Mulher internada por acusação de adultério, posteriormente acusada de incêndio e homicídio para realizar fuga ao lado de companheira romântica.
Matilde Soares foi uma mulher que sofreu internação no Recolhimento de Nossa Senhora do Parto após acusação de adultério apresentada por Gil Soares, homem com quem foi casada. Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil em Dicionário Mulheres do Brasil revelam que Matilde Soares e sua companheira, Ana Campista, foram acusadas de incendiar móveis do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto na madrugada de 23 de agosto de 1789. A motivação de Ana e Matilde era a criação de tumulto para viabilizar a fuga do casal – e elas foram bem sucedidas. Infelizmente, uma centena de mulheres faleceu no incêndio, chocando moradores do Rio. No dia seguinte, o vice-rei Luís de Vasconcelos determinou que fossem apuradas as responsabilidades pela tragédia, apontando Ana e Matilde como culpadas.
Segundo Schuma e Érico, o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto fora fundado em 1754, por Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz para abrigar prostitutas em busca de recuperação espiritual. À época, Rosa vivia no Brasil sob a condição legal de escravizada. Anos após a sua fundação, o Recolhimento passou a ter novos propósitos, tornando-se um abrigo para mulheres abandonadas pelos maridos ou pais. Os autores nos ensinam que o Recolhimento foi um lugar de terror na vida dessas mulheres, sempre ameaçadas, a qualquer desavença, de para lá serem enviadas. Ou seja: muitos homens daquela época se sentiam confortáveis o suficiente para ameaçarem suas esposas de sofrerem internações compulsórias no Recolhimento, pois eles se beneficiavam do terror psicológico proporcionado a estas mulheres e da possibilidade de facilmente abandoná-las.
Leila Mezan Algranti publicou a sua Tese de Doutoramento Honrada e Devotas: Mulheres da Colônia (Estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste – 1750-1822), investigando os motivos que levavam os colonos a enviarem suas mulheres para a clausura dos conventos e recolhimentos femininos entre 1750 e 1822, na região Sudeste do Brasil. Leila reforça que o Recolhimento do Parto se tornou um espectro ameaçador para muitas senhoras, além de uma arma de prepotência e disciplina doméstica para os homens. Inclusive, percebemos que esta realidade ficou marcada na memória desses estabelecimentos leigos de reclusão, apesar da escassa documentação colonial sobre eles. Destaca-se que a sociedade alimentava a fantasia de que tais mulheres eram adúlteras e rebeldes que desafiavam os padrões da moralidade exigidos, ao passo que tais mulheres eram apenas vítimas do machismo, punidas com ameaças e internações pelo por serem mulheres, como se isto fosse um crime.
A doutora Leila reflete sobre a importância de estudar o Recolhimento do Parto e outras instituições similares: “Conventos e recolhimentos eram, assim, espaços de projeção dos valores da sociedade que interagiam com ela, e não das instituições totalmente ‘fechadas’ e distantes do social. É exatamente este movimento duplo – encerramento / interação – que lhe confere o privilégio de refletir as imagens e representações da sociedade sobre as mulheres e ao mesmo tempo transformar-se em palco para o estudo das manifestações culturais e religiosas de uma parcela da população da Colônia, permitindo que se retorne a discussão de aspectos importantes da condição feminina no período colonial: a honra e a devoção.” De fato, há importância cultural e científica na preservação e divulgação de informações sobre tal período, em benefício do progresso social. Neste sentido, mencionamos que Ana Campista e Matilde têm sua história de fuga contada no livro Mulheres do Brasil: a história não contada, de Paulo Rezzutti. Similarmente, divulgamos que a página da organização Oocities apresenta o texto Nossa Senhora do Bom Parto, tanto divulgando informações sobre a santa Nossa Senhora do Bom Parto quanto guardando a triste memória do Recolhimento do Parto.
Em se tratando de violência doméstica praticada por homens contra as mulheres ameaçadas de internação ou efetivamente internadas, é importante refletir sobre os efeitos desta realidade na saúde dessas mulheres. Com isto em mente, citamos a apresentação Neurociência e trauma: impacto da violência doméstica sobre o cérebro e seu agravamento em tempos de pandemia, realizado pela Pós-Doutora em Neurociência Regina Lúcia Nogueira para o 6º Webnar Enfam – A Mulher e o Judiciário: Violência Doméstica. Em sua apresentação, a intelectual Regina nos ensina que trauma é uma alteração no cérebro causada pela exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual. Ou seja, pode-se considerar que a presença do Recolhimento do Parto e similares era instrumentalizada para violentar mulheres diariamente durante o período colonial – desde as ameaças de abandono até a efetivação do cárcere privado vivido por essas mulheres nas instituições. Portanto, considerando os dados apresentados por Regina Lúcia Nogueira, é possível vislumbrar que as mulheres deste período histórico podem ter sofrido os impactos neurológicos da violência doméstica colonial, dentre outros impactos negativos do machismo em suas vidas. Ainda que a apresentação da brilhante Pós-Doutora Regiane se aprofunde na relação entre trauma, violência doméstica e pandemia, seus dados são relevantes para compreendermos os efeitos traumáticos da violência doméstica de forma geral. Não devemos esquecer, conforme exposto por Regiane, que o trauma causa efeitos de natureza neurológica, biológica, psicológica e social devido às mudanças neurobiológicas do cérebro. Portanto, a conscientização dos traumas causados pela repugnante violência doméstica serve para fomentar o debate público e proteger as mulheres a partir do acesso à informação.
Texto Adaptado do verbete contido no Dicionário Mulheres do Brasil por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #imperio #imperatriz #direito #justiça #saúde
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia (Estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste – 1750-1822). Universidade de São Paulo: São Paulo, 1992. Disponível em: Teses USP. Acesso em 5 mai 2023.
NOGUEIRA, Regina Lúcia. Neurociência e trauma: impacto da violência doméstica sobre o cérebro e seu agravamento em tempos de pandemia. 6º Webnário Enfam – A Mulher e o Judiciário: Violência Doméstica: 18 de maio de 2020. Disponível em: Enfam. Acesso em 5 mai 2023.
REZZUTTI, Paulo. Mulheres do Brasil: A história não contada. Leya: Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: Docero Brasil. Acesso em 5 mai 2023.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
- Sites:
Oocities. Nossa Senhora do Bom Parto. Disponível em: Oocities. Acesso em 5 mai 2023.
REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano. Matilde. Mulher 500 anos atrás dos panos. Disponível em: Mulher 500. Acesso em 23 ago. 2023.