Schuma Schumaher
Originalmente apresentado no no Seminário Internacional “Quem são as Mulheres das Políticas para as Mulheres? – NEPEM/UFMG/ Belo Horizonte (MG) – 16 e 17 de Agosto 2018.
A luta das mulheres para garantir espaço e reconhecimento na sociedade vem de longe e passou por diversas etapas e sobressaltos. O texto pretende retratar as diferentes “ondas” do feminismo no Brasil, considerando seu início no final do século XIX quando, inúmeras mulheres se rebelaram contra a tragédia da escravidão, lutaram pelo direito ao trabalho sem a autorização do marido, pelo acesso ao ensino de qualidade, pelo direito de frequentar universidades e de votar e serem votadas até a segunda década do século XXI, cujas lutas estão recheadas de novas protagonistas.
Embora haja tensões e polêmicas quando se tenta descrever as trajetórias, impasses e conquistas das mulheres, usando metáforas como “ondas”, “estações”, “cenários”, “ciclos”, para se descrever as lutas e as transformações provocadas pelo feminismo ao longo dos séculos, não encontrei expressão melhor para falar da dinâmica das diferentes marés pelas quais a luta feminista enfrentou e enfrenta até os dias atuais.
Constatando que a luta dos movimentos de mulheres, apesar da sua continuidade, tem ao longo da história apresentado novas agendas, novas prioridades e, sobretudo, novas protagonistas, dependendo das relações de poder que operam nos diferentes contextos social, cultural, econômico e político, mostrarei algumas importantes estratégias das mulheres para romper com as limitações que lhes confinava no mundo privado, para conquistar direitos de cidadania e ter voz no mundo público. Chamarei de primeira onda o processo de luta contra a escravidão, o direito e acesso à educação de qualidade e a luta pela conquista dos direitos civis, políticos e sociais das mulheres, que no Brasil vai durar mais de 50 anos. Ao abordar esse período levarei em conta o refluxo na movimentação feminista, durante e pós-ditadura Vargas.
A segunda onda teve início no final dos anos 60 num momento de crise da democracia brasileira. Além de lutar pela igualdade, pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a violência sexual, também lutou contra a ditadura militar. O novo feminismo estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O Segundo Sexo, publicado pela primeira vez em 1949.
A passagem para a terceira onda, nas últimas décadas do século XX, quando a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, foi recheada de muitas críticas e polêmicas, especialmente pelas mulheres negras que questionavam o discurso da mulher universal, considerando-o excludente, uma vez que as opressões atingem de maneira diferenciada as mulheres. É nessa década que esquenta o debate e as tensões sobre a incorporação da questão racial na agenda feminista, sobre o conceito de gênero e seu binarismo e sobre a institucionalização do feminismo com o surgimento de várias ONGs e a implantação de mecanismos de políticas para as mulheres na estrutura do Estado. Judith Butler se destaca nesse período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões sobre corpo, gênero e sexualidade. Foi também nesse período que o movimento feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas, como a Eco 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 1993; Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; IV Conferência Mundial da Mulher, Beijing, 1995 e Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, 2001.
Considerado por muitos estudiosos o movimento social mais importante do século XX, o feminismo entrou no século XXI trazendo velhas questões, como por exemplo, a modesta presença das mulheres nos espaços de decisão e poder, além do acirrado debate sobre gênero na sociedade. Judith Butler se destaca nesse período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões sobre corpo, gênero e sexualidade.
Uma quarta onda feminista, iniciada com a Marcha das Vadias somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições fundamentalistas contrárias à autonomia das mulheres, do debate sobre interseccionalidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais e retomada das ruas.
A primeira onda feminista
Um olhar sobre o passado, logo revela que há muito ainda a se desvendar, especialmente sobre as mulheres indígenas e negras. A história “oficial” ignorou suas culturas, ofuscou suas reações aos conquistadores e aos açoites e, sobretudo, o papel fundamental que tiveram na luta contra a dizimação de seus povos e na organização da resistência contra a escravidão.
Políticas públicas, cotas e leis se tornaram parte integrante das bandeiras de lutas das mulheres desde a Revolução Francesa, no século XVIII. No outono de 1789, dois anos depois do lançamento da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, a jovem Olympe de Gouges publicou sua “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, na qual afirmava que as mulheres tinham necessidades específicas por serem mulheres, mas que deveriam ter os mesmos direitos que os homens. Nesse ano, resultado dos debates na Assembleia Francesa nasceria a Constituição de 1791. Olympe apoiou a posição, minoritária e perdedora, de que deveriam ser considerados “cidadãos ativos” todos aqueles que, independentemente de sexo, tivessem lutado pela queda da Bastilha. Venceu a ideia oposta e só foram considerados cidadãos os homens acima de 25 anos. Às mulheres francesas foi negado o direito ao voto, só alcançado afinal em 1944. Olympe morreu executada na guilhotina como traidora, em 1793.
É preciso lembrar que os séculos XVIII e XIX – bojos da Revolução Francesa e do positivismo -, reverberaram nas Américas, acentuando e trazendo um caráter mais revolucionário às mudanças políticas e sociais. A Revolução Francesa exportou os ideais burgueses de “igualdade, fraternidade e liberdade”. E o positivismo resultou sendo, na sociedade brasileira, a primeira doutrina de amplo alcance cultural, na qual se propugnava u papel afirmativo da mulher como agente social (embora ainda reservando a elas ofícios específicos e adequados à “natureza feminina”). No final do século XVIII, o avanço das tropas napoleônicas em direção a Portugal mudaria definitivamente os rumos da história nos trópicos. Quando, em 1808, a família real portuguesa veio viver no Brasil, as principais cidades brasileiras passaram por rápida evolução cultural, mas o costume de reservar às mulheres o confinamento aos lares e à vida familiar não mudou.
Até então, o privilégio do acesso aos cargos públicos e ao ensino era dos homens. Em 1809, foi criado um dos primeiros colégios para meninas de elite. Os ensinamentos consistiam em boas maneiras, trabalhos manuais, noções de francês, rudimentos de músicas e declamações, visando preparar as garotas para a vida dos salões e para a maternidade. Em geral ligados aos conventos, os colégios também ensinavam a rezar para afastar os “maus pensamentos”. Na primeira escola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram admitidas matrículas de moças. Manter meninas e escravos no berço da ignorância justificava- se com preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe latim não tem marido e nem bom fim” e “Escravos que sabem ler acabam querendo mais do que comer”. Contudo, escrever era uma ferramenta importante para as mulheres da época, embora a produção jornalística e literária das brasileiras se mantivesse confinada às páginas dos diários secretos. Indignadas, algumas corajosas pioneiras dispuseram seus talentos, suas inteligências e criatividade para desafiar o conservadorismo de sua época. As primeiras vozes levantadas timidamente no acaso do século XIX levaram a uma irretroagível insurreição feminina.
Nísia Floresta, intelectual nascida no Rio Grande do Norte, é personagem marcante desses tempos, cem anos antes da conquista do voto para as mulheres. Escrevia sobre a escravidão, o sofrimento dos índios e a qualidade do ensino. Mas escrevia acima de tudo sobre a mulher. Suas ideias contestatórias foram publicadas no jornal pernambucano Espelho das Brasileiras, em 1931. Os textos de Nísia afirmavam que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma educação plena. Em 1832, lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, tradução adaptada à realidade brasileira do livro Vindicatios of the Rights of Woman, da inglesa Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. A defesa da emancipação feminina através da educação a levou a fundar um colégio para meninas com proposta curricular avançada, tornando-se precursora dos ideais de igualdade e autonomia das mulheres. Úrsula, escrito pela negra maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859, é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mulher. Foi em São Luís que Maria Firmina fundou uma escola mista e gratuita para crianças pobres – iniciativa considera ousada para a época –, na qual lecionou até aposentar-se, em 1881.
As publicações do período, escritas e dirigidas por mulheres, tratavam dos mais variados assuntos e alcançavam um diversificado público leitor. Um traço comum a essa imprensa era não se ater apenas aos temas da culinária, da etiqueta e da moda, mesclando reflexões sobre assuntos fervilhantes, ousando defender a abolição da escravatura, a queda da monarquia, o acesso das mulheres as universidades, o divórcio e o direito ao voto. Ou seja, revolucionando a imprensa da época!
Das lutas enfrentadas pelas mulheres para conquistar o acesso à educação, o ingresso nos cursos superiores representou uma das mais difíceis batalhas. Em 1875, Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira que, embora aptas, tinham sido recusadas no curso de Medicina, decidiram “exilar-se” nos Estados Unidos para seguir sua vocação. A decisão ganhou grande repercussão na imprensa e debate na sociedade que acompanhou passo a passo a trajetória delas em terras norte-americanas através da publicação “A Mulher”, produzida por ambas e distribuída periodicamente aos principais jornais do Brasil.
Eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obrigadas a esperar até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e permitiu, condicionalmente, a entrada das mulheres nas faculdades. Entretanto, as solteiras deveriam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimento escrito por seus maridos.
As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de 1891, não chegavam nem a mencionar as mulheres no rol dos excluídos ao voto. No entanto, foram necessários mais de 40 anos de luta para conquistar esse direito.
As mulheres sempre enfrentaram severos preconceitos na vida social e política brasileira. Em 1910, Leolinda de Figueiredo Daltro ocupou ousadamente a cena pública com suas ideias vanguardistas em defesa das mulheres e dos índios. Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio de Janeiro o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mulheres pelo direito ao voto. A essa rebeldia estratégica se somaram dezenas de mulheres que numa marcha memorável, tomaram as ruas da cidade.
A proteção à maternidade e à infância torna-se tema de atuação pública das mulheres, assim como as difíceis condições no mundo do trabalho também começaram a fazer parte da pauta de suas preocupações nas primeiras décadas do século XX. Desvalorizada, desqualificada, a força de trabalho feminino era explorada a preços muito inferiores aos pagos ao trabalhador adulto do sexo masculino e, diante das restrições e das condições injustas, surgiram os primeiros protestos. Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa Carini tiveram destaque em São Paulo na elaboração de um manifesto convocando as costureiras – um grande contingente de operárias na época-, a lutar pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias.
A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917. Fortalecidas, dois anos depois, elas organizaram paralisação histórica noticiada pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi liderado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar com o envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos escreveu, discursou e panfletou nas portas de fábrica defendendo as causas das operárias. E em 1936, a mineira radicada em Santos (SP), Laudelina de Campos Melo, indignada com o racismo presente, especialmente no mundo do trabalho, decidiu criar uma Associação de Empregadas Domésticas para defender a categoria, composta majoritariamente de mulheres negras, que eram preteridas na hora das contratações em favor de uma trabalhadora branca, e tornar público as péssimas condições de trabalho.
Com o fim da I Guerra Mundial, com as mulheres “voltando para casa”, a proteção ao trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens públicos a nível internacional. O Tratado de Versalhes, pioneiramente recomendou salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexos. Abriu-se, assim, grande avenida para um movimento que desaguaria numa das mais importantes mudanças ocorridas no século passado: o movimento feminista. A partir de 1920, batizados de Ligas para o Progresso Feminino, grupos de mulheres se formaram em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triunfante corrente sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha Lutz, organizou no Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na ocupação de espaços na imprensa, na montagem de estratégias para a conquista do sufrágio feminino.
Porém, as feministas foram constatando, com indignação, que o engajamento na luta política e suas conquistas no campo da educação não foram suficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus direitos de cidadãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Josefina Álvares de Azevedo, Maria Eugênia Celso, e tantas outras, iniciaram uma campanha aguerrida em várias frentes e cidades. A fim de pautar o debate público e convencer os parlamentares, criaram diversas estratégias voltadas para a sociedade e para o Legislativo. Publicações, cartas à imprensa, seminários, manifestações artísticas e até panfletagem aérea eram armas de mobilização da opinião pública, dos congressistas e da população.
A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, colaboradora na fundação da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso “ameno e reformista” das sufragistas e optou por maneiras mais contundentes de atuar na cena política. Adepta do amor livre e plural aproveitou todas as oportunidades para manifestar-se a favor da educação sexual, contra a moral vigente, e as posições da igreja. Reconhecia que as relações mantidas pelas mulheres com seu corpo, com os homens, na família e no trabalho eram temas mal discutidos pela sociedade. Reivindicava a inclusão no currículo de todas as escolas femininas da disciplina “História da mulher, sua evolução e missão social”.
Musa do Modernismo, a escritora e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu, escandalizou a sociedade tradicional com suas roupas extravagantes, seus cabelos curtos e chapéus, com o cigarro entre os dedos num tempo em que fumar em público era imperdoável para uma moça de família. Numa época em que as mulheres em geral viviam e se vestiam de forma recatada e discreta, Pagu foi símbolo de atrevimento – feminista assumida escreveu romances, crônicas, poesias e dirigiu peças teatrais. Na sua mistura de militância comunista com defesa dos direitos das mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje ícone das lutas pela emancipação feminina. Seu nome batiza diversas iniciativas feministas contemporâneas.
Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, em 1927, a lei eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras. Ao ser eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano se tornou, um ano depois, a primeira prefeita da América Latina.
Com a brecha aberta pelas norte-rio-grandenses, ainda que seus votos tenham sido cassados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer esse direito. Um abaixo- assinado contendo duas mil assinaturas foi entregue aos parlamentares com o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramitava no Congresso. O documento, amplamente divulgado pela imprensa e hoje preservado no Arquivo Histórico do Senado Federal, era um retrato da realidade das brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não sejam eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias:
Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazendo as mulheres de todos os países civilizados. É princípio do regime democrático, universalmente reconhecido, que, aqueles que obedecem às leis e pagam impostos, assiste o direito de colaborar, direta ou indiretamente, na elaboração dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. (. ) A economia doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas à organização social e econômica do país. São problemas coletivos que não toleram mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as donas-de-casa, as mães de família, cujos filhos, na frequência diária de jardins da infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às vicissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de outros menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, considerando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior, não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração. Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está habilitada a compartilhar. (Lutz, Bertha; Mesquita, Jerônima et al, 1927. In. Dicionário Mulheres do Brasil, 2000: p. 220). O texto segue discorrendo sobre a evolução das conquistas das mulheres em outros países e termina assinado pela presidenta da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino Bertha Lutz, suas diretoras e outros destacados nomes da sociedade brasileira.
Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Nacional, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres concretizaram a maior conquista do século XX: o direito de votar e serem votadas. Na conturbada e efervescente agitação dos anos 1930, outro desafio estava colocado: promover a candidatura das feministas para a Assembleia Nacional Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando os eleitos e os representantes classistas, duas vozes eram de mulheres: Carlota Pereira de Queiroz, médica eleita por São Paulo, que se tornou a primeira deputada federal do Brasil, e a advogada alagoana, ativista feminista negra Almerinda Farias Gama, que, através de uma estratégia bem sucedida da Federação pelo Progresso Feminino, representou o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do Distrito Federal. É dela a foto introduzindo o voto na urna, em julho de 1933, estampada em várias publicações desde então.
A fim de se preparar para enfrentar as eleições gerais de 1934, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – FBPF – voltou à cena patrocinando acirrada campanha nacional para eleger mulheres comprometidas com a agenda de direitos. Nessa fase, a FBPF dava os seus primeiros passos no sentido de se tornar o principal canal de representação política do movimento feminista no Brasil. Reunidas em Salvador, por ocasião da 2ª Convenção Feminista Nacional, traçou o novo plano de ação para a entidade, cujas diretrizes eram a organização de filiais nos estados onde ainda não existisse uma Federação e instituir um novo desenho hierárquico, composto por uma líder nacional, uma presidente estadual e várias secretárias regionais. A reestruturação da FBPF previu, também, a existência de dois tipos de sócias, as ativas e as colaboradoras voluntárias.
Desse encontro resultaram também mudanças nos rituais da FBPF, com o uso de símbolos que caracterizassem a identidade, bandeira, hino e cores próprias, além da formulação do Decálogo Feminista, que passou a ser divulgado no Boletim – periódico editado pela entidade a partir do seu primeiro número, datado de outubro de 1934, com 10 princípios. Diz esse que toda mulher deve: 1) Exercer seus direitos políticos e cumprir seus deveres cívicos; 2) Interessar-se pelas questões públicas do país; 3) Ter ocupação útil à sociedade; 4) Alistar-se e votar; 5) Votar conscientemente e criteriosamente; 6) Não entregar seu título eleitoral; 7) Dedicar-se à causa feminista, crente no triunfo dos seus ideais; 8) Votar somente em quem for feminista; 9) Bater-se pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos e 10) Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual, social e cívico da mulher. (In. Dicionário Mulheres do Brasil, 2000: p. 223). O sucesso da mobilização das feministas da FBPF nas urnas foi inegável. Nove mulheres foram eleitas deputadas estaduais: Quintina Ribeiro, por Sergipe; Lili Lages, por Alagoas; Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte; Maria Luisa Bittencourt, pela Bahia; Maria Teresa Nogueira e Maria Teresa Camargo, por São Paulo; Hildenê Gusmão e Zuleide Bogéa, pelo Maranhão; Antonieta de Barros por Santa Catarina, sendo esta a primeira deputada negra do Brasil.
Mas, com a decretação do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso até 1945. Os movimentos sociais, entre eles o feminismo, foram sufocados, encerrando-se temporariamente o mandato das parlamentares. Bertha afastou-se gradualmente da direção da entidade até deixar o cargo de presidente, em 1942, mantendo-se fiel à causa feminista até o fim de seus dias. Foi sucedida pela escritora Maria Sabina de Albuquerque, uma das suas antigas colaboradoras.
Nos anos que se seguiram ao golpe de Estado de 1937, a maioria dos grupos de mulheres esteve vinculada aos partidos de esquerda ou protegidos sob seu manto. Com a entrada do Brasil segunda guerra contra o nazi-fascismo, começou uma efervescência política e ressurgiram associações de mulheres de linhas políticas diferentes, engajadas no esforço de guerra. As campanhas femininas para obter agasalhos para os pracinhas, os cursos de enfermagem, as dificuldades de abastecimento, a inflação, o mercado paralelo, a agitação social decorrente das ideias nacionalistas, serviram de motivação para intensas campanhas envolvendo um grande numero de mulheres. Lutando pela Anistia, elas se aglutinaram em diversas Associações, como Comitê de Mulheres Pró-Anistia, Comitê de Mulheres Pró- Democracia, Instituto Feminino de Serviço Construtivo, Federação de Mulheres do Brasil (filiada à Federação Democrática de Mulheres). Com a finalidade de combater a carestia foi criada a Frente Única de Mulheres, que reunia figuras de diferentes matizes ideológicos.
A partir de 1944, surgiram as Ligas Feministas, associações de mulheres, com a orientação do Partido Comunista, que permaneceram por um curto período na legalidade. Entre as ligas, havia um órgão central, com sede no Rio de Janeiro e ramificações pelas diversas unidades da federação. Além disso, foram criados na cidade do Rio de Janeiro diversos comitês de bairro. Em determinada época chegaram a funcionar cerca de vinte comitês, sendo que um dos maiores era o da Gávea, que tinha em torno de mil associadas. As ligas femininas tinham como pontos de lutas a resistência contra a demolição das favelas, a instituição de creches e bibliotecas infantis públicas, e campanha pela independência nacional. Dentre as principais iniciativas das mulheres de cunho nacionalista figura a campanha “O Petróleo é Nosso”, bem como as campanhas contra a carestia. O vigor da luta contra a carestia pode ser avaliado pela criação pelo Governo da SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento), como resposta às seguidas manifestações das mulheres nos anos 1950.
A Liga Feminina da Guanabara teve seu auge de atuação no ano de 1961, quando reuniu um manifesto com cem mil assinaturas contra a alta do custo de vida. Uma caravana de associadas levou o documento a Brasília. No mesmo ano realizou-se, no Rio de Janeiro, o II Encontro Latino-Americano de Mulheres, que contou com representantes de organizações feministas de diversos países. Os grupos de mulheres de tendência conservadora foram estimulados pelas elites que queriam derrubar o governo João Goulart. Uma das mais significativas organizações nesta linha foi a CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia. Depois da reviravolta política, com a implantação da ditadura militar, as organizações de mulheres, mesmo as de vertentes conservadoras, praticamente sumiram do cenário político.
Contudo, as organizações de mulheres progressistas acabaram por se fragmentar pelas divergências políticas e terminaram sendo extintas com a chegada dos militares ao poder, em 1964, interrompendo o sonho da participação política popular no Brasil. Sindicatos, associações e partidos seriam fechados ou “cooptados” pelo estado ditatorial. A cultura e a liberdade de expressão também seriam duramente perseguidas com a instituição da censura.
A segunda onda feminista
No mundo ocidental, os anos 1960 foram marcados pela luta das chamadas “minorias” pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, paralelamente à luta dos negros americanos por cidadania plena e os movimentos políticos contrários à guerra do Vietnã, viu-se o ressurgimento do movimento de mulheres. Essa nova “onda feminista” distanciava-se da sua primeira versão da luta pelo direito ao voto em fundamentos teóricos e em propostas de luta. O feminismo dessa segunda onda estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em “O Segundo Sexo”, publicado na França em 1949. Referência durante décadas para a nova organização do movimento de mulheres internacional, Simone questionava as relações sociais, estruturadas hierarquicamente e naturalizadas, que sustentaram durante séculos as desigualdades entre homens e mulheres.
Sob a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa francesa promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, sem a qual, para muitas, não haveria feminismo possível. Ao retirar da biologia, o caráter determinista do comportamento feminino, Simone de Beauvoir abriu espaço para as discussões sobre a igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento do que hoje se chama de estudos de gênero. Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de partida a publicação, em 1963, do livro “A Mística Feminina”, de Betty Friedan, no qual ela denuncia as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na esfera doméstica e propõe novas formulações para a reorganização do feminismo. Ela busca explicar o que chamou de “o mal que não tem nome”, representando a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades de realização eram a família, a maternidade e o lar.
Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a prática sexual ganhou novos contornos – e possibilidades! -, começando assim um lento processo de separação entre sexo e reprodução. O uso de contraceptivos mais seguros possibilitou às mulheres planejar quando e quantos filhos queriam ter e viver sua sexualidade sem associá-la à gravidez. O novo método interferiu diretamente nas relações entre homens e mulheres, uma vez que podia ser usado sem o conhecimento dos pais, do marido ou de quem quer que fosse. Se por um lado as mulheres estavam “liberadas para o prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até 1962, o Código Penal brasileiro tutelava as mulheres casadas aos desejos e decisões de seu marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem viajasse sem o consentimento do “chefe da casa”.
A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para acirrar a insatisfação das mulheres com o tradicional papel que desempenhavam na sociedade. Alimentadas por novas informações, norte-americanas, italianas, francesas, inglesas e suecas ganharam as ruas para entoar palavras de ordem como: “Nosso corpo nos pertence!”, “O privado também é político!” e “Diferentes, mas não desiguais!”. Essa perspectiva marca uma ruptura com o modelo anterior que associava diretamente papéis e comportamentos das mulheres às diferenças sexuais e orgânicas, aportando novos elementos para as discussões sobre a questão da opressão das mulheres e a superação do sistema capitalista. De certa forma, estavam “livres” dos “orgânicos” valores morais que tanto oprimia. A famosa história da “queima do sutiã” é bastante simbólica dessa busca de rompimento. Verdade ou mito está colocada para a história da luta das mulheres como uma ruptura com os condicionantes representados no corpo das mulheres!. “Se for cultural, vamos desconstruir! “
Como resposta à intensa mobilização de mulheres, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, promovendo, na Cidade do México, uma grande conferência internacional com a presença de delegações de diversos países. No Brasil, esses acontecimentos causaram enorme repercussão. Tanto a Conferência da Cidade do México, como a instituição da Década da Mulher pela ONU, deram alento à reestruturação do movimento feminista em novas bases. A despeito de o momento político nacional estar marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas sendo, portanto, impossível promover qualquer organização social sem o risco do confronto com os militares –, sob o manto protetor da instituição internacional tornou-se possível a organização de seminários nos quais as mulheres puderam discutir os problemas comuns.
Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de novos modelos sociais, que emergiu o feminismo organizado dos anos 1970. Se por um lado a nova onda feminista lutou contra a ditadura militar, por outro batalhou também contra a supremacia masculina, a violência sexual e o direito ao prazer.
As mulheres integrantes dos diversos grupos que se formaram na época vinham, quase que na sua totalidade, dos agrupamentos de esquerda. A confluência de ideias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares, aquelas que priorizavam os partidos políticos e as donas-de-casa não se deu sem conflitos. O debate político nesse momento foi caracterizado pela polarização de posições entre luta geral, luta específica, e a desconstrução do papel tradicional de mães e guardiãs da família. A segunda metade dos anos setenta foi, em grande parte, consumida por essa discussão, necessária e imprescindível, para se chegar na década de 1980 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejorativos. Havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno-burguesas preocupadas com sexo, as proletárias preocupadas com a união entre luta geral e específica, as “estrangeiras” – ex-exiladas influenciadas pelo movimento feminista europeu –, as defensoras do movimento autônomo…
No bojo dessa efervescência política nasceu o Movimento Feminino pela Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país e teve como uma das suas principais articuladoras a advogada Therezinha Zerbini e a imprensa alternativa. O jornal Brasil Mulher, editado a partir de 1975, primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um porta-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda feminista tomou conta de suas páginas. Logo depois veio o Nós Mulheres, publicação paulista que circulou de 1976 a 1978. Já no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer este jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa situação e nossos problemas”. Distribuído nacionalmente, durou oito exemplares. Inúmeros grupos e diversos jornais eram criados com o propósito de denúncia da subordinação da mulher na sociedade. Desta nova leva, destacava-se o jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que nasceu e contou com o suporte da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas e foi leitura obrigatória das feministas brasileiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais seguiram o exemplo: Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre (1981), o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo entre 1981 e 1987, e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil Mulher, de Salvador, a partir de 1984.
Com isso, o impacto da mudança de comportamento das mulheres, resultado da luta feminista, chegou também à grande mídia. Em maio de 1979 a Rede Globo de Televisão estreou o seriado “Malu Mulher”, protagonizado pela atriz Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido – a lei do divórcio acabara de ser promulgada. Daí em diante, durante um ano e meio, o público assistiu a personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevivência e pelo cuidado com a filha. Socióloga, Malu trocou sua condição de esposa pela de pesquisadora, engrossando, na ficção, as estatísticas da vida real: os anos 1980 registram 10 milhões de mulheres empregadas no país, número que cresceu para 25 milhões em pouco mais de 20 anos, quando um terço das trabalhadoras tinha pelo menos o segundo grau completo.
Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa TV Mulher, que ia ao ar diariamente na parte da manhã, mudava a abordagem sobre os temas femininos na TV – começam a sair de cena os cuidados com a família, trocados por conselhos da sexóloga Martha Suplicy e da feminista Irede Cardoso. Nas páginas das revistas para o público feminino, a jornalista Carmen Silva, autora desde 1963 da coluna “A arte de ser mulher”, publicada na revista Claudia, incentivava suas leitoras a ingressar no mercado de trabalho e a questionar as relações de poder em que os homens são os beneficiários.
As publicações de mulheres ganhariam reforço, a partir da década de 1990, com o lançamento da Revista de Estudos Feministas (REF), iniciativa de um grupo de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, na linha de teóricas norte-americanas e europeias, levaram para a academia as discussões sobre gênero, cultura e sociedade. Pioneira, a REF é uma das muitas publicações acadêmicas, à época e mantém-se, destinadas ao tema e leitura obrigatória para conhecer uma boa parte da teoria feminista brasileira.
Portanto, não é de hoje que as mulheres, através de centenas de publicações, e coletivamente, verbalizam as desigualdades e injustiças de gênero presentes na sociedade e expõem outra lógica de ver e viver o mundo e seus movimentos. Poderíamos destacar diversas contribuições de mulheres, as quais promoveram de distintas formas rupturas de paradigmas dominantes e ocuparam espaços que até então lhes eram negados pelos cânones tradicionais.
Redemocratização e movimento de mulheres
Da anistia conquistada em 1979, rapidamente o país mobilizou-se para recuperar o direito ao voto. O bipartidarismo – Arena/direita e MDB/esquerda – que reinava absoluto até então e colocava todas, as da luta geral e as da específica, num mesmo barco, caiu por terra. A chamada esquerda se reorganizou em vários matizes: socialdemocratas, socialistas, socializantes, comunistas, revolucionários, centristas avermelhados. A campanha das “Diretas-Já!” tomou as ruas, marcando o processo de redemocratização do país.
De costas para o Estado, espalhadas em diferentes partidos políticos, ou longe deles, o movimento de mulheres e feminista seguia crescendo. A multiplicidade de formas organizativas, a partir dos anos 1980, foi ganhando novos contornos e incorporando e novas sujeitas, até então invisibilizadas dentro do próprio movimento, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, produtoras culturais, educadoras populares e donas de casa. Vítimas das desigualdades salariais, da carestia, dos preconceitos, violência e do racismo, organizam-se em grupos de autoestima, de denúncias e de ação política.
De acordo com a assistente social Matilde Ribeiro (1995): Resguardadas as particularidades, os movimentos feminista e negro ressurgem no Brasil em meados dos anos 70, em plena ditadura militar, tendo como eixos básicos a luta pela democracia, a extinção das desigualdades sociais e a conquista da cidadania. Porém, em ambos os movimentos as mulheres negras aparecem como ‘sujeitos implícitos’: partiu-se de uma suposta igualdade entre as mulheres, assim como não foi considerado, entre os negros, as diferenças entre homens e mulheres (“Dossiê Mulheres Negras”. In. Revista Estudos Feministas, 1995, Volume 3, Número 2. p. 446).
Nesse contexto, ganham destaque as discussões sobre as necessidades específicas das mulheres negras, ausentes da pauta feminista. Não foram poucas as ativistas negras que levantaram suas vozes para criticar o feminismo que na prática não assumia a agenda étnica/racial. Numa entrevista no Jornal do MNU, maio-julho, de 1991, Lélia Gonzalez, intelectual e ativista negra assim se expressou: “No meio do movimento das mulheres brancas eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, criadoras de caso, não dá para gente dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nesta perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupadas com as questões que elas estavam colocando.[…]. O feminismo não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores antigos, se ele não levar em conta a questão racial”.
Em diálogo com Lélia Gonzalez, outra referência do feminismo negro, Luiza Bairros, que mais à frente, em 2011, se tornará ministra da SEPPIR, atentava para o fato de que:“Raça, gênero, classe social, orientação sexual reconfiguram-se mutuamente formando o que chamamos de um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade. De acordo com o ponto de vista feminista, portanto, não existe uma identidade única pois a experiência de ser mulher se dá de forma social e historicamente determinadas (Bairros, 1995, p. 461). O reconhecimento das especificidades e desigualdades sociais existentes abriu caminho para que outros segmentos de mulheres tivessem vozes no espaço público. As reuniões setoriais de metalúrgicas, químicas e outras categorias deram lugar aos Encontros de Mulheres. A palavra mágica de então foi autonomia: em relação aos homens, aos partidos políticos e ao Estado. Esses encontros pautavam-se por discussões que uniam luta por creche, contra o controle da natalidade, por salário igual para trabalho igual. Ainda sem aparecer como prioridades estavam os temas do aborto, da sexualidade, do racismo e da violência. Neste período, o movimento organizado de mulheres queria “achar um rumo”, “por a cara na rua”, unir esforços, se tornar uma força política reconhecida, construir possibilidades que apontassem para um futuro mais justo.
Na época, o complexo universo de reivindicações se expressava nos encontros estaduais, regionais e nacionais. Aproveitando o espaço acadêmico para promover intercâmbio, as primeiras reuniões nacionais foram promovidas pelas feministas nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Assim, em Fortaleza, no ano de 1979, realizou-se o que atualmente se convencionou chamar de Encontro Nacional Feminista. Um ano depois, no Rio de Janeiro, ocorria o segundo, uma reunião histórica com a participação de mais de 1.500 mulheres, entre professoras, estudantes universitárias e militantes do movimento.
A efervescência desse encontro levou a que as feministas abraçassem essa estratégia de aproveitar o espaço anual da SBPC para realizar paralelamente os encontros nacionais feministas. Assim, em 1981, com a realização da SBPC na Bahia, o grupo feminista Brasil Mulher de Salvador organizou o 3º Encontro Nacional Feminista, cuja pauta prioritária era o enfrentamento da violência contra as mulheres, uma vez que acabava de ser criado, em São Paulo, o primeiro SOS Mulher. Participaram do encontro 20 grupos de mulheres, no total de 120 ativistas feministas. A partir de então, concomitantes com as reuniões da SBPC, as organizações feministas passaram a convocar regularmente encontros nacionais, cabendo aos grupos locais a responsabilidade da produção dos encontros. Foram organizados dessa forma: o 4º Encontro Nacional Feminista, em Campinas (SP), 1982; o 5º Encontro Nacional Feminista, na capital federal Brasília (DF), 1983; o 6º Encontro Nacional Feminista, em São Paulo (SP), 1984; o 7º Encontro Nacional Feminista, em Belo Horizonte (MG), em 1985. O crescente interesse das mulheres em participar desses espaços levou que a convocação e realização dos encontros posteriores acontecessem fora do âmbito da SBPC, inaugurando um novo formato, novas metodologias de integração, ampliação dos dias de debates, e um espaço comum de convivência das participantes. Assim, o 8º Encontro Nacional Feminista, foi realizado no interior do Nordeste, em Garanhuns (PE), em 1986; o 9º Encontro Nacional Feminista, em Petrópolis (RJ), em 1987; 10º Encontro Nacional Feminista, em Bertioga (SP), 1988; 11º Encontro Nacional Feminista em Caldas Novas (GO) em 1991; 12º Encontro Nacional Feminista em Salvador (BA) em 1997; o 13º Encontro Nacional Feminista em João Pessoa (PB), em 2000 e o 14º. Encontro Nacional Feminista, Porto Alegre (RS), em 2004.
Foi nesse período que, diante das notícias de vários assassinatos de mulheres por seus companheiros, a luta contra a violência doméstica explodiu. O que antes eram pequenas notas nos jornais ganhou as primeiras páginas com a indignação e denúncia do movimento feminista. As mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros (MG), e Eliane de Gramont (SP) tiveram enorme repercussão e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assassinos. O slogan “Quem ama não mata”, gritado inicialmente pelas mineiras, ecoou por todo Brasil.
As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimentos acabam impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista, em 1985, e em pouco mais de 15 anos contabilizava-se mais de trezentas delegacias em todo Brasil. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie “Delegacia de Mulheres”, levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas feministas 10 anos antes.
As reivindicações que envolviam os direitos reprodutivos estavam centradas na fecundidade das mulheres e o acesso aos métodos contraceptivos, com o estado e os organismos internacionais posicionados numa perspectiva de controle da natalidade em detrimento da autonomia das mulheres. Um dos desafios para o movimento feminista foi enfrentar esse debate, enfatizando que o tema da saúde sexual e reprodutiva das mulheres deveria ser entendido na perspectiva dos direitos humanos.
As discussões sobre a saúde da mulher já fazia parte da agenda feminista, mas o assunto pegou fogo com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Trouxeram na bagagem, o polêmico tema do aborto, legalizado na França em 1975 e um dos eixos de luta do movimento internacional de mulheres. Em 1980, quando a polícia carioca “estourou” uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela prática do aborto, as feministas organizaram um protesto e, pela primeira vez, foram a público reivindicar o direito de escolha. O silêncio que envolvia o assunto estava definitivamente rompido e, desde então, ecoam as vozes das mulheres em defesa do direito à autonomia reprodutiva, com palavras de ordem como “meu corpo, minhas regras”, “pela vida das mulheres”.
Atropeladas pela democracia
Nas eleições parlamentares de 1978, feministas – individualmente – apoiaram algumas candidatas que traziam na sua plataforma de campanha o compromisso de combater a discriminação sexual. Os partidos políticos, dois nesse período, não incorporavam em seus programas nenhuma questão relativa à mulher.
Diante desse novo quadro, as feministas reagem de diferentes maneiras. Eva Blay descreve assim este período que se inicia: “Participar da política foi o dilema dos anos 80. O período pós-ditadura abriu algumas vertentes ao movimento de mulheres: continuar atuando nos movimentos sociais, entrar para o legislativo, para o executivo. Esta polêmica atravessou o movimento feminista e o movimento de mulheres. A decisão teve um cunho antes de tudo, partidário. As mulheres optaram por cada uma dessas vertentes, ora movidas pelas diretrizes de seus grupos, ora por opções pessoais”. (Artigo Mulher e Estado – 1988).
Em 1982, nas eleições diretas para os governos estaduais, os movimentos de mulheres que contavam com aliados em alguns partidos políticos reinauguram sua relação com o estado. Estimuladas pela volta da democracia, lideranças feministas do Rio de Janeiro elaboraram o documento “Alerta Feminista”, contendo propostas a serem apresentadas aos candidatos a governador. Em São Paulo, as feministas se dividiram no apoio a dois candidatos e as discussões se acirraram quando o grupo que apoiava o candidato do PMDB, junto com um programa de governo, propõe também a criação de um órgão específico, responsável pela proposição e defesa de políticas públicas relativas aos direitos das mulheres, na estrutura do estado.
Assim nasceram, em 1993, os dois primeiros Conselhos Estaduais dos Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais.
A lua de mel durou pouco…
O Conselho de São Paulo representa um marco que divide o movimento de mulheres, tanto para as que acreditavam na proposta, como para as que eram contra. E o que estava em questão era estritamente a relação do chamado “movimento autônomo” com o Estado. Como garantir a autonomia do movimento? Quais as formas de organização dentro do governo? De que maneira as reivindicações feministas seriam atendidas? Como não ser cooptadas? A criação do Conselho foi ampla e publicamente debatida.
Nesse momento é importante ressaltar que a escolha desse modelo de órgão, cuja proposta original era de composição pluralista e suprapartidária, foi torpedeada por parcela significativa do movimento de mulheres. Havia as que se recusavam a participar de qualquer organismo governamental por temer a descaracterização de suas reivindicações pelo Estado e a institucionalização do que havia de “radical, criativo e revolucionário” no feminismo, provocando consequentemente a perda da autonomia do movimento de mulheres.
Havia também as que, militantes do PT, compreendiam o papel do Estado na conquista de algumas reivindicações do movimento, porém, por razões mais partidárias que feministas, optaram por abster-se. Segundo Ana Vicentini: “… o grito de alerta dado por alguns setores, se baseava na dificuldade que o movimento sentia ante o inevitável diálogo a ser estabelecido com os órgãos governamentais e na recusa quase pueril de alguns setores em ver no Estado um possível interlocutor…” (Seminário “Feminismo no Brasil – Vislumbrando Novos Espaços”, NEIM/UFBA, 1988).
No processo que precede e envolve as eleições de 82, fica claro que as mulheres redescobriram a “grande política” e o movimento de mulheres de então – organizado em vários grupos de reflexão, debate e atuação setorial, em quase todos os Estados – vai fortalecer e incentivar, mesmo que não intencionalmente, a participação da mulher nas instâncias de representação política da sociedade.
Por outro lado, a “esquerda”, agora dividida e segmentada em vários matizes, volta seu olhar para a tal “questão da mulher”. Assim, a partir de 82, parlamentares de diversos partidos, se manifestam publicamente a favor de reivindicações feministas. No famoso 08 de março, passa a ser praxe a aprovação de moções de congratulação e apoio às mulheres no “seu dia”, por parte dos legislativos, que agora, além do mais, contam, com algumas feministas em suas fileiras. E o feminismo avança no seu reconhecimento público!.
Albertina de Oliveira Costa, no ensaio “É viável o feminismo nos trópicos? – Resíduos de insatisfação” apresentado no Seminário “Feminismo no Brasil” – NEIM/UFBA, 1988, aponta: “A questão da mulher é suficientemente ampla, suficientemente em evidência e suficientemente legítima, para que os partidos de esquerda comecem a se interessar por ela.” Ainda segundo Albertina, fica também evidente “…a controvérsia que vai durar anos entre feministas e femininas. Entre a boa e a má luta da mulher.” Com o vespeiro aberto em São Paulo em 1982, em função da criação do Conselho da Condição Feminina, abrem-se no país novas vertentes para a discussão sobre a institucionalização das demandas feministas.
Desde então vários Conselhos e Organismos de Políticas para as Mulheres (OPMs), vinculados ao poder executivo e natureza jurídica diversa – Secretarias, Coordenadorias, Subsecretarias, Superintendência -, nasceram para atender uma forte reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas; tendo como atribuição assessorar, formular, fomentar e monitorar as políticas públicas para as mulheres. Salvo exceções, padeceriam de falta de estrutura e escassez de recursos para a implementação da política e manutenção de seu quadro técnico, dependendo da “boa vontade” do governo e ou prefeito para a institucionalização da agenda de gênero no âmbito municipal e estadual.
Terceira onda… a caminho do planalto central
Em 1984, em São Paulo, um grupo de feministas envolvidas anteriormente com a proposta de criação do Conselho paulista, organizou o Seminário Mulher e Política, com a participação suprapartidária de deputadas federais, estaduais e vereadoras. Uma das conclusões desse seminário é a de propor ao governo federal a criação de um órgão nacional de defesa das mulheres.
A articulação política necessária para tal propósito, tendo à frente a deputada Ruth Escobar, tem início nos bastidores do planalto central (que, naquele momento, começava pelo Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte). O “novo jeito de fazer política”, um dos slogans do seminário, lembrava muito mais um “velho jeito”, na opinião de algumas feministas, uma vez que, os passos dessa articulação se davam sem prévia discussão com os grupos de mulheres e sem o reconfortante consenso que pautava a maioria das ações do movimento feminista.
Temores e comentários se espalharam pelo movimento de mulheres do país, passando por questões que iam desde a polêmica participação num governo não legitimado pelo voto direto até as conversas ao pé do ouvido sobre a composição do órgão, para muitas um colegiado de “notáveis”.
Foi no 7º. Encontro Nacional Feminista, ocorrido em Belo Horizonte em 1985, que essa discussão ganha dimensões nacionais e pega fogo diante da proposta de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM. Muitas feministas presentes no encontro buscavam o apoio do conjunto do movimento para essa proposta. Outras, naquele momento, criticando a atuação dos cinco conselhos existentes, vislumbravam nessa proposta uma grande ameaça à autonomia do movimento. O Estado não merecia confiança e o Sistema nos ameaçava:… As teias do poder apareciam como uma intrincada rede repleta de “obscuras” e “malignas” intenções. O “Estado” e o “Sistema” se mostravam como grandes entidades alheias à nossa existência. “Estamos conscientes de que o sistema, através dos órgãos oficiais do estado, reconhecendo a importância e o alcance das ideias feministas e de nossa militância e não podendo mais ignorar-nos, vem por isso assumindo nosso discurso ideológico.”
…”Sabemos entretanto, que é uma utopia acreditar que as idéias feministas sejam assumidas pelas entidades oficiais do Estado…” (Carta de B.H. – abril/1985).
No entanto, ao final do 7º Encontro Nacional, “coerentes com esta postura” segundo o documento, e reafirmando o repúdio à formalização do CNDM como se apresentava na proposta, as signatárias apresentam suas exigências: criação do CNDM mediante projeto de lei, como forma de garantir ampla participação da sociedade civil e das mulheres; garantia de dotação orçamentaria própria; identificação do órgão com a luta contra a discriminação e opressão das mulheres; qualquer parlamentar que venha a ocupar cargo no conselho deveria licenciar-se de seu mandato; viabilização da participação do movimento de mulheres na elaboração, execução e acompanhamento das políticas oficiais; o conselho deveria expressar as reivindicações do movimento de mulheres e das feministas, sem pretender representá-lo ou substitui-lo e, finalmente, exigiam que o critério de composição do conselho fosse baseado na trajetória feminista de suas participantes.
A polêmica instalada e as suspeitas de algumas feministas em relação ao estado e de suas múltiplas possibilidades de cooptação, não inviabiliza a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que se dá em agosto de 1985, através de projeto de lei nº 7.353, aprovado pela Câmara Federal. O projeto trazia em seu enunciado que a finalidade básica do órgão seria a formulação de políticas com vistas à eliminação da discriminação da mulher. Esse objetivo foi desdobrado em algumas modalidades de ação específica, ali explicitadas, tais como formulação de diretrizes, elaboração de projetos de lei, assessoria ao poder executivo, emissão de pareceres, acompanhamento da elaboração e execução de programas de governo e apoio ao desenvolvimento de pesquisas sobre a condição da mulher.
Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM nasce com autonomia administrativa e financeira e sua estrutura “híbrida” era composta por um Conselho Deliberativo – com a função de controle social, cujas integrantes eram representantes de diferentes setores do feminismo nacional e uma estrutura de gestão, composta por uma Assessoria Técnica, Diretoria de Articulação Política e Secretaria Executiva. Na mesma Lei foi criado o Fundo Especial de Direitos da Mulher para onde serão enviados os recursos orçamentários.
A primeira presidente, escolhida dentre as conselheiras, foi a deputada Ruth Escobar (que se licenciou do mandato) e, depois, a socióloga e militante feminista Jacqueline Pitanguy. O corpo técnico era composto, na sua expressiva maioria, por feministas autônomas vindas de diversas regiões do país e trazendo na bagagem não só o pioneirismo, mas, sobretudo, o grande desafio de abrir espaço na estrutura política do governo, ser um canal de interlocução com os movimentos de mulheres, além da formulação e monitoramento de políticas públicas.
Nessa primeira gestão, que vai de 1985/1989, o Conselho apostou em diferentes frentes e muitas foram as ações desenvolvidas. Investiu nas áreas de saúde, educação, trabalho (rural e urbano) violência, combate ao racismo, políticas de creche e legislação.
A preocupação das feministas com a institucionalização de suas demandas e a possibilidade de descaracterização das propostas tornou-se um desafio para o CNDM, que inaugurava a chegada das feministas na estrutura do governo federal.
Institucionalização das demandas feministas
Em novembro de 1985, quatro meses após sua criação, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher lançou a Campanha “Constituinte sem mulher fica pela metade”, que tinha o propósito de ampliar a representação feminina no Congresso Constituinte, a ser instalado no ano seguinte, debater a situação jurídica da mulher e incentivar sua participação no processo de formulação da nova Constituição Brasileira. Imediatamente foi preciso enraizá-la. As técnicas do CNDM viraram peregrinas. Visitaram todos os estados, estimulando o debate e o envolvimento dos movimentos feministas e de mulheres e os respectivos conselhos na campanha e no processo.
Paralelamente, o CNDM investiu numa campanha publicitária que incluía TV, outdoors, publicações, e outros recursos de comunicação e, organizou em todo país debates, encontros e seminários para discussão e formulação de propostas, culminando na realização de um Encontro Nacional, em agosto de 1986, que elaborou e aprovou a Carta das Brasileiras aos Constituintes e lançou a segunda fase da campanha: “Constituinte prá valer tem que ter direitos da mulher”.
Nas eleições de 1986 a representação feminina no Congresso Nacional foi mais que triplicada, passando de 08 deputadas federais para 26 deputadas constituintes, num total de 559 parlamentares eleitos. Numa forte conjugação de objetivos comuns, o CNDM, centenas de grupos de mulheres, conselhos, sindicatos e a bancada feminina, juntaram esforços para que as propostas contidas na Carta das Brasileiras fossem incorporadas na nova Constituição que ia ser elaborada. E assim, defendeu propostas feministas no Congresso Nacional, algumas contra o próprio governo do qual faziam parte, como a licença maternidade de 120 dias e a legalização do aborto, entre outras.
A Carta das Brasileiras foi entregue solenemente ao Presidente do Congresso, deputado Ulisses Guimarães, e também lançada em todas as Assembleias Legislativas Estaduais de maneira a evidenciar a organização articulada das mulheres e o caráter nacional de suas propostas. Estava dada a largada. A estratégia passava a ser, então, visitar gabinete por gabinete e tentar convencer os deputados e senadores da legitimidade e importância das reivindicações das mulheres.
“O que estão querendo as mulheres?”, provavelmente pensaram alguns deputados que se apressaram em tentar desvalorizar o trabalho do Grupo, chamando-as de “lobby do batom”. Mas as mulheres não se intimidaram e nem perderam o humor com essa provocação. Conseguiram transformar, estrategicamente, aquilo que pretendia ser uma afronta em mais um elemento da mobilização e força política das mulheres e da bancada feminina. O apelido foi parar nos jornais, mas não com a conotação pejorativa dos que subestimavam a força e a organização das mulheres.
Daí nasce forte e decisivo o Lobby do Batom. Impossível dizer sua composição e seus limites, em número de pessoas. Todo mundo ajudava a telefonar, consultar, contatar, redigir, reproduzir, expedir, visitar gabinetes e persuadir indecisos. No Congresso, até o mais distante dos parlamentares esbarrava no recado: “Constituinte, as mulheres estão de olho em você !!!”
As integrantes do CNDM, a Bancada Feminina do Congresso Nacional e inúmeras organizações feministas participaram de todas as etapas do processo constitucional, nas subcomissões, nas comissões temáticas, na apresentação de emendas, na análise dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do projeto. Realizaram-se várias manifestações e vigília para acompanhar a votação final. Mantiveram um canal permanente com os Conselhos, com as feministas, com os grupos de mulheres, as categorias profissionais específicas, como as trabalhadoras domésticas e rurais, com o movimento de mulheres negras, indígenas, lésbicas, informando do andamento das propostas e transformando-se em um verdadeiro lobby nacional – o Lobby do Batom -, considerado um dos dois maiores grupos da sociedade civil organizada na Constituinte. 80% das propostas das mulheres foram incorporadas no texto final.
Para a pesquisadora Marlise Matos (2013): “A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos sociais, introduziu instrumentos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular), instituiu a democracia participativa e abriu a possibilidade de criação de mecanismos de controle social, como os Conselhos de Direitos, de Políticas e de Gestão de políticas sociais específicas (p. 05)”.
Regina Céli Pinto (2003) reforça as palavras de Matos (2013), ao dizer que a “carta foi o documento mais completo e abrangente produzido na época[…] e trouxe várias conquistas para as brasileiras”.
Registram-se dois grandes embates travados nas Comissões temáticas da Câmara no que diz respeito à autonomia das mulheres: um referente ao direito ao aborto (objeto de emenda popular) que o texto final não menciona e outro, que era garantir explicitamente no texto a proibição da discriminação em razão da orientação sexual – embora essa demanda tenha sido pautada pelos movimentos LGBT e apoiada pelos movimentos de mulheres, também não foi incorporado por pressão dos parlamentares conservadores.
Até a constituição do CNDM, o Estado não possuía política pública específica para a mulher, salvo alguns programas na área da saúde. A política do CNDM provocou, portanto, alterações no cenário nacional. Se foram pequenas, pontuais e fragmentadas, ainda assim, fazem parte do processo histórico. Podemos lembrar o nascimento de vários Conselhos Municipais e Estaduais, Delegacias de Mulheres, Casas Abrigo, creches nos locais de trabalho e mudança na legislação, entre outros avanços.
De natureza híbrida, o CNDM foi marcado pela dualidade de sua atuação. Analisando sua curta trajetória, pode-se dizer que, nesse primeiro período, esteve muito mais voltado para a articulação com os movimentos de mulheres do que com o próprio Governo. Teve mérito de não haver jamais atuado partidariamente ou de ter se transformado em “cabide de empregos”. Tampouco foi “maternalista”, na medida em que sempre devolveu aos grupos de mulheres a responsabilidade de apontar suas prioridades.
Vítima do sucesso, não foi capaz de garantir sua permanência, nos moldes originais, dentro do aparelho estatal. Em janeiro de 1989, o Ministro da Justiça Oscar Dias Corrêa, faz uma declaração à imprensa de que o CNDM já havia cumprido sua função, pois havia conquistado 80% das reivindicações na nova Constituição Brasileira e deveria passar por um enxugamento proporcional e ser transformado em apenas um órgão deliberativo.
Ao cortejo das ações visando minar a atuação do órgão, em julho do mesmo ano, mais uma medida arbitrária surpreende as integrantes do Conselho e o movimento de mulheres com a nomeação de 12 novas conselheiras, sem identidade com o movimento de mulheres, provocando a renúncia coletiva da equipe técnica e integrantes do Conselho.
Com a credibilidade abalada e para completar o estrago causado, logo em seguida, na “Era Collor”, uma Medida Provisória, n° 150 de 15/08/1990, acaba com sua autonomia administrativa e financeira.
Em 1994, impulsionado pelo Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos, uma nova proposta foi apresentada aos candidatos à Presidência da República – tratava-se da criação do Programa para Igualdade e Direitos das Mulheres, alocado na Casa Civil da Presidência da República, cuja estrutura contaria com um Conselho Deliberativo e uma Secretaria Especial.
Com a posse de Fernando Henrique Cardoso em 1995, contrariamente ao esperado, o novo Governo reativou o CNDM sem estrutura administrativa, sem orçamento próprio e, usando de suas prerrogativas, decidiu sobre a composição do colegiado e nomeou a nova presidente sem consulta formal aos movimentos organizados de mulheres. A presidente Rosiska Darcy de Oliveira e as conselheiras assumiram os seus cargos com o compromisso de realizar as mudanças consideradas necessárias no interior desse mecanismo.
Com o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, resultante da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, firmou uma série de protocolos de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as estratégias para promover a igualdade.
Em 1997, durante a reforma administrativa do Estado, apesar de ter alcançado uma maior visibilidade nos meios de comunicação e implementado uma série de ações como, por exemplo, o Programa Nacional de Promoção da Igualdade e Oportunidade na função pública, desenvolvido em parceria com o Ministério da Administração; o CNDM foi rebaixado dentro da hierarquia do Ministério da Justiça.
Considerado um mecanismo institucional frágil e desproporcional à sua missão política, em 1999, mais uma vez, as articulações e redes nacionais se mobilizam para pressionar o governo com intuito de abrir o debate sobre a reformulação desse organismo. Nesse mesmo ano, uma nova presidente, Solange Bentes, e colegiado tomam posse. Em 2002, no último ano deste mandato, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, subordinada ao Ministério da Justiça. Sua competência e estrutura não foram definidas pela lei que o instituiu.
Enquanto isso, o movimento feminista, longe do governo, estava cada vez mais revitalizado. Um exemplo do seu vigor foi a realização, no Congresso Nacional, em 2002, da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras com mais de duas mil participantes. Precedido pela realização de conferências estaduais, o encontro nacional aprovou a Plataforma Política Feminista, documento que levanta desafios para a reconstrução da sociedade, do Estado, das relações inter-raciais, interpessoais e de gênero. Sobretudo, deixou registrado um jeito diferente de fazer política, garantindo espaço democrático onde as diferentes forças coletivas puderam se expressar.
Ao mesmo tempo, as mulheres tiveram sua agenda de ação ampliada com um ciclo de conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a realização da ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, da qual as brasileiras participaram ativamente do processo e construção do Planeta Fêmea, espaço privilegiado dentro do Fórum das Organizações Não- Governamentais da conferência, que promoveu o encontro de representantes de vários países e culturas e possibilitou a elaboração da Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), ambas tratando de assuntos de interesses da agenda feminista. O auge desse processo de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995).
O processo de preparação dessas conferências fortaleceu os movimentos e suas articulações em todo o mundo e, no Brasil, a Conferência Mundial da Mulher abriu a oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), reunindo fóruns estaduais e articulações já existentes, estimulando a criação de novos espaços de debate em todo o país. Nessa agenda envolveram-se grupos de mulheres, organizações feministas, sindicalistas, associações profissionais e de bairros, representantes de partidos políticos, centros acadêmicos, além de outras organizações da sociedade civil que, também preocupadas com a cidadania e qualidade de vida das mulheres brasileiras, consideravam importantes os temas da IV Conferencia. Foram realizadas mais de 90 atividades durante o processo, envolveu aproximadamente 700 grupos de mulheres e produziu 22 documentos estaduais contendo diagnóstico sobre a situação das mulheres e propostas, que sistematizados foram colocados em discussão na Conferência Nacional de Mulheres rumo a Beijing, realizada em Junho de 1995, na cidade do Rio de Janeiro, com a presença de feministas de todos os estados brasileiros. Como resultado dos debates foi aprovado o Documento das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial, que frisou fortemente que a luta das mulheres não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao patriarcado, racismo e homofobia – que estruturam as desigualdades-, considerando a diversidade regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiência, credo e inserção política de cada uma.
A forte articulação do movimento feminista e de mulheres, estabelecida no processo preparatório, e a consequente presença de centenas de brasileiras em Beijing, somada à capacidade de incidência e pressão junto às delegações oficiais foi fundamental para uma postura progressista do governo brasileiro, que liderou as negociações e muito contribuiu para os avanços conquistados na Declaração e na Plataforma de Ação aprovada pelos representantes dos países participantes. A Plataforma de Ação de Beijing traz três inovações dotadas de grande potencial transformador na luta pela promoção da situação e dos direitos da mulher: o conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade.
A ação internacionalizada seguiu no século seguinte: em 2001, organizações de mulheres negras se mobilizaram para participar da Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban/África do Sul), resultando na fundação de duas grandes redes nacionais: em 2002, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e, em 2004, o Fórum Nacional de Mulheres Negras.
Sônia Alvarez (2014) destaca que: “Os anos 1990 testemunharam a ascendência de uma nova forma de ativismo transnacional entre o crescente número de feministas na América Latina–um ativismo que tinha como meta organizações intergovernamentais e outros fóruns de política internacional dentro e fora do sistema interamericano, assim desejando alcançar projeção global ao pressionar por mudanças na política de gênero na linha de frente nacional (p.62).
No final do século XX, começam a surgir as ONGs feministas com profissionais técnicos, tornando uma parcela significativa do movimento feminista mais institucionalizado, consequência das necessidades de produção de informações especializadas, articulação com os governos e ação politica envolvendo diferentes setores dos movimentos de mulheres.
Um novo ponto de partida
Quando, em 2003, o Governo Lula criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Brasil deu um salto para a institucionalização das questões de gênero. A Secretaria foi criada com status ministerial, estrutura técnica, recursos financeiros e com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulheres, combater todas as formas de preconceito e discriminação provocadas pela sociedade patriarcal e excludente, através da indução de um olhar de gênero e raça na formulação das políticas voltadas para as mulheres em todos os órgãos governamentais. Dessa maneira, o CNDM ressurgiu como um colegiado integrante da estrutura básica da Secretaria, a contar, em sua composição, com representantes da sociedade civil e do governo. Isso ampliou significativamente o processo de controle social sobre as políticas públicas para as mulheres.
O CNDM foi recomposto por 20 representantes da sociedade civil, indicadas por seus organismos, redes, articulações, de abrangência nacional, 03 especialistas em gênero escolhidas e indicadas pelo Presidente da República e 13 representantes do governo (Ministérios). Sua presidência foi exercida pela Ministra da SPM – Emília Fernandes, escolhida e nomeada pelo Presidente da República.
As principais demandas, construídas ao longo da história de lutas dos movimentos de mulheres e feministas, ganharam, então, um novo patamar. Havia, agora, um instrumento governamental de escuta, canalização, organização, execução e institucionalização da agenda das mulheres/gênero, oficialmente estabelecido.
A pesquisadora Marlise Matos (2013) considera um ganho concreto para as mulheres “a emergência da questão de gênero na agenda governamental e a consequente implementação de políticas públicas direcionadas às mulheres, principalmente, na área de combate à violência e na atenção à saúde”.
O diálogo do governo federal – representado pela SPM/PR – com os movimentos sociais fluiu democraticamente ao longo do período, o que foi bastante positivo para o avanço de algumas conquistas. Além disso, em função da história e do perfil do novo governo popular, passa a ser um estimulador de demandas sociais, convocando Conferências Nacionais em diversas áreas.
Com certo entendimento de que era necessário o envolvimento de todos os entes para que as políticas públicas se tornassem exequíveis e, para que os objetivos de melhorar a vida das mulheres, se concretizasse, o processo de realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2003, foi extremamente mobilizador e envolveu os governos federal, estaduais e municipais, bem como os movimentos mulheres.
Como resultado das discussões e votações a SPM construiu o I Plano Nacional de Políticas para Mulheres (I PNPM) que sistematizou e propôs políticas públicas que atendessem às principais demandas das mulheres. O I Plano de Políticas para as Mulheres veio a se complementar nas duas edições seguintes, após a II e III Conferências Nacionais, com a inserção de novos eixos: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à violência contra as mulheres; participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar; direito à terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; cultura, comunicação e mídia não-discriminatórias; enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia e enfrentamento às desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção às jovens e idosas. Para um maior detalhamento dos Planos e suas respectiva agendas ver o Capítulo de Marlise Matos e xxxx Lins, no primeiro volume desta coletânea.
Os compromissos de implementação da legislação nacional e a garantia de aplicação dos tratados internacionais que visavam o aperfeiçoamento dos mecanismos de enfrentamento à violência contra as mulheres foram mantidos em todas as edições do Plano.
Desse modo, propostas antigas e permanentes nas lutas das mulheres e feministas tornam-se políticas de governo, em torno das quais se ordenam programas e ações, através da transversalidade com outros Ministérios e órgãos governamentais pra sua execução. Isso fez com que o debate de gênero entrasse na órbita do Orçamento Governamental (Plano Plurianual) e de outras políticas e planos de ação do Governo Federal, com a mobilização de diferentes setores dentro do governo e fora dele. As mulheres, em suas especificidades, saíram da invisibilidade!
Em 2005, foi criado, pelo decreto 5.390, o Comitê de Monitoramento do Plano, com o objetivo de acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento dos objetivos, ações e metas definidos no PNPM. Alterado em 2013, pelo Decreto nº 7.959, que acrescentou mais onze vagas para representantes dos órgãos de governo, ampliando sua capacidade de articulação e de monitoramento. Com a ampliação, o Comitê passou a contar, com 32 órgãos governamentais e três representantes da sociedade civil do CNDM, garantindo-se, assim, a transversalidade em todas as fases do Plano. O Comitê cumpriu, até o golpe de 20161, um importante papel na introdução da perspectiva de gênero nos Órgãos Federais, dando suporte à criação de Mecanismos de Gênero na estrutura desses órgãos, fortalecendo, assim, a institucionalização da igualdade da agenda feminista nas ações governamentais.
Muitos debates e conquistas foram possíveis, à época, e isso se deveu, também, à articulação permanente entre governo e sociedade civil, juntos e cada um jogando seu papel. As mulheres brasileiras passaram a dispor de uma Central de Atendimento (Ligue 180); de uma Lei para o enfrentamento e combate à violência, a Lei Maria da Penha; de equipamentos articulados em redes de enfrentamento e atenção à violência doméstica e sexual; de acesso a programas de redução da pobreza, ao Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida. Muito embora as desigualdades permaneçam renitentes, programas sociais importantes foram implementados e consolidados para o enfrentamento da desigualdade social e o surgimento de um número expressivo de Organismos de Políticas para as Mulheres e Conselhos dos Direitos das Mulheres e vários estados e municípios.
Nesses treze primeiros anos do “novo CNDM”, ele funcionou mais como um espaço de consulta e monitoramento do que como propositor de políticas públicas. Os fatos de o CNDM não ter uma estrutura própria, recursos orçamentários garantidos, de se reunir com muito pouca frequência, ter grandes dificuldades de propor sua própria pauta, ter pouquíssima visibilidade na sociedade, acabou por atuar de maneira discreta e pouco incidente. Ainda assim, na minha solitária avaliação política, ele se comportou bem.
Sua harmônica existência com as diferentes gestões da SPM facilitou bastante a atuação do CNDM, quase que exclusivamente voltada e colada nas ações e políticas desenvolvidas pela Secretaria como, por exemplo, a Coordenação das quatro Conferências de Políticas para as Mulheres, participação na Comissão Tripartite para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, acompanhamento do processo de formulação da Lei Maria da Penha, e, ainda que timidamente, no GT de acompanhamento do Plano de Políticas para as Mulheres, entre outras.
O papel desempenhado pelas Conselheiras do CNDM nas Conferências foi fundamental para se garantir um debate amplo, envolver os poderes, os partidos, as categorias profissionais, estudantes e a participação do movimento feminista e suas diferentes expressões.
Não podemos esquecer que qualquer avaliação sobre os caminhos e descaminhos dos Organismos de Políticas para as Mulheres e dos Conselhos devemos levar em conta a conjuntura política e o governo do qual eles fazem parte. Se por um lado, a criação dos Organismos e Conselhos, trouxe e traz para o cenário nacional, o debate público sobre os direitos das mulheres e a questão da igualdade, por outro, seu poder de intervenção efetiva mostrou não dar conta de permear de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas mais permanentes.
Vivemos na pele essa realidade com o impecheament que depôs a Presidenta Dilma, em meio a vários ataques misóginos, na mídia, nas redes sociais e no Congresso Nacional, que através de uma coalizão de forças políticas antagônicas, promoveram, o que tem sido chamado por juristas, lideranças dos movimentos sociais e representantes dos partidos de esquerda “um golpe parlamentar-jurídico-midiático, um ataque à institucionalidade democrática”. Desde que assumiu o poder, o governo interino vem cumprindo um programa ultraliberal, que requenta boa parte do programa eleitoral da coalizão derrotada nas últimas eleições presidenciais, e promove, de maneira ilegítima, mudanças ministeriais que representam uma brutal desestruturação de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos, sinalizando o aprofundamento de retrocessos nas políticas de educação, seguridade social, de promoção da igualdade racial e nas políticas públicas para as mulheres, começando pelo desmonte da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. E para completar, acabou com o Ministério das Mulheres (e o da Igualdade Racial), transformando-os em Secretarias e nomeando para as pastas pessoas com posturas contrárias, por exemplo, aos direitos sexuais e reprodutivos, agenda historicamente defendida pelas feministas.
Historiadores como Eric Hobsbawn (1995) reconhecem que a revolução cultural promovida pelas mulheres alterou a face do século XX, promovendo mudanças de comportamento, transformando os padrões familiares e abrindo espaço para a liberalização dos costumes, no bojo dos quais vieram outros movimentos reivindicatórios como o de gays e lésbicas. Apesar de todo o preconceito que ainda envolve o feminismo, não há como negar que este foi o movimento mais bem sucedido do século XX. A socióloga Bila Sorj (2015) diz que “está na hora de revermos essa narrativa profundamente inconsistente na qual não gostamos das santas, mas apreciamos o milagre”. Diferentemente dos demais movimentos políticos – como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo –, o feminismo promoveu mudança de comportamentos sem utilizar a força e sem derramar uma gota de sangue.
Que Onda é essa?
Começamos a segunda década do século XXI alarmadas pelas previsões negativas que rondavam o contexto econômico, político e social, provocando frustações e intolerâncias e abrindo caminho para o aumento das violências físicas (feminicídos, extermínio da juventude negra, de indígenas e LGBT) e simbólicas (ameaçam tirar nossos direitos, querem controlar nossos corpos, difamações, etc.).
O avanço das forças conservadoras, alimentadas pelo fundamentalismo religioso, que opera nas casas legislativas, tem apresentado inúmeros projetos de leis que visam limitar o acesso a métodos contraceptivos, transformar o aborto – em qualquer circunstância -, em crime, aumentando a punição àquelas que a ele recorrem, colocando em risco a vida de milhares de mulheres por todo o país. Soma-se a essas ameaças uma perigosa alquimia que menospreza os direitos das mulheres e ações de grupos extremistas que buscam abolir da literatura educacional e das expressões culturais qualquer referência à perspectiva de gênero.
A crise democrática que assola o país, o avanço do conservadorismo nas instituições e na sociedade, o desembarque de uma grande parcela das feministas do Governo, as novas perspectivas teóricas sobre o conceito de gênero, faz com que o feminismo brasileiro viva um intenso momento de transformação. A presença de novas sujeitas e a abertura a uma perspectiva interseccional têm contribuído para ampliar a democracia no interior do movimento, reconhecer a diversidade, o multiculturalismo e a defesa dos diferentes protagonismos, da autonomia, da defesa do corpo enquanto território e da necessidade da redistribuição do poder e dos recursos para enfrentar as desigualdades de classe, raciais, étnicas, identitárias, de orientação sexual, geracionais e de cosmovisão.
Indignadas com a tragédia da violência de gênero que os fatos apresentavam, a culpabilização das mulheres pela violência sexual e estimuladas pelas mobilizações em outros países, em 2011, teve início no Brasil a Marcha das Vadias. Os protestos fazem parte de um movimento internacional nascido no Canadá, quando um oficial de segurança, ao proferir palestra na Universidade de Toronto, sugeriu que as mulheres “não se vestissem como vadias” como medida de segurança para evitar o estupro. A declaração causou revolta, pois mais uma vez o pensamento sexista transfere a culpa da violência sexual para a vítima, insinuando que, de alguma forma, são as mulheres que provocam o ataque.
Ao longo de 2011 e 2012, diversas cidades brasileiras realizaram suas marchas, convocadas, através das redes sociais, por movimentos autônomos e espontâneos e, em protesto a culpabilização das mulheres pelo estupro, pelo fim da violência doméstica, física, simbólica e sexual, pelo o fim do machismo e pela igualdade de gênero. O termo “vadia”, em geral usado para ofender as mulheres, foi ressignificado e usado para defesa da autonomia e liberdade de ir e vir com e como desejarem. Usando uma nova estética, as feministas, em sua grande maioria jovens, ocuparam as ruas, com as caras pintadas, roupas consideradas provocantes, corpos despidos e portando cartazes que diziam: “Se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”. Podemos dizer que o jeito irreverente de fazer política e de enfrentar o patriarcado estava de volta.
Dali em diante, as manifestações se espalharam como um rastro de pólvora, e por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas ruas, recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e retomando palavras de ordem como “nosso corpo nos pertence” ou “meu corpo, minhas regras” fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970. (Carla Rodrigues – A quarta onda do feminismo – artigo Revista Cult). As resistências através das ocupações, das ruas e da internet conjugam o feminismo dessa década. No ano de 2015, duas grandes marchas invadiram Brasília, além de dezenas de manifestações pelo Brasil afora. Em agosto, mais de 100 mil mulheres de todo o país ocuparam Brasília na 5ª Marcha das Margaridas, que teve como tema “Desenvolvimento Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia, Igualdade e Liberdade” – eram as trabalhadoras com seus chapéus característicos, suas palavras de desordem e cartazes que expressavam suas lutas. Percorreram a Explanada dos Ministérios e o Palácio da Alvorada levando a pauta de reivindicações, que entre muitas questões, propõe um desenvolvimento centrado na sustentabilidade da vida humana, na defesa da terra e da água como bens comuns, pela realização da reforma agrária, por soberania alimentar e produção agroecológica e pelo fim da violência contra as mulheres.
Sai inverno, entra primavera e as feministas não deixam nem as redes sociais, nem as ruas. Reagindo à onda neoliberal misógina, elas foram as primeiras a ocuparem as praças, contra o PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, em tramitação no Congresso Nacional, que altera os procedimentos de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. A Primavera das Mulheres, como ficou conhecida a série de manifestações online e o off-line, em 2015 “foi a reação do movimento feminista ao delicado momento político e à dinâmica de uso da internet como potencial instrumento de mobilização dos movimentos sociais”, destaca a socióloga Priscilla Brito (2017).
Um “mar lilás” tomou inicialmente as ruas do Rio de Janeiro para, na sequência, ganhar o país inteiro nos protestos contra as ameaças de retrocesso, contra os fundamentalismos e conservadorismos e fora tudo o que ainda oprime as mulheres. Como diz Priscilla Britto: “o sucesso da campanha “Fora Cunha” não se deve exclusivamente à sua ação como “inimigo das mulheres” para frear o atendimento às reinvindicações do movimento feminista no tema do aborto. Em 2015 o deputado se tornou peça-chave do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), assim como alvo de denúncias de corrupção na operação Lava-Jato, da Polícia Federal”.
A adesão e repercussão que as campanhas virtuais tiveram, mostrou ao feminismo que a internet pode ser um terreno fértil para amplificar suas vozes e suas demandas e construir espaços de reflexão e debates. A Primavera das Mulheres floresceu e tem rendido frutos até hoje. Haja vista as dezenas de blogs feministas, hashtgs, a mobilização para o último 08 de Março, quando o feminismo brasileiro e latino americano gritou “Nem uma a Menos. Vivas nos queremos !”. O 8M, como foi chamado o evento, pretendeu dar um recado articulado, demonstrando a força e o potencial de luta do movimento feminista, nestes tempos de resistência.
Em novembro, foi a vez das mulheres negras colorir o cerrado. Depois de 03 anos de construção e articulação nos estados e municípios, se juntaram em Brasília, na Marcha das Mulheres Negras, na mais potente demonstração de força política, para “denunciar a ação sistemática do racismo e do sexismo com que somos atingidas diariamente mediante a conivência do poder público e da sociedade, com a manutenção de uma rede de privilégios e de vantagens que nos expropriam oportunidades de condição e plena participação da vida social” (Dossiê sobre a Marcha das Mulheres Negras).
Mais de 50 mil mulheres negras, vindas dos quilombos, do campo e da cidade, dos terreiros, das universidades, das periferias ocuparam as ruas de Brasília para expressar coletivamente suas denúncias contra o racismo, o genocídio da população negra, romper com os estereótipos do padrão de beleza ideal, denunciar a exclusão, a pobreza, o feminicídio, a violência e propor um novo modelo civilizatório para o País, centrado no bem viver e no rompimento com a violência racial que excluem e matam homens e mulheres negras, dizia o Manifesto.
Devido a essa diversidade de mulheres, especificidades e demandas que a pesquisadora Magda Guadalupe dos Santos (2017), em recente artigo publicado, apontou que o termo “feminismo, atualmente, deve ser utilizado no plural, tendo em vista a desconstrução dos papéis sociais e binários entre sexos e gêneros que alimentam o patriarcado”. Magda Santos provoca uma reflexão ao citar a autora Sally Scholz, que afirma que “feminismo é um projeto crítico”.
Sabemos que o caminho é árduo, hostil e escabroso, sobretudo neste momento da história, que questiona o governo ilegítimo e uma conjuntura complexa que demanda mudanças profundas. No entanto, o/s feminismo/s continuam desafiando o sistema capitalista, racista, machista, cis e heteronormativo, apostando num compromisso ético e ação política que melhore a vida das mulheres.
Em sua análise sobre “A institucionalização do feminismo”, a autora Nádia Cantanhede (2012, s.p.) enfatiza que:
“A intensificação das políticas neoliberais são um desafio e uma hostilidade para o feminismo, pois o neoliberalismo leva inevitavelmente a um aumento da desigualdade e des- democratização. Talvez estejamos a assistir a uma crise da institucionalização do feminismo para a qual ainda não temos respostas. Talvez o feminismo acabe por voltar exclusivamente à sua intervenção nas ruas de forma mais espontânea e menos organizada. Talvez vá aí beber a sua força, aos movimentos sociais, dos quais ainda faz parte, mas não em exclusividade ou talvez padeça do governo e encontre uma nova solução para continuar com o seu trabalho tão necessário aos direitos humanos”.
Para finalizar, nunca é demais lembrar que, se hoje é considerado natural que as mulheres estudem, trabalhem, deliberem sobre seus destinos, sobre o exercício da sua sexualidade, e, afinal, sejam donas das suas próprias vidas, é porque o feminismo produziu uma revolução silenciosa e pacífica, capaz de mudar o padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais. As propostas de Betty Friedan nos anos 1960 – de que as mulheres poderiam compatibilizar a vida familiar com uma atividade no mundo do trabalho assalariado, com a cultura e com a política – hoje são tidas como normais até nas famílias mais conservadoras. O que já foi escandaloso, proibido, atualmente é desejável e absolutamente comum.
Plural, sem dono, nem estruturas de controle centralizadas e sem aspiração de tomada do poder, o feminismo segue revigorado, defendendo a democracia radical, erguendo suas bandeiras de liberdade e igualdade, acatando novos desafios e espalhando transformações por onde quer que passe.
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