• Feminismo online em chamas

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15 de abril de 2024 por 

Joanna Burigo

Publicado em Carta Capital – 20 de julho de 2016. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/feminismo-online-em-chamas/

A internet foi uma das ferramentas mais relevantes para o ativismo feminista dos anos 1990 em diante. Parte significativa dos debates acontece, nacional e internacionalmente, na internet, onde troca-se muito conhecimento, e por onde muita gente se depara com o feminismo pela primeira vez. É também via internet que muitas das discussões espinhosas do feminismo, que precisam acontecer, acontecem. Apesar dos entraves que as plataformas digitais apresentam, e mesmo que nem sempre de forma saudável, nas redes sociais conversa-se muito sobre questões importantes e urgentes do projeto feminista – e, para muita gente, é somente nestes espaços que esses debates se realizam. 

O feminismo é um movimento tão múltiplo e diversificado quanto são as mulheres que o compõem. Não é surpreendente, portanto, que essa diversidade produza tensões e dissidências: é impossível, e indesejável, que um grupo tão plural e diverso alcance concordância unívoca sobre todos os temas. Por isso a importância de aprimorar nossa capacidade de dialogar apesar das discordâncias – ou até mesmo a partir delas. Essa necessidade não é  exclusiva do feminismo online, mas uma característica do debate político da nossa era hiper-conectada. Em 2014, em um artigo intitulado “O feminismo está correndo o risco de se tornar tóxico”, a inglesa Julie Bindel ofereceu algumas críticas contundentes ao que chama de “cultura da superioridade moral” e do “apontamento de dedos”, bastante visível em projetos políticos supostamente progressistas[1]. Bindel sugere que o feminismo pode se tornar repressivo, insinuando que o clima de censura de alguns segmentos periga tomar conta do movimento todo, e atenta para a terrível possibilidade de que transformemos o que deveriam ser debates produtivos em mera caça às bruxas. Para ela, ao perdermos tempo e energia atacando umas às outras – ou nos protegendo umas das outras – perdemos também o foco, que deveria ser o ataque à misoginia institucionalizada.

Neste ponto, seu artigo faz muito sentido. Qualquer militância acometida por delírios egóicos, apontamento de dedos, ou afãs terapêuticos corre o risco de esquecer-se das razões pelas quais milita para tornar-se apenas uma disputa entre quem almeja ser detentora das verdades que sustentam a causa. O que me intrigou, no entanto, foi a cegueira da autora em relação ao próprio insight. Ao categoricamente acusar feministas de não estarem “fazendo” feminismo da forma correta, Bindel revela ter, ela mesma, a propensão que acusa outras de ter: a de querer determinar como ser uma feminista.  Criticar um movimento do qual se participa é uma tarefa dificílima, pois análises exigem distanciamento – e o distanciamento necessário para que uma feminista critique o feminismo exige que a feminista esteja aberta para a forma como outras feministas fazem seus feminismos. Deu nó? Pois é.

Não é Julie Bindel quem decide o que o feminismo é ou não é. E, para elucidar, também não sou eu, nem qualquer outra pessoa. Ninguém pode determinar sozinha como um projeto tão abrangente, diverso e independente deve ou não proceder. As formas como as conversas feministas se desenvolvem na internet são peculiares deste contexto. Estamos conectadas como nunca, e ao invés de me exasperar com os erros desta modalidade de ativismo, por assim dizer, prefiro procurar por suas possibilidades de acerto. As redes sociais, afinal de contas, não vão desaparecer tão cedo. 

O feminismo não é uma empresa, mas sim um movimento orgânico, complexo, e livre de diretrizes institucionais unificadoras. É por isso que é preciso que estejamos preparadas para dialogar – na internet e fora dela – a partir das inevitáveis divergências, e não nos silenciarmos umas às outras por causa delas. É salutar que feministas não sejam apegadas demais à sua própria concepção do movimento, pois é preciso compreender que outras mulheres se engajam na luta a partir de outras motivações, por isso a farão, inevitavelmente, de outras maneiras. Ao acusar o comportamento de certas feministas de tóxico, Bindel parece sugerir que há uma maneira melhor de fazer a luta. E esta maneira, ao que tudo indica, deve ser a dela. E nada pode ser mais tóxico para um projeto que promove a liberdade e direitos do coletivo do que um sujeito tentando cercá-lo com um pensamento totalitário.

O feminismo não é o único espaço político onde acusações internas abundam, e se ser feminista é problematizar, é também assimilar as formas como outras feministas fazem seus feminismos – ou ao menos tentar antes acusá-las de estarem completamente erradas, ou pior: rejeitar que se proclamem feministas. Não é apenas no feminismo que indivíduos são sistematicamente enquadrados nas narrativas simplistas de outrem; vemos isso acontecendo em diversos espaços, do debate político às fofocas sobre celebridade. Não me interpretem mal: é importante criticar o movimento, mas simplesmente atacar pessoas por ações que talvez elas não compreendam completamente, ou por diferirem da sua preferência, é imaturo na melhor das hipóteses e contraproducente na pior. Toda feminista deve ser estimulada a pensar com autonomia, e a falar sem medo.. E isso vale para todas, por isso é imprescindível também que nos lembremos daquela máxima da vovó: quem fala o que quer pode ouvir o que não quer. É aí que o diálogo precisa florescer, e conversar ao invés de sucumbir à tentação de silenciar aquelas com quem não concordamos é um hábito adquirível. 

Ninguém tem controle sobre o feminismo, portanto ninguém pode determinar, definitivamente, o que o feminismo é. Aprender a conviver com essa realidade é, em si só, um passo revolucionário: bradamos que as instituições são machistas, e não podemos esquecer que o próprio conceito de instituição é calcado na lógica patriarcal de dominação. Por isso acho libertador fazer parte de um movimento não institucionalizado, que se autorregula na pluralidade, e que progride a partir de uma diversidade imensa de pontos focais.

Cabe a todas nós fazer do feminismo um movimento melhor? Sim, cabe a mim, cabe a você e àquela mana feminista com quem eu e você não concordamos. E por falar em concordar e discordar: estou com Bindel quando ela declara que o movimento precisa ser constantemente construído a partir do questionamento de pressupostos e truísmos antigos. Mas não posso concordar com sua recomendação, afinal poucas coisas são tão antigas quanto tentar determinar uma única diretriz para um movimento tão múltiplo. É preciso ter autocrítica, mas se o feminismo está correndo o risco de se tornar um mar de bile, não é sendo belicosa a respeito do movimento que se aprimora seu potencial de integração.

Palavras-chave: internet, feminismo e internet, Julie Bindel


[1] Feminism is in danger of becoming toxic. Julie Bindel. The Guardian. 18 de novembro de 2014. Disponível no link https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/nov/18/feminism-rosetta-scientist-shirt-dapper-laughs-julien-blanc-inequality em 17/09/2022.