestrada do convívio familiar para viver na sede da Inspeção de Nazaré, longe de seus familiares.

Após a denúncia, Esperança Garcia fugiu, recusando a negação da sua existência e humanidade. Pouco se sabe o que aconteceu durante a fuga de Esperança, mas sabe-se que, em 1778, na relação dos trabalhadores da Fazenda de Algodões aparecem registros de um casal que vivia na localidade. A mulher chamava-se Esperança, crioula e escravizada, com 27 anos, e Ignácio, angolano, negro e escravizado, de 57 anos, acompanhados de seus filhos, que poderiam ser nomeados como Paulinha, Pedro ou Manoel, de acordo com os registros da época. É possível ainda que Esperança tenha gestado e parido outros filhos, uma vez que no arrolamento da fazenda existiam muitas crianças e apenas uma outra mulher negra escravizada, Domingas, que possuía 37 anos.

Não se sabe quem nomeou Esperança Garcia, mas essa mulher e mãe experienciou as possibilidades de resistir à desumanização. E na dor, colheu esperança, não o sentimento petrificado, mas uma força mobilizadora e da construção de caminhos alternativos ao terror.

A cópia da carta escrita por Esperança Garcia foi encontrada em um arquivo público do Piauí pelo historiador Luiz Mott, em 1979. A carta é o mais antigo documento encontrado de reivindicação de uma pessoa escravizada a uma autoridade local.

Apenas após 247 anos da redação da carta e 38 anos de sua descoberta  no arquivo público do Piauí, a carta foi considerada a primeira petição redigida por uma mulher na história do estado, o que levou ao reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada do Piauí pela OAB/PI. O título concedido à Esperança foi fruto do pedido da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra do Piauí.

Até o momento não há o reconhecimento da OAB Nacional, a fim de considerar Esperança Garcia como a primeira advogada mulher do Brasil, tendo em vista que o lugar é ocupado por Myrthes Gomes de Campos que ingressou na advocacia apenas em 1899, 129 anos depois da petição escrita por Esperança Garcia.

A carta de Esperança Garcia simboliza e anuncia uma escrita feminina, apoiada na vivência concreta, reivindicatória e de denúncia de uma realidade opressora e violenta. Atento à importância histórica do documento e às reivindicações dos movimentos negros que, em 1999, conseguiram instituir o dia 6 de setembro, a data em que a carta foi escrita, como o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí. 

No Carnaval de 2019, Esperança Garcia foi homenageada durante o desfile da escola de samba Mangueira que tinha como enredo História para Ninar Gente Grande. O enredo denunciava o silenciamento e o apagamento das lutas e personalidades negras na construção da liberdade e cidadania negra.

A insubmissão de Esperança Garcia representa um símbolo de resistência e de reivindicação de outras formas de ser e estar no mundo. Esperança mobilizou as ferramentas da época para subverter o próprio sistema escravocrata, requerendo o respeito aos direitos precários e provisórios que eram concedidos às pessoas escravizadas.

Através da escrita, Esperança assombrou o sono dos da casa-grande, desestruturando os pactos de privilégio da burguesia.

Palavras-Chave/TAG: #advogada #feminismo #escravizada #resistencia #peticaopordireitos #pioneira

Texto Adaptado do verbete contido no Dicionário Mulheres do Brasil por: Ana Laura Becker, Elaine Gomes, Schuma Schumaher e Sofia Vieira.

Transcrição da carta escrita por Esperança Garcia:

Eu Sou hua escrava de V.S administração do Cap.am Antoº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal.

A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.

A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.

Pello ã Peço a V.S pello amor de Ds e do Seu Valim ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia” (MOTT, 1985).

Carta reescrita com o léxico vigente:

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.

A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha (MOTT, 1985).

REFERÊNCIAS

  • Produções acadêmicas:

COSTA, Francisca Raquel da. A carta de Esperança Garcia e os usos da Memória da escravidão para a construção da identidade negra piauiense. Anais do III Seminário Internacional História e Historiografia. Fortaleza: X Seminário de Pesquisa do Departamento de História da UFC – Universidade Federal do Ceará, 01 a 03 de outubro de 2012.

MOTT, Luís. Piauí colonial. População, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985.

SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.

SILVA, Leandro Alves da. A carta da Esperança.In: FRANÇA, João et al. A Carta de Esperança Garcia: uma mensagem de coragem, cidadania e ousadia. Pernambuco: UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, Ministério da Cultura, Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo, Porto Alegre, 31 jul. 2015.

  • Sites:

Esperança Garcia. Disponível em: Esperança Garcia | Esperança Garcia (esperancagarcia.org). Acesso em 19 jun 2023.

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