• “Legendários”: masculinidade em retiro, patriarcado em expedição – Em tempos de retrocesso moral e avanço do fundamentalismo religioso, movimento espetaculoso ganha fôlego 

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23 de maio de 2025 por 

Joanna Burigo

Publicado originalmente no Portal Catarinas em 13/05/2025

Fundado na Guatemala em 2015 por Chepe Tupzu, e trazido ao Brasil em 2017 pelo pastor Ricardo Bernardes, o grupo Legendários oferece “cura” aos homens por meio de desafios físico-espirituais em paisagens naturais. A promessa é transformar homens, famílias e comunidades, e o preço pode ultrapassar os R$80 mil por evento. Com base em princípios cristãos, eles oferecem experiências de imersão vendidas como jornadas de superação rumo à “melhor versão de si mesmo”.

(Uma dessas imersões é chamada “TOP” – Track Outdoor Potential, em inglês. TOP. Essa é a sigla. É curioso ver um grupo de homens supostamente heterossexuais pagando dezenas de milhares de reais para se autodeclararem “top” em retiros masculinos nas montanhas. O fogo no cume arde? Se isso não for sintoma de uma sexualidade em negação, é pelo menos um caso de branding involuntário com sabor de ironia queer.)

O nome “Legendários”, com sua sonoridade grandiosa e marqueteira, já revela a ambiguidade do projeto. Em inglês, legendary evoca heroísmo e feitos notáveis; em português, a palavra remete ao universo das lendas. Mais correto seria “lendários”, mas o termo foi importado para vestir de glória uma ideia antiga: a de que homens precisam ser resgatados por outros homens para assumirem um lugar de liderança espiritual, moral e familiar.

Essa liderança, diga-se, segue moldada a partir do culto ao heroísmo masculino. Os Legendários reverenciam um ideal de masculinidade baseado em virilidade e distanciamento. A figura do homem como guerreiro espiritual é reciclada aqui sem sutileza, como se vulnerabilidade, dúvida e cuidado fossem atributos femininos a serem expurgados. Trata-se de uma masculinidade blindada contra o afeto, resistente ao coletivo, e completamente inútil na vida doméstica.

Reforça-se, assim, a cis-hetero-normatividade excludente e profundamente colonizada. Como aponta Connell, trata-se de uma masculinidade hegemônica, que estabelece padrões inalcançáveis para a maioria dos homens, e apaga outras formas de existência para eles. Homens gays, trans, afeminados, racializados ou simplesmente cansados de performar virilidade não têm lugar nessas montanhas mágicas.

As mulheres, como não poderia deixar de ser, estão ausentes. São mencionadas apenas como beneficiárias passivas da “transformação” dos maridos e pais. O imaginário simbólico é todo masculino: só o homem sobe a montanha, só ele se reconecta com Deus, só ele retorna iluminado. Isso perpetua a ideia de que o universo doméstico e afetivo é feminino, e serve à redenção masculina, mas não tem autonomia simbólica ou papel ativo.

No plano racial a exclusão também é gritante. As lideranças e os rostos midiáticos do movimento são quase exclusivamente brancos, “heterotops”, com corpos normativos e roupagem de atletismo cristão. O sujeito universal promovido pela narrativa do “homem que busca seu verdadeiro eu” é, na verdade, um homem branco com tempo livre e renda alta para bancar um retiro espiritual de luxo. O movimento ignora sistematicamente as vivências de homens marginalizados.

Até mesmo a natureza, elemento central dos retiros, é convertida em ferramenta de purificação individual. A floresta é vista como palco para a iluminação do sujeito cristão, e não como entidade viva e coletiva. Não há qualquer reflexão ecológica nem espiritual que envolva território, povos originários ou crise climática. A natureza é um recurso, não uma relação.

Quando desenvolvem empatia ou espiritualidade, essas qualidades são vistas como conquistas extraordinárias, e não como capacidades humanas universais. A transformação proposta é feita para que os homens se tornem melhores para os outros, não com os outros. 

Falta palavra para descrever esse afã patriarcal. Nem “heteronormativo” nem “homoafetivo” dão conta. O primeiro termo implica a lógica binária macho-homem-masculino/fêmea-mulher-feminino, e a heterossexualidade compulsória — e, nesse tipo de agremiação, a misoginia é tamanha que sequer permite a presença de mulheres. Já o segundo, quando aplicado aqui, pode escorregar para a homofobia, como se a proximidade entre homens fosse algo a ser ridicularizado ou suspeito. Mas é importante lembrar que contextos homoafetivos produzem relações outras, que podem desafiar, e não reforçar os pilares do patriarcado. O que se observa nesses círculos fechados de “transformação masculina” é o afã hegemônico de afeto homogêneo – seletivo entre homens, voltado para o espelhamento e a validação mútua, que deliberadamente exclui mulheres, pessoas LGBTQIA+ e não binárias.

Os valores do grupo reforçam estereótipos binários: o homem deve ser provedor e cultivar relações significativas e equânimes apenas com Deus e outros homens. Às mulheres cabe o papel de aplaudir – como esposas, mães, filhas e irmãs, meros anexos, pano de fundo emotivo para justificar a jornada espiritual deles. 

O que os Legendários vendem é uma fantasia de renascimento, com verniz de retiro selvagem e preço de turismo de luxo, recheado de jargões motivacionais, marketing emocional e simbologia religiosa esvaziada. Uma experiência espetacularizada e altamente rentável para quem a organiza. Mas ser um homem melhor não exige escalada, e sim uma jornada para dentro – de si, do cotidiano da casa, do cuidado. Uma viagem ao centro do patriarcado, para implodi-lo desde seu cerne.

Aqui vai uma lista de sugestões para tal – coisas simples, que todo homem pode fazer para ser melhor, sem precisar pagar para virar “legendário”:

  • Lavar as louças e roupas;
  • Fazer faxina com regularidade, sem esperar pedido, ajuda, ou aplauso;
  • Pagar pensão em dia;
  • Marcar consultas médicas para si, para os filhos e para a parceira;
  • Participar ativamente das tarefas escolares dos filhos;
  • Planejar, preparar e servir refeições equilibradas e saudáveis;
  • Ensinar às crianças noções de higiene e autocuidado, sem delegar à mãe;
  • Aprender a regular suas próprias emoções sem estourar com a família;
  • Cuidar da saúde mental e procurar terapia;
  • Conversar com os filhos sobre consentimento, respeito, racismo, gênero e limites;
  • Ouvir sem interromper e com a intenção de compreender;
  • Lidar com frustrações sem culpar os outros;
  • Assumir a carga mental da casa e dos relacionamentos: saber o que está faltando, vencendo, pendente, precisando de reparo;
  • Levar os filhos na escola, no médico, no dentista, nas atividades extracurriculares;
  • Lembrar datas importantes sem ser lembrado;
  • Organizar os aniversários dos filhos;
  • Dar banho, cortar unhas, pentear os cabelos de quem precisa de cuidados;
  • Assistir programação infantil sem reclamar;
  • Saber a rotina dos filhos (nomes dos professores, amigos, alergias);
  • Cuidar dos idosos da mesma forma que espera que a esposa cuide;
  • Ser presença ativa e afetuosa, e não apenas “provedor”;
  • Conversar sobre divisão de bens, testamento, herança — não deixar tudo para a viúva resolver;
  • Participar da vida dos filhos em reuniões escolares, apresentações e jogos, ou como mediador e pacificador de conflitos;
  • Educar-se sobre feminismo, antirracismo, crise climática e outras desconstruções de padrões e práticas opressivas e de destruição;
  • Respeitar os corpos, mentes e o tempo das mulheres, sem manipulação emocional ou chantagem sexual;
  • Enxergar o próprio privilégio e usá-lo para redistribuir poder, e não para blindar o próprio ego;
  • Não infantilizar a própria ignorância emocional — aprender, evoluir, se responsabilizar;
  • Ensinar outros homens a fazerem o mesmo – e não como guru, mas como aliado para a inclusão e erradicação da violência.

A masculinidade não se resgata na montanha. Ela pode e deve se reconstruir no cotidiano, nos grandes gestos pequenos, em mais silêncio e escuta, com pesos divididos e privilégios repensados. Isso tudo pode ser feito sem desembolsar muito dinheiro. (Mas se quiserem gastar, que seja em projetos feministas, antirracistas, indígenas, LGBTQIA+ ou de combate ao capacitismo.)

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