Vanessa Batista Berner
O tema central do qual vou me ocupar aqui é o feminismo como projeto político. Partirei, então, do elemento que, certamente, causa a maioria dos nossos dilemas no mundo contemporâneo: o Estado. Mas não apenas o Estado, e sim o Estado Democrático de Direito. A proposta é que, neste breve intervalo, eu fale da relação entre essa instituição da modernidade com os igualmente modernos Direitos Humanos. E mais: numa perspectiva feminista! Um baita desafio em tempos de pouca democracia, de violação sistemática de direitos e, para nossa alegria!, de busca incessante por um feminismo em comum, como proposto por Marcia Tiburi (2018).
Pois bem, a primeira questão que temos que enfrentar para cumprir esta tarefa é compreender qual é, e onde se centra, a política do Estado no sistema capitalista. É o Estado que organiza a sociedade, regulando as relações entre os detentores do poder e dos lucros com aqueles que vendem seu tempo e sua força de trabalho. O trabalho, portanto, é absolutamente central no mundo contemporâneo. É em torno dele que se configura o poder do Estado. E a maioria de nós somos trabalhadoras e trabalhadores.
Por que temos que falar disto? Porque, ao regular essas relações, o Estado disciplina os diversos perfis de subjetividade que cada um de nós carrega: homens, mulheres, pessoas LGBTQ, transexuais, negros, negras, indígenas, imigrantes… Essa normatização do que somos a partir do poder estatal é a raiz do fenômeno que hoje conhecemos como “a invenção do outro”. A alteridade é uma categoria necessária para o processo produtivo nas sociedades ocidentais a partir do século XVI (CASTRO-GÓMEZ, 2005). É o outro que nos define.
Isto entendido, temos que verificar quais são os mecanismos utilizados pelo Estado para exercer esse poder disciplinar. Nas sociedades latino-americanas, o poder estatal tem se valido das constituições, dos manuais de urbanidade e das regras gramaticais dos idiomas. Em outras palavras: nossa subjetividade se legitima na escrita! Esta é a lógica civilizatória seguida à risca pelo colonizador nas Américas: a civilização por meio da linguagem.
Devemos, pois, problematizar o discurso que hoje impera nas principais democracias ocidentais, regidas pelo Estado Democrático de Direito. Trabalhar outra ideia de igualdade e de cidadania, pois essas palavras traduzem conceitos vagos utilizados para designar o que, na verdade, são privilégios culturais e políticos.
O cidadão é aquele sujeito que se encaixa no perfil do colonizador: homem, branco, pai de família, cristão, proprietário, heterossexual, letrado. Um bom burguês. Acontece que a maioria das pessoas no território dos Estados não se enquadra neste perfil. Portanto, mulheres, negros, homossexuais, analfabetos, indígenas, migrantes etc., a maioria de nós, na verdade, somos os “outros”, e estamos excluídos da cidadania desenhada pelo colonizador (Silvia Cusicanqui, 2010). O conceito de cidadania é, também, um conceito da modernidade, um mecanismo de ajuste a um projeto civilizatório em que a maioria fica de fora. Desde 1500, no caso do Brasil…
Acho que aqui já podemos vislumbrar onde entra o feminismo. A luta feminista é uma luta política porque ser mulher é uma questão política. Qual seria, então, a nossa tarefa? Ela começa pela compreensão de que, se queremos mudanças, elas devem vir por meio da descolonização das estruturas políticas e econômicas em que estamos inseridos. E isto se dá pela reformulação das Constituições e leis que, ao longo do tempo, vêm reproduzindo as práticas de exclusão e dominação. E essas práticas estão em todas as esferas de nossas vidas: em nossas relações familiares, na maneira como conduzimos nossos relacionamentos amorosos, em nosso trabalho, em nossa produção acadêmica. Uma forma de pensar que nos foi dada como “natural”. Só que não… Então, precisamos fazer, inclusive, uma mudança mental!
Recentemente, no Brasil, atravessamos um perigoso momento político e nós, mulheres, não nos furtamos a manifestar nossa opinião. É o que estamos fazendo aqui hoje, por exemplo. É o que as mulheres engajadas em projetos feministas estão fazendo ao se inserir na estrutura do Estado Democrático de Direito, aquele que nos exclui e que regula nossas relações de trabalho, as relações do “fazer humano”.
Mas quais são as reais possibilidades à nossa disposição, como mulheres, para participar efetivamente das decisões políticas? Um dos problemas mais graves de que padecem as democracias contemporâneas é a representação. Nós, mulheres, não estamos nada bem nesse quadro. Conforme balanço de fevereiro de 2024, aumentou a participação de mulheres nos processos eleitorais nas últimas eleições (2022). Entretanto, quando se trata de mulheres nos poderes do Estado, estamos abaixo da média mundial e da média regional.
No Legislativo, o Brasil ocupa a 134ª posição no ranking mundial de presença feminina no Parlamento dentre os 180 países analisados pela União Interparlamentar, com índice de participação feminina de 17,5%. Estamos abaixo de países como Coreia do Norte, Mongólia ou Azerbaijão, e bem próximos alcançado por Burkina Fasso (17,2%)… E isto porque tivemos, nas eleições de 2022, um número recorde de mulheres eleitas! Mesmo assim, não conseguimos sequer nos aproximar de nossos vizinhos como, por exemplo, a Bolívia, com 46,2% ou Argentina com 42,4%. Ficamos distante também da média mundial, que atingiu pela primeira vez, o índice de 26,5% de assentos ocupados por mulheres considerando todos os parlamentos do mundo.
No Brasil, a realidade das mulheres parlamentares é uma rotina de violência política de gênero. Diariamente ameaçadas, agredidas e destratadas por qualquer motivo, geralmente por pura misoginia. Em pesquisa de 2016, uma pesquisa da ONU apontou que 53% das prefeitas eleitas relataram ter sido alvo de assédio ou violência política. Quando olhamos para as mais jovens, com menos de 30 anos de idade, esse número sobe para espantosos 91%! Mas o que se pretende com esta violência? Simplesmente impedir ou restringir seu acesso ou induzi-las a decidir contrariamente à sua vontade. São ameaças, xingamentos, invasão de sua vida privada, modo de vestir, aparência física… que ocorrem ao longo de toda sua trajetória: campanha política, exercício do mandato e depois de deixarem o cargo.
De fato, essa violência é um dos motivos para termos um número reduzido de mulheres tanto nas casas legislativas quanto em outros espaços de poder. Quando olhamos para um panorama racializado, a situação se agrava ainda mais: no Executivo, por exemplo, entre 2016 e 2020 aumentou o número de mulheres eleitas como prefeitas de 11,5% para 12, 1%. Entretanto, no mesmo período, as mulheres negras diminuíram sua participação de 4,8% para 3,9%. No Legislativo, este número aumentou, mas continua ínfimo se pretendemos retratar a composição étnica da população: apenas 32% das eleitas são negras. Se olhamos para as mulheres indígenas, a situação é catastrófica: quatro parlamentares eleitas em 2022. E vejam que o aumento foi de 189% em relação à Legislatura anterior…
Infelizmente, no Poder Judiciário não estamos muito melhor: no cenário latino-americano, apenas a Argentina tem menos mulheres na Suprema Corte: ZERO. No Brasil, em que pese terem sido feitas quatro nomeações para o Supremo Tribunal Federal, sendo duas decorrentes de vagas deixadas por mulheres, nenhuma foi ocupada por critério de gênero. Com isso, temos apenas UMA mulher na cúpula do Judiciário. Estamos abaixo da média de ocupação também deste Poder do Estado. Nas palavras da pesquisadora Lívia Gil Guimarães:
Estamos atrás de países com os quais temos uma boa relação econômica, como Colômbia, Peru e Chile. Isso só reforça pontos que já vemos do Brasil, ante os vizinhos, sobre violência doméstica e desigualdade salarial, que é a subalternização do gênero feminino ante o masculino — afirma a pesquisadora. — Esse cenário não se altera apenas com a indicação de mulheres para a Suprema Corte, mas há uma força simbólica nesse movimento.
Ou seja, em 2024 seguimos sendo sub representadas. Somos minoria na estrutura de poder do Estado, o que significa, na prática, que não participamos da maioria das decisões políticas que nos dizem respeito, que regulam nossos corpos e nossas relações de trabalho, as decisões que formatam nossa cidadania, que deveriam promover a igualdade de tratamento entre nós e aquele perfil de cidadão delineado pelo colonizador há mais de 500 anos…
Como mudar este quadro? Em primeiro lugar, precisamos de mais incentivos, como cursos de formação política para que as mulheres tenham vida partidária. E precisamos também avaliar o funcionamento dos partidos no país: poucos partidos, hoje, no Brasil, têm mulheres presidentes ou que chefiem diretórios. E embora o país tenha registrado crescimento de participação de mulheres na política, continuamos abaixo da média no Legislativo, Executivo e Judiciário. Esta questão é cultural e tem um nome: machismo. Portanto, precisamos, cada vez mais, debater, nos informar, a fim de nos inserirmos de forma realmente efetiva na política.
Alguns dados justificam essa necessidade e o nosso potencial, pois as mulheres representam hoje 50,9% do total de chefes de família no país, sendo que a cada 10 mulheres nessa posição, 06 são negras. Ou seja, nada justifica a subrepresentação diante disto! Faz-se urgente e imprescindível a mudança na estrutura do sistema político, a fim de sairmos da estagnação em que nos encontramos e fomentarmos o surgimento de novas lideranças, especialmente femininas (e feministas!). O olhar da mulher para as questões sociais é diferente do masculino, em virtude de sua experiência na lida com os problemas diários, afinal ela trabalha, geralmente, em tripla jornada, como mãe, dona de casa e trabalhadora. Alguns pontos são relevantes nesse processo, como o apoio partidário, a luta por mais tempo no horário político na televisão e no rádio. Mas precisamos investir em outras possibilidades. E dentre elas, as cotas na política estão entre as mais polêmicas.
Dizem que cotas na política são desnecessárias, pois as mulheres que realmente têm méritos chegam onde querem; que quando ocupamos cargos políticos, não temos voz própria; afirmam que as mulheres que assumem posições de poder são masculinizadas; que as mulheres conflitam sempre entre si; que ao chegar ao poder, se esquecem daquelas que estavam ao seu lado na caminhada; que as mulheres não reconhecem as lideranças femininas…
Esses lugares comuns existem porque nossas sociedades ocidentais nos ensinam que “igualdade” consiste em uma mulher ser igual a um homem, o que é constantemente reforçado pelo fato de homens e mulheres partilharmos, de fato, espaços comuns, como as ruas, os transportes públicos, as universidades, as igrejas, as salas de aula… Nos dizem que esta presença simbólica é o que se entende por igualdade. Nossas lutas por direitos, nossas conquistas, são respondidos com o que Marcela Lagarde (2003) chama de “véu da igualdade”, do qual nos apropriamos, e que nos impede de ver além das presenças e descobrir que a desigualdade de gênero prevalece entre os supostamente iguais.
Em outras palavras, nos querem fazer crer que estamos mais avançadas que aquelas que nos precederam e que somos iguais aos homens. Entretanto, esta presumida “consciência de igualdade” provoca algumas distorções nas relações entre nós, mulheres. Não raro, mulheres que vivem nas cidades se veem superiores às mulheres do campo; as acadêmicas, acima das não letradas; as dos países ricos, melhores que as indígenas do sul… Essa superioridade hierárquica é característica da subjetividade e das mentalidades das “incluídas ou eleitas”, relacionada com uma escala evolutiva e de progresso que valoriza algumas mulheres, as exitosas, acima das outras que se posicionam diante dos homens de forma não emancipada: se não conseguiu subir nessa escala, é porque se esforçou pouco…
Faço esta breve consideração porque um dos debates mais importantes de nosso tempo gira em torno da seguinte questão: como podemos aceitar mecanismos específicos para eliminar a exclusão de mulheres, já que algumas galgam postos por seus próprios méritos?
Esta pergunta se fazem mulheres de todo o mundo e há algum tempo: as que lutavam pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1960/1970; as que ao longo do século XX se esforçaram por aumentar a participação das mulheres na vida pública; as que lutam pela educação de qualidade para que todas possam ter acesso aos diversos campos do conhecimento… Para onde olhamos, vemos mulheres lutando. Porém, por todos os lados, encontramos obstáculos.
Então, qual é a igualdade que nos interessa? A igualdade que nos interessa é aquela compreendida como equivalência humana (Amélia Valcarcel, 2002). E ela é contraditória com a desigualdade política, esta de ordem sexual, social, econômica, jurídica, cultural. A igualdade como equivalência humana é que nos permite negociar a inclusão daquelas que estão à margem. E isto é muito difícil quando estamos em minoria, quando estamos sob opressão política no momento de pactuar com indivíduos, grupos ou instituições que detêm o poder.
Portanto, construir a cidadania das mulheres requer muita criatividade. Nossas sociedades reproduziram desde sempre a exclusão das mulheres. Os homens ainda detêm o monopólio político. A política é patriarcal. Muitas mulheres têm buscado soluções para a questão da nossa participação mais efetiva nos espaços de decisão política. Em alguns lugares, a paridade foi adotada como possível resposta. O Brasil, por exemplo, adotou o sistema de cotas de gênero nas eleições proporcionais. Entretanto, como demonstra Roberta Laena em seu excelente livro “ Fictícias” (2020), a resistência dos partidos políticos acaba por burlar a norma jurídica, nos mantendo no não lugar da política de sempre…O que é péssimo, pois, para que se desmantele de forma eficiente a opressão, a paridade deve ser uma prática contínua, formando gerações seguidas de mulheres políticas. E não temos ainda esta representação simbólica universal que propicie a ininterrupta participação de mulheres.
Em pleno século XXI, ainda enfrentamos “tetos de vidro e chão escorregadio” quando se trata de política (Marcela Lagarde, 2003): não temos tradição nem memória de gênero, somos minoria em termos de representação e, pior, não se aceita que nos representemos a nós mesmas, que coloquemos na mesa nossas necessidades, interesses, olhares próprios sobre a vida, a sociedade, o Estado. Homens brancos, proprietários, heterossexuais, resolvem sobre nossos corpos, sobre nossa saúde, sobre nossa sexualidade, sobre nossas possibilidades de viver. Somos tratadas como “seres-para-os-outros”, nas palavras de Franca Basaglia. Nosso papel é fissurar este patriarcalismo.
Um dos pontos relevantes em que devemos nos fixar é na ideia obsessiva da masculinização, uma acusação que se faz às mulheres que ocupam espaços públicos e, principalmente, políticos. Basta nos lembrarmos do deboche misógino contra a ex-Presidenta Dilma Roussef no decorrer do Golpe que sofreu em 2016. E é interessante batermos nessa tecla, pois naquele momento, os ataques que ela sofreu não diziam respeito à sua postura na vida política, mas à migração de sua suposta “forma feminina”, estereotipada, normalizada, naturalizada, para uma posição de comando e resistência dotada de elementos de “masculinidade”. Questões de ordem ética e material, como corrupção, violência, abuso de poder, impunidade, são aspectos exercidos por homens no espaço público que ela não praticou. Mas sua “masculinização” não foi perdoada.
Por que isto ocorre? A resposta é simples: é porque é desejável que nós, mulheres, nos comportemos de outra maneira nos espaços públicos. Querem que não nos coloquemos contra a cultura política masculina e patriarcal. Querem que as normas, as regras da política, os procedimentos, os discursos, as linguagens, sejam padronizados conforme o “masculino”, a fim de perpetuar a dominação de gênero no âmbito político. Assim, para sermos legitimamente aceitas, as mulheres temos que nos moldar a essa cultura, sob pena de, como a ex-Presidenta Dilma Roussef, sermos automaticamente marginalizadas. Um drama, porque se entramos nesse jogo, temos que concordar com o que muitas vezes é inaceitável, como as diversas negociações e pactos políticos que repudiamos; se não entramos no jogo… bem, vimos o que aconteceu recentemente no Brasil…
As mulheres que sobrevivem a tantas contradições na vida política são, sem dúvida, muito hábeis, e pagam preços muito altos, como podemos ver em episódios ocorridos diuturnamente com deputadas, senadoras, a única presidenta que tivemos e, o mais violento de todos, com a vereadora Marielle Franco. Para resistir nesses espaços é preciso ter uma grande experiência nas organizações e partidos, nos movimentos e organizações de mulheres. Esses lugares são espaços mistos de formação política, onde devem ser priorizados os debates para se desmontar a cultura política masculina, para se introduzir assuntos de interesse geral e específico das mulheres e para se começar a fazer um outro tipo de política.
No entanto, é muito comum que as mulheres que chegam a posições de poder reproduzam os mecanismos misóginos que denunciamos. É uma reação automática a um ambiente em que imperam normas hierárquicas e autoritárias, é um caminho esperado para pessoas que vêm de uma formação familiar, escolar, laboral, que reproduz o pensamento conservador desse tipo de política. E apesar de eu poder compreender o que leva uma mulher a ter um comportamento misógino, me dói muito que ela aja desta maneira. E isto tem a ver com um debate muito difundido no feminismo: a decantada sororidade. Na verdade, proponho que não idealizemos as relações de confiança entre as mulheres, que não criemos expectativas sobre nossas relações, que não fechemos os olhos aos mecanismos misóginos implícitos no poder hegemônico que norteiam a vida pública. Mulheres em posição de poder que vêm de uma formação de gênero tradicional tendem a se sentir ameaçadas por outras mulheres, especialmente as que são diferentes delas ou as que não se subordinam a elas. Por outro lado, a maior parte das mulheres insatisfeitas com essa relação se limitam a atacar aquelas que estão no poder, sem reconhecer a capacidade de ascensão que tiveram. Quem tira proveito dessa situação? Ora, o patriarcado, é claro! Nada mais eficiente, portanto, do que manipular a inimizade de gênero contra nós mesmas.
Não bastasse isto, o comportamento feminino nas organizações e movimentos políticos é, não raro, o de não reconhecer as lideranças de outras mulheres. Esse problema se agrava em quadros de maniqueísmo político como o que hoje enfrentamos em toda a América Latina e muito particularmente no Brasil: as mulheres “poderosas” reacendem o medo misógino contra o poder sexual, econômico, político, das mulheres. O chamado backlash, a onda reativa à emancipação feminista, o esforço concertado para nos colocar novamente em posição marginal, excluída, oprimida, que nos cabe na sociedade patriarcal.
Mas há mulheres dissidentes no meio desse desterro. São aquelas comprometidas com as causas das mulheres, são as feministas. E essas dependem das forças sociais de base. É isto o que as sustenta. Portanto, o diálogo aliado à prática é essencial para nos emanciparmos no coletivo – sempre no coletivo! – e darmos sustentação ao avanço da causa das mulheres e às mulheres nas posições de poder.
Nossa tarefa urgente é construir uma nova ética. Para isto, temos que dar ouvidos à utopia feminista, resultante da crítica histórica feita por tantas mulheres antes de nós; utopia também fruto das lutas pessoais de tantas de nós que resistiram ao poder patriarcal para construir relações solidárias, de cooperação, não hierárquicas, relações de trabalho grupal, relações de responsabilidade, mulheres que lutaram pelo acesso aos recursos naturais que nos são negados, que se engajaram em processos de desenvolvimento das capacidades humanas de maneira democrática. A utopia de Vandana Shiva na Índia, com sua proposta de nos libertarmos da “monocultura da mente”; de Malala Yousafzai no Paquistão, com sua luta para que as mulheres tenham acesso ao conhecimento; de Diaryatou Bah, na Guiné, contra o casamento infantil e a mutilação dos corpos das mulheres; de Margarida Alves, no Brasil, por representatividade e melhores condições de trabalho e de vida no campo; de Marielle Franco, no Brasil, que ousou investir em um projeto político de democracia feminista, um projeto inclusivo e interseccional, conectando as pautas de raça, classe e gênero.
Para mudar o grave quadro político em que estamos inseridas, precisamos estar conscientes de que, diuturnamente, reproduzimos os métodos de dominação patriarcal. É o primeiro passo. Depois disso precisamos, todas nós, nos reeducarmos. Precisamos desaprender. Precisamos formar um novo acúmulo de conhecimentos. Precisamos mudar nosso olhar, enxergar pelas lentes de gênero feminista, o núcleo em torno do qual deve girar nossa concepção da vida e do mundo.
E por onde devemos começar? Por nosso compromisso com nossa causa histórica. É necessário ter consciência de que somos seres integrais, somos humanas e, sobretudo, somos mulheres. E como tal devemos assumir a memória de gênero. Sem neutralidade, ao contrário, com toda a dimensão e conteúdo de nossa identidade feminina. Neste sentido, a sororidade, ou, ainda!, a dororidade, como ensina Vilma Piedade (2017), deve ser traduzida no reconhecimento da “outra”, das “outras”, como nossas semelhantes, destinatárias de nosso respeito e compreensão. Sororidade/dororidade como estatuto de uma permanente interlocução, para que possamos avançar por meio de nossos pactos, e não por solidariedade de sexo. Precisamos construir nossa solidariedade, colocando-a em pauta, nomeando-a de forma bem delineada, estratégica e pontual.
Nosso maior investimento deve ser nas alianças de gênero, a fim de melhorar nossas existências/resistências como mulheres, a fim de melhorar a vida em nossas comunidades e no mundo. Trata-se de uma proposta política de enfrentamento ao problema de não sermos reconhecidas, representadas entre nós mesmas. Em lugar de inimizade de gênero, temos que apostar em nossa coalisão política. Para isto, nossa ética tem que ser a da igualdade como princípio reinante entre todas nós. Temos que renunciar, então, ao nosso direito patriarcal de oprimir outras mulheres, e impedir que outras mulheres nos oprimam. Não se trata de uma ideologia, mas de uma prática, de um modo de vida, de uma nova maneira de conviver entre nós, de uma outra perspectiva relacional.
Esta é também uma proposta estética, pois implica em uma maneira diversa de nos comportarmos, de nos tratarmos, de nos falarmos. Nossa linguagem deve valorizar e respeitar a dignidade que queremos para todas, independente de nossa profissão, posição social, raça ou ocupação. Um compromisso que devemos firmar conosco mesmas e com o mundo, a fim de alcançar nosso próprio desenvolvimento e bem estar. Quanto mais mulheres incluirmos em nosso acesso ao conhecimento, quanto mais mulheres nós apoiarmos, mais chances teremos.
A verdadeira riqueza consiste no fazer humano (Herrera Flores, 2005). É nossa tarefa criar utopias, mas também, além de mostrar ao mundo o que queremos, precisamos ganhar territórios para uma nova cultura democrática de gênero. A proposta é promover uma mudança ético-política baseada em nossas alianças. E isto começa por não desacreditarmos as outras mulheres, por não sermos misóginas umas contra as outras, por darmos crédito à capacidade criativa de todas à nossa volta, por convertermos tudo isto em capital político, publicizando o reconhecimento que devotamos aos feitos e conquistas das outras mulheres.
Nossa luta está, sobretudo, nos pequenos detalhes. Temos que enfrentar nossa raiva e transformá-la em autoestima de gênero, temos que cessar as agressões contra outras mulheres, temos que eliminar a exploração e o abuso de umas contra as outras, renunciando ao trabalho invisível de outras mulheres e de nós mesmas. Sendo solidárias, reconhecemos a autoridade das outras mulheres. E não confundimos autoridade com autoritarismo. Todas nós temos autoridade para criar alternativas, necessitamos investir nelas, pois este é um dos nossos recursos políticos mais importantes. Quando temos esse reconhecimento mútuo, aprendemos umas com as outras e ampliamos o orgulho por nosso gênero, por sermos mulheres.
São essas as dimensões políticas do feminismo contemporâneo: a sororidade e o mútuo reconhecimento. Essas mudanças de posição levam a mudanças ideológicas, intelectuais, afetivas. Modificam-se nossas subjetividades e mentalidades e, acima de tudo, nossa postura diante da vida.
A ética é fundamental para internalizar o feminismo, nossa maior contribuição para a humanidade. Mostremos ao mundo que queremos um política feminista a partir de nosso próprio comportamento. Uma nova política, com lideranças firmes, coligadas, comprometidas, sustentadas, democráticas, locais, globais. Uma política feminista, de afeto, de solidariedade, para mudar este mundo doente em que nos é dado viver. Nesta utopia, talvez, o Estado importe menos que a Democracia e que os Direitos.
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