• Maria Beatriz Nascimento (1942 –1995)

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16 de julho de 2024 por 

Beatriz nasceu em Aracaju, Sergipe, em 17 de julho de 1942, sendo a 8ª filha numa família com 10 crianças. Seus pais, Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, migraram com seus filhos em 1949 para o Rio de Janeiro, onde Beatriz iniciou a sua trajetória acadêmica. Ingresou em 1969 na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, graduando-se em 1971. Durante a faculdade, estagiou no Arquivo Nacional, orientada pelo historiador José Honório Rodrigues, assim como, também se graduou como Técnica de Pesquisa. Destaca-se que Beatriz enfrentou dificuldades financeiras para conseguir se formar, o que demonstra a sua garra e coragem para seguir os seus estudos, sem desistir.

A historiadora, recém-formada, começou a lecionar na rede estadual de ensino fluminense. Logo em seguida, iniciou o seu curso de pós-graduação Latu Sensu em História, na UFF – Universidade Federal Fluminense. Sua dedicação e perspicácia, aliada ao seu espírito de luta, levaram Beatriz a dar enormes contribuições à UFF. Na metade da década de 1970, quando o país ainda vivia sob o regime militar e a repressão corria solta, Beatriz ao lado de seus colegas, pesquisadoras e pesquisadores negros ajudou a fundar o GTAR – Grupo de Trabalho André Rebouças, um dos primeiros espaços coletivos voltado para a luta contra o racismo no âmbito acadêmico. A página virtual Literafro revela que Beatriz Nascimento “foi presença constante na retomada dos movimentos sociais negros organizados, mantendo vínculo inclusive com o Movimento Negro Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, nome mais tarde reduzido para MNU), fundado em 1978.”

Dentre outras experiências profissionais da historiadora, consta a crítica e colagem da obra de José Bonifácio de Andrade e Silva, sob a coordenação de José Honório Rodrigues. Ela também fez a colagem dos documentos referentes a Conselho de Estado no Arquivo Diplomático do Itamarati. Ainda, Beatriz participou da publicação do Senado para o Sexquicentenário, produzindo a obra O Parlamento e a Evolução Nacional, também orientada pelo professor José Honório. Incansável, Beatriz do Nascimento ainda trabalhou como pesquisadora do CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da FGV – Fundação Getúlio Vargas, no Setor de Pesquisa Oral. No Museu Histórico Nacional, ela trabalhou como Documentarista, além de Pesquisadora de Campo para o Projeto Áreas rurais Decadentes – Museu Nacional – Fundação Ford – 1978-1982.

A produção de Maria Beatriz do Nascimento não para por aí. Ela foi organizadora e debatedora da Semana de Estudos sobre a Contribuição do Negro na Formação Social Brasileira, através do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da FUDD, entre 1975 e 1983. A historiadora ainda realizou, em 1989, a pesquisa iconográfica e histórica sobre a escravidão e o negro no Brasil para o longa-documentário Ori. É possível vislumbrar que esta é a maior e mais aclamada obra da pesquisadora, talvez por ser fruto de anos de experiência acadêmica e militância social.

O filme Ori, dirigido por Raquel Gerber, contou com mais de 10 anos de pesquisas. Autora, narradora e personagem, Beatriz do Nascimento acompanha a trajetória do movimento negro no Brasil e nas Américas. O documentário registra as existências das culturas negras diaspórica, falando de memória e busca da autoimagem do negro moderno. A obra foi aclamada pela crítica, recebendo 2 prêmios em 1989. Ori recebeu o Prêmio Paul Robeson da Diáspora no 11º Festival Pan-Africano no Cinema e na Televisão de Onagadougou, em Burkina Faso. Também recebeu o Prêmio Costa Azul (Ohomem e a Natureza) do 5º Festival InTERNACIONAL DE Cinema de Trória, em Portugal. Inegável que estes prêmios representam a inovação de Orí, contribuição inestimável para o povo negro de todo o mundo.

Beatriz do Nascimento é uma das maiores estudiosas sobre as formações dos quilombos no Brasil, dedicando 2 décadas de estudos ao tema. Inclusive, a intelectual ingressou no programa de mestrado da Escola de Comunicação da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1992. Dessa vez, Beatriz caminhava pelos estudos das letras: sua tese seria sobre a obra ficcional do Professor Muniz Sodré. Infelizmente, hoje não temos acesso à sua dissertação de mestrado. Beatriz do Nascimento foi ao Orum.

Importante destacar que a contribuição de Beatriz Nascimento para o movimento negro brasileiro é inestimável. A exemplo, ela foi uma das fundadoras do IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, em 1975. A organização contou com as presenças ilustres de Lélia Gonzalez, Helena Theodoro, Januário Garcia e Milton Gonçalves, além da memorável Beatriz. Crucial lembrarmos que o IPCN foi fundado durante a ditadura militar, num contexto em que pessoas negras eram escondidas em dias de eventos grandes – como os condutores de bonde negros, que não trabalhavam nestas datas. A organização servia para resgatar a identidade da população negra, após o processo de eugenia, branqueamento, imposto aos negros no Brasil.

Na literatura, Beatriz do Nascimento contribuiu com o livro O Negro e a Cultura no Brasil, de 1987, ao lado de diversos autores, através da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A intelectual também produziu os consagrados artigos Por uma História do Negro, em 1974, e Negro e Racismo, em 1975, ambos para a Revista Vozes. Beatriz também produziu inúmeras matérias para diferentes órgãos da imprensa escrita,  como (i) A Mulher Negra no Mercado de Trabalho, em 1976, para o Jornal Última Hora, (ii) O Negro Visto por Ele Mesmo, em 1976, para a Revista Manchete, (iii) Quilombo de Jabaquara, para a Revista de Cultura Vozes, em 1978, (iv) My Internal Blackness, para o Journal Village Voice, em 1982, e (v) Daquilo que se Chama Cultura, empara o Jornal ID, em 1985.

Inevitável lembrarmos que ela realizou viagens internacionais para participar de diversos eventos culturais e acadêmicos com o objetivo de disseminar o conhecimento afro-brasileiro e afro-diaspórico pelo mundo. Em 1979 para Angola – pesquisa de campo sobre quilombos, Senegal – para a FESPAC – Festival Africano de Artes e Culturas, em 1987 –, Martinica – Encontro de Povos da Diáspora Africana, em 1991 –, e Alemanha – Projeto Axé Brasil, em 1994. Inclusive, Beatriz foi para Hamburgo, na Alemanha, justamente por causa do filme Ori, obra internacionalmente aclamada. Não à toa, em sua homenagem existe o Atlânticas – Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência. Este é o primeiro programa do governo federal direcionado exclusivamente a mulheres cientistas negras, indígenas, quilombolas e ciganas, um pioneirismo que faz jus à reconhecida historiadora.

Infelizmente teve sua trajetória interrompida tragicamente. Antônio Jorge de Amorim Vianna assassinou a aguerrida pesquisadora. O motivo? Beatriz aconselhava sua amiga – então parceira romântica do assassino – a separar-se dele, pois a mesma estava sendo vítima de violência doméstica. Ao ser detido, o homicida confessou o crime, dizendo que Beatriz havia interferido na sua vida privada.

Necessário falar sobre a frieza e premeditação do feminicídio sofrido por Maria Beatriz do Nascimento. O assassino foi atrás da vítima para xinga-la e ameaça-la de morte desde às 15h do dia 28 de janeiro de 1995. Não satisfeito, Antônio foi para casa e colocou a arma no cós da bermuda, sem camisa, para que todos os presentes sobessem que estava armado. Mais tarde, na calçada do bar Pasteur, em Botafogo (RJ) Antônio disparou 5 tiros contra a intelectual, atingindo-a no peito, no ventre e nos braços. Isto aconteceu na frente de 60 pessoas – mas apenas 3 delas se tornaram testemunhas do caso, reafirmando em juízo a crueldade do assassinato.

O homicida odiava Beatriz pois ela havia se recusado a promover a reconciliazão de Antônio com sua amiga, Áurea, então namorada do criminoso. Fontes indicam que ela ainda teria incentivado a amiga Áurea a terminar definitivamente a relação. De fato, sua coragem e lucidez salvaram a vida da amiga, que poderia ter falecido nas mãos de Antônio. Tristíssimo, porém, que a paga por sua boa ação tenha sido vingança. Necessário lembrar que Antônio já havia sido condenado por estupro contra uma professora em Angra dos Reis. Em Botafogo, onde nasceu e foi criado, ele era conhecido por ser violento, e sua folha criminal reunia crimes como lesão corporal e roubo, além dos crimes já citados. Deplorável que a vida de uma brilhante intelectual tenha sido ceifada por um machista violento.

Décadas após o seu falecimento, Maria Beatriz do Nascimento foi inscrita no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, em 31 de outubro de 2023. O livro passou a reunir 67 nomes após a sua inclusão. Assim, ela fica ao lado de outras ilustres pessoas brasileiras, como Antonieta de Barros, Laudelina de Campos Melo, Zumbi dos Palmares e Luiz Gama. A homenagem foi realizada através da Lei nº 14.712/2023. Para termos melhor dimensão de sua contribuição, Beatriz foi pioneira na discussão sobre a demarcação de territórios quilombolas, que teve início apenas em 1995. Segundo Luana Tolentino, a historiadora afirmou em 1983: “Que os movimentos negros apurem onde existem terras ocupadas por comunidades negras, e providenciem por meios legais a aplicação do usucapião evitando os problemas de usurpação das terras.” Ainda que suas contribuições acadêmicas ainda não sejam devidamente reconhecidas nos estudos de graduação e pós-graduação brasileiros, vislumbra-se que sua inclusão no Livro de Aço, no Panteão da Pátria, ajude a preservar e disseminar sua memória. Assim, podemos todos melhor aproveitar da inestimável contribuição intelectual de Beatriz do Nascimento – que, segundo Muniz Sodré, era uma mulher sempre lúcida e doce, que não atemorizava o risco da verdade, independente dos sofrimentos que às vezes sentia.

Texto escrito por: Emilson Gomes Junior. Edição Schuma Schumaher.

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REFERÊNCIAS:

  • Produções acadêmicas:

BATISTA, Wagner Vinhas. Palavras sobre uma historiadora transatlântica: estudo da trajetória intelectual de Maria Beatriz Nascimento. UFBA – Universidade Federal da Bahia: Salvador, 2016. Disponível em: TeseFinalizadaCDWagberVinhas.pdf (ufba.br). Acesso em 15 jul 2024.

SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Érico Vital. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, em parceria com a Redeh, 2007.

  • Sites:

Beatriz Nascimento. LiterAfro: Belo Horizonte, 15 de julho 2023. Disponível em: Beatriz Nascimento – Literatura Afro-Brasileira (ufmg.br). Acesso em 15 jul 2024.

FRAGA, Fernando. Conheça Beatriz Nascimento, intelectual negra que inspira cientistas. Agência Brasil, Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria: São Paulo, 20 de julho de 2023. Disponível em: Conheça Beatriz Nascimento, intelectual negra que inspira cientistas (cfemea.org.br). Acesso em 15 jul 2024.

O IPCN e a Ditadura Militar no Brasil. IPCN – Instituto de Pesquisas das Culturas Negras. Disponível em: Instituto de Pesquisas das Culturas Negra | O IPCN e a Ditadura Militar no Brasil (ipcnbrasil.org). Acesso em 15 jul 2024.

SINIMBÚ, Fabíola. Maria Beatriz Nascimento entra no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Agência Brasil: Brasília, 31 de outubro de 2023. Disponível em: Maria Beatriz Nascimento entra no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria | Agência Brasil (ebc.com.br). Acesso em 15 jul 2024.

TOLENTINO, Luana. Beatriz Nascimento: uma intelectual que todo mundo precisa (re)conhecer. Carta Capital: 6 de agosto de 2021. Disponível em: Beatriz Nascimento: uma intelectual que todo mundo precisa (re)conhecer – Opinião – CartaCapital. Acesso em 15 jul 2024.