• O aprendizado do corpo: como a escola (des)ensina a ser mulher

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19 de julho de 2024 por 

Amanda Henriques de Oliveira

Helena Mester Ramos

Isis da Silva Guimarães

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar de que maneira as normas de gênero socialmente impostas atuam na escola limitando as ações de alunas. Para isso, definimos a seguinte questão de pesquisa:

“Como as ações são limitadas por imposições de gênero reforçadas na escola?”

Nosso foco é nas alunas por sermos todas mulheres e vivenciarmos diariamente restrições devido ao fato de o mundo ser orientado por um ideal de humanidade: homem branco heterossexual de classe média.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A formação na escola vai além do intelecto, na sutileza de ações pontuais do cotidiano está a forma como lidamos conosco e com os outros. A escola educa os corpos a­pesar de tradicionalmente se imaginar que estão sendo educadas apensa mentes (Louro, 2000). O currículo escolar, embora tradicionalmente entendido como uma questão de seleção de conteúdos das diversas disciplinas, na verdade indica um determinado tipo de pessoa que a escola deseja formar (Silva, 2009 [1999]). E essa pessoa é generificada, ou seja, moldam-se mulheres e homens no cotidiano da instituição.

As instituições escolares estão inseridas numa sociedade cujo machismo é estrutural, ficando quase impossível não ser atingido por seus discursos inflamados. A importância de discutir gênero na escola vai além de apenas entendermos o outro – cuja realidade parece sempre distante na nossa – mas sim conhecermos a nós mesmos, nosso papel no ambiente escolar e no mundo existente fora dele. O período de nossas vidas que passamos no colégio é o período que somos moldados para sermos adultos e indivíduos de determinado tipo. O corpo é alvo das práticas disciplinares. Há um aparato instrumental e institucional que busca constantemente discipliná-lo quando busca fugir e escapar, seja por meio de mecanismos repressivos, seja por um discurso que impõe às crianças uma imagem estigmatizada de si mesmas (Frangella, 2000 apud Vianna e Finco, 2009).

Escola produz alguns corpos e algumas sexualidades como mais legítimas que outras (Morris, 1995; Epstein et. al., 2001), com base numa matriz heterossexual. Segundo Butler (2007 [1990], p. 24), essa matriz é uma matriz de inteligibilidade, pois é nas relações legitimadas por ela entre gênero, desejo e prática sexual que alguém pode ser reconhecido como pessoa. Para ter algum grau de humanidade aos olhos dos outros, portanto, é preciso agir de acordo com certos padrões repetidos à exaustão, em especial com relação àquilo que se faz com o corpo e a sexualidade. Todos têm seu comportamento regulado por essa matriz, não somente quem se identifica como homoafetivo. Isso significa dizer que meninas precisam ser delicadas, recatadas, trajar determinado tipo de roupa, usar certo vocabulário e, no que se refere à escola, serem disciplinadas (meninos é que são bagunceiros) e boas em linguagens (português, redação, línguas estrangeiras…). Meninos, por sua vez, podem ser agressivos, ter impulsos sexuais desenfreados, devem usar certo tipo de roupa, usar certo discurso típico da “masculinidade” (palavrões e tópicos de conversa sobre esportes e mulheres, por exemplo), não podem demonstrar sensibilidade (se choram ou gostam de poesia são vistos como afeminados). Na escola, meninos são encarados com um olhar benevolente no que tange à disciplina, afinal “boys will be boys” (meninos são assim mesmo), além de serem bons em cálculos. O que não se percebe é que essa matriz se estabelece por repetição de discursos, não há nada de natural nela. Meninos que acabam sendo bons em cálculos assim foram tratados na escola.

O colégio como um todo acaba por reforçar os padrões de gênero, sendo uma instituição inserida na sociedade, normatizando e controlando os estudantes com base na moral e identidade desse machismo estruturado, há repreensões singelas e outras nem tanto que podem comprometer o desenvolvimento dos alunos como estudantes e como pessoas. O tempo todo é colocado a nossa frente um modelo de comportamento a ser seguido, orientados pela matriz heterossexual, o “não encaixe” nesse padrão é um processo cruel, tendo em vista que somos divergentes uns dos outros. A quem não se adequa ao padrão se impõe sofrimento por meio de violências, na maioria das vezes simbólicas.

Meninas e meninos são limitados às coisas feitas apenas para seu gênero, não podendo desfrutar de outra realidade: o que vemos na sociedade é reforçado na escola na forma com que lida com os alunos. O minucioso processo de feminilização e masculinização dos corpos, presente no controle dos sentimentos, no movimento corporal, no desenvolvimento das habilidades e dos modelos cognitivos de meninos e meninas está relacionado à força das expectativas que nossa sociedade e nossa cultura carregam (Vianna e Finco, 2009).

A punição aplicada pelas instituições disciplinares, impede nós, alunas(os), de nos expressarmos da forma que nossa mente deseja que nossos corpos se mostrem, fora de um ou mais padrões e modelos, impedindo de exercermos nossa individualidade. Os discursos reproduzidos na escola por diversas vezes nos limitam a padrões pré-estabelecidos do que é ser mulher ou homem, restringindo nossas ações e limitando nossos espaços.

METODOLOGIA DE PESQUISA

Para a construção do projeto, fizemos pesquisas de base etnográfica (Wielewicki, 2001) e etnográfica virtual (Santos e Gomes, 2013). A observação e coleta de dados e material foram realizadas de setembro a novembro de 2017.

A respeito das vivências colocadas em pauta na pesquisa, resolvemos as triangular com narrativas fora da web de alunas/ex-alunas e alunos/ex-alunos do ensino médio. Nesta parte, contamos com relatos de assédio que nós vivenciamos nos nossos anos dentro do Colégio Pedro II, desde o ensino fundamental até o segmento atual.

Para o contexto de pesquisa na web, decidimos analisar a rede social “Twitter” sobre casos gerais de assédio apresentados dentro do ambiente escolar. O fator determinante para nós escolhermos esta plataforma para analisar é o fato de que, além de não apresentar grande massa de professores e servidores como usuários, também apresenta um conteúdo mais público: as contas que não são protegidas pelo usuário podem ser acessadas por qualquer pessoa (a “proteção” é um mecanismo opcional que restringe mostrar o conteúdo da conta apenas para aqueles que o dono permitir), diferente de outros sites como o “Facebook”, que se fosse escolhido por nós implicaria solicitar autorizações para utilizar os dados coletados e, consequentemente, atrasaria a realização do trabalho.

A análise das vivências narradas e das postagens no Twitter foi realizada na tentativa de articular uma resposta à questão de pesquisa orientadora do trabalho: “Como as ações são limitadas por imposições de gênero reforçadas na escola?”. O objetivo é refletir sobre estereótipos de gênero circulantes na sociedade e reforçados no contexto escolar, e não apontar identidades. Assim sendo, empregamos nomes fictícios para preservar o anonimato da pesquisa, bem como os prints têm as fotos e nomes de tela descaracterizados pelo mesmo motivo.

DISCUSSÃO DE DADOS

Na tentativa de articular uma resposta à questão de pesquisa apresentada na introdução, “Como as ações são limitadas por imposições de gênero reforçadas na escola?”, discutiremos algumas postagens de redes sociais relacionadas a expressões de alunas acerca da forma como seus comportamentos são regulados pelo fato de serem mulheres. Os prints se encontram em anexo.

Iniciaremos com as postagens que se referem especificamente a situações ocorridas dentro do Colégio Pedro II, em diversos dos campi. A seguir, usaremos postagens relacionadas a escolas não identificadas nas redes sociais referentes à campanha #meuprofessorabusador e relacionaremos, por fim, essas postagens com as nossas vivências como alunas.

No post (1), a aluna relata como foi advertida por estar usando uma peça do uniforme que deixava parte do seu corpo em evidência:

“A tia do SESOP mandou eu comprar uma saia nova pq a minha tá muito curta e eu fico c maior bundão, só rindo kkkkikkkkkkk”

18/10/2017

Percebemos aqui a desconstrução da ficção de que apenas mentes estariam sendo trabalhadas na escola no currículo oficial (ou seja, a seleção de conteúdos disciplinares). Se considerarmos que o cotidiano da escola é pedagógico e atua na formação das(os) alunas(os), temos aqui um exemplo de discurso que atua na restrição dos corpos. A aluna não é aqui advertida por estar trajando uniforme errado ou não estar usando uniforme, ela é advertida por não estar apagando seu corpo.

A ideia do senso comum que originou a cultura do estupro é aqui observada: as mulheres precisam apagar seus corpos para não “atiçar” os instintos masculinos e incontroláveis. Essa disseminação da cultura do estupro autoriza o constrangimento das meninas que nada estão fazendo além de usar seus uniformes escolares e ir ao colégio, como mostra o post (2):

Se você acha que assédio não existe, te desafio a passar 1 dia usando uniforme do cp2. Fetiche nojento.”

20/10/2016

Em lugar de educar os homens, ou punir assediadores, limitam-se as ações das mulheres. Isso se percebe também no post (3):

Usuária(o) 1: “Menino assedia: acontece nada, amigos ignoram, zoam, geral caga / Menina é assediada: tem q averiguar, não foi assédio, cuidado aí ein”

Usuária(o) 2, em reposta ao post anterior: “PROFESSOR ASSEDIA: direção dá esporro, sesop caga, alunos defendem o prof pq ele faz piada / Menina é assediada: mas também, ela se ofereceu…”

18/09/2017

Observamos aqui o post da(o) Usuária(o) 1 acerca de um fato oriundo do machismo estrutural da sociedade em que vivemos. Do homem se espera a não repressão de seus impulsos sexuais, materializados no constrangimento verbal ou físico a mulheres. Esses impulsos são incentivados pelas reações a eles ali descritas: congratulações e brincadeiras de amigos sobre o fato. A naturalização desses comportamentos por parte dos meninos se evidencia quando a(o) usuária(o) indica que “geral caga”, ou seja, socialmente não se compreendem essas ações como algo agressivo, a ponto de passar despercebido.

Interessa-nos aqui para os propósitos do trabalho a resposta da(o) Usuária(o) 2, pois ela(ele) recontextualiza o que acontece amplamente no mundo social e situa essas práticas machistas dentro do contexto da escola, mais especificamente do Colégio Pedro II. O que se percebe é a reprodução institucional do machismo estrutural e da cultura do estupro, uma das formas de atuação desse machismo que culpabiliza as vítimas pelo comportamento sexual descontrolado dos agressores.

Cabe apontar que dificilmente os casos de assédio de professores contra alunas são denunciados pelas meninas, pois se sentem vulneráveis e desfavorecidas na assimetria de poder institucional perante os professores. Outro problema é a naturalização já mencionada do machismo, que leva quase todas as meninas a realmente se sentirem culpadas, imaginando se sua saia talvez tenha realmente mostrado “maior bundão” (post 1), ou se realmente “se ofereceu” (post 3). Desse modo, muitas situações de assédio nem mesmo são compreendidas como assédio no momento em que acontecem.

Os posts seguintes trazem situações relatadas pela campanha na rede chamada #meuprofessorabusador. Não é possível afirmar se os casos ocorreram dentro do Colégio Pedro II, pois qualquer menina com acesso à internet poderia ter participado. A importância dessa campanha, considerando que muitas vezes o assédio não é reconhecido, é exatamente conscientizar as meninas sobre isso.

Post (4): “#meuprofessorabusador fala que deveria ser normal dar um beijo na boca de todas as alunas antes de começar a aula” 24/02/2016

Post (5): “#meuprofessorabusador achava que podia me fazer ficar no quadro mais tempo para ficar falando da minha bunda com meus colegas homens”07/03/2016

Post (6): “#meuprofessorabusador achava que podia me abraçar por trás e falar coisas no meu ouvido, que não me dispensava não, que sou bem gostosinha”07/03/2016

Com os relatos acima, retirados das redes sociais, percebemos que muitas meninas estão submetidas a constrangimentos, tendo suas ações limitadas por imposições de gênero reforçadas na escola. Quantas vezes, mesmo preferindo usar a saia do uniforme escolar, alunas optam pela calça comprida tentando evitar assédio dentro e fora da escola?

Quantas vezes, mesmo desejando dizer não e expressar firmemente suas opiniões, alunas se veem forçadas a escrever no quadro, passar mais tempo ali de pé, sob os olhares masculinos, porque seu professor, que tem o poder de reprová-la, “pediu” que o fizesse?

Nossas vivências como alunas do Ensino Médio apontam na mesma direção dos relatos das redes sociais aqui apresentados. Há olhares para as meninas que sobem as escadas, quando estão usando a saia do uniforme, da parte de alguns funcionários, que nem mesmo se preocupam em ser discretos. Testemunhar isso chocou uma das autoras deste trabalho a ponto de não usar essa peça do uniforme novamente, optando pela calça comprida. Outras situações envolvendo olhares acontecem quando as meninas estão com seus uniformes de educação física, seja roupa de banho na natação ou não. O machismo estrutural, aliado à complexidade das relações de poder institucionais (professores e funcionários são pessoas com maior poder), leva à despreocupação quanto a olhares e até mesmo falas inconvenientes e constrangedoras. A impunidade quase absoluta com que isso acontece está ensinando às alunas muito além das disciplinas, limitando nossas ações, colocando-nos em um lugar muito limitador das nossas potencialidades.

REFLEXÕES FINAIS

Muitas pessoas acreditam que a escola deve ensinar apenas as disciplinas, considerando que somos mentes a serem desenvolvidas. Porém, o que percebemos, na análise das redes sociais e nas nossas experiências como alunas, é a escola reforçando padrões naturalizados de gênero, especialmente na forma como a questão do assédio tem sido tratada.

É urgente a conscientização para a educação dos corpos promovida na escola, a fim de evitar os sofrimentos aqui descritos e educar os alunos de forma a não se tornarem agressores castradores das ações femininas.

BIBLIOGRAFIA

BUTLER, J. (2007 [1990]) Gender Trouble. Londres: Routledge.

EPSTEIN, D.; O’FLYNN, S.; TELFORD, D. (2001) Othering education: sexualities, silences, and schooling. Review of research in education, vol 25, 2000-2001, pp 127-179. 8

FRANGELLA, S. M. (2000) Fragmentos de corpo e gênero entre meninos e meninas de rua. Cadernos Pagu (14), Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, pp. 201-234.

MORRIS, M. (2005) Queer life and school culture: troubling genders. Multicultural Education. Caddo Gap Press. Spring, 2005 Source Volume: 12 Source Issue: 3

LOURO, G. L. (2000) Pedagogias da sexualidade. In: —. (org.) O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. pp. 7-34.

SANTOS, F. M. dos; GOMES, S. H. de A. (2013) Etnografia virtual na prática: análise dos procedimentos metodológicos observados em estudos empíricos em cibercultura. Artigo apresentado no Eixo 1 – Educação, Processos de Aprendizagem e Cognição do VII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura realizado de 20 a 22 de novembro de 2013.

SILVA, T. T. da. (2009 [1999]) Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica.

VIANNA, C.; FINCO, D. (2009) Meninos e meninas na educação infantil: uma questão de gênero e poder. Cad. Pagu [online], no. 33, pp. 265-283.

WIELEWICKI, V. H. G. (2001) A pesquisa etnográfica como construção discursiva. Acta Scientiarum, Maringá, 23(1):27-32.

ANEXOS