Claudia Miranda
Aline Cristina Oliveira do Carmo
Mille Caroline Rodrigues Fernandes
Racismo é crime, ninguém nasce racista, se aprende a ser racista, o mal tem que ser cortado pela raiz. Basta de Racismo!
Ao abrirmos um portal de notícias1, na última semana de maio (2020), chamou nossa atenção a seguinte manchete: “Negros sem escolaridade têm 4 vezes mais chances de morrer por Covid-19 no Brasil” e, a matéria apresenta resultados da pesquisa desenvolvida pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O estudo incluiu a análise de quase 30 mil internações pela doença: Quanto maior o nível de escolaridade, menor a letalidade. Este efeito pode ser resultado de diferenças de renda, que geram disparidades no acesso aos serviços básicos sanitários e de saúde. Apresenta dados alarmantes que revelam o risco a ser enfrentado: […] pretos e pardos sem escolaridade mostraram uma proporção 4 vezes maior de morte do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%)”, mostra a análise do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois).
A campanha Racismo é crime2 (lançada em 26 de maio, de 2020) veio junto com outras manifestações motivadas por sucessivas agressões físicas e simbólicas. Em inúmeros casos, são naturalizadas e entendidas como “acidentes” – por parte de quem comete tais delitos. A epígrafe inserida acima, faz parte da dinâmica que contou com a participação de diferentes artistas negras (os). As reportagens sobre assassinatos, segregação racial e injustiças sociais, movimentaram o mundo em um período marcado por uma tragédia que mobilizou os continentes: chega, pelos meios hegemônicos – e alternativos –, de comunicação, a notícia do assassinato de George Floyd3 (USA), no ato de sua prisão. Uma onda de indignação fez emergir protestos antirracistas reunindo milhares de pessoas. Ao acompanharmos esses eventos, chamou atenção, nos cartazes das (os) manifestantes, a frase Black lives matter. Observamos, nas inúmeras mensagens, a importante tarefa de responder com insurgência coletiva, o que reflete a densidade do problema. Nos diferentes informes que tivemos acesso, evidenciou-se que, revoltas dessa monta, não eram vistas desde a morte de Martin Luther King Jr (1929-1968). A frase I can’t breather passou a ser convocatória, tendo cruzado oceanos e potencializado uma série de novos deslocamentos que, a nosso ver, são político-epistemológicos.
Para o campo da Medicina, deslocamento é o mesmo que um ato ou efeito de deslocar da posição normal (qualquer parte do corpo) e, para o antirracismo, trata-se de uma alternativa insurgente envolvendo setores diversos, partícipes de um tipo de renascença afrodescendente. O uso de imagens de símbolos de resistência (os punhos fechados), a menção às lideranças históricas e, a adoção de materiais como documentários e filmes, sobre racismo e antirracismo, são alguns importantes dispositivos dessa insurgência que sugere um continuum. O que se vê é um processo constituído como legado da Négritude4, sendo esse um locus existencial reconectado, diretamente, com filosofias produzidas em movimento, no percurso “África-diáspora”. Consequentemente, os deslocamentos que inauguraram nossa experiência, como diáspora, facilitaram a composição de gramáticas específicas.
Definido como um gigante multicultural, o Brasil é formado por um número expressivo de nações. Seu vínculo com o continente africano, está explicitado na população preta e parda (negra), que soma mais de 54% do total de 210 milhões de pessoas (IBGE, 2010). Essa maioria tem experimentado todo tipo de desvantagem e, a exclusão e empobrecimento, definem a fixação na subalternidade. As favelas e morros nasceram como “bairros africanos” e até o ano de 2010, cerca de 11,4 milhões de pessoas viviam em habitações, também conhecidas como aglomerados subnormais. Hoje, esses territórios já somam mais de 6.329 e se espalharam por todo o país. A desigualdade socioeconômica se acirrou ao longo do século XX e, o século XXI nos desafia com um quadro avassalador, incluindo o genocídio dessa população vulnerabilizada, nas áreas que ocupa. A violência do Estado é um dos mais graves, dentre os temas presentes na pauta dos movimentos sociais. Tem sido analisada com maior preocupação, por conta das sucessivas agressões que caracterizam violação aos direitos humanos, em todo o território.
A “Coalizão Negra por Direitos”, formada por cerca de 117 entidades, atua em âmbitos nacional e internacional, divulgando as inúmeras possibilidades de repactuação social. Como parte de suas ações, impulsiona a divulgação de dados alarmantes, mostrando a situação dos setores mais vulneráveis e incrementa processos que possam garantir maior visibilidade para as demandas por direito à vida e mobilidade socioeducacional. Instituições do Movimento Negro Brasileiro atravessaram todo o século XX, insistindo com uma narrativa descolonizadora e sem perder parâmetros orientadores onde o ideário democrático caminha ao lado do ideário antirracista. Em Racismo e Sexismo na cultura Brasileira, Lélia González (1984, p. 226) problematiza as representações construídas sobre as africanidades: “E se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem”. Em O conceito de quilombo e a resistência cultural negra Maria Beatriz Nascimento (1985) entende o Quilombo como uma instituição africana, como um instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira. A partir de suas críticas, González e Nascimento apontam aspectos que sustentam rotas de insurgência coletiva. Os estudos da pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2017, p. 56-57) apresentam rupturas com os discursos ocidentais sobre o continente africano e suas diferentes formas de entender e se relacionar com o mundo. Consequentemente, abre mão de noções e conceitos reducionistas. Seu quadro teórico incorpora abordagens mais alinhadas com a pluralidade, com sentidos de mundo e isso por entender que, tanto a sociedade Yorubá como outras culturas africanas, privilegiam perspectivas mais porosas e afinadas com uma amplitude de percepções:
Si el cuerpo humano es universal por que parece tener una presencia tan exagerada en Occidente en comparación con el territorio Yorubá? El marco teórico de una investigación comparativa demuestra que una gran diferencia se origina en cuál de los sentidos será privilegiado en el proceso de comprensión de la realidade – la vida en Occidente y una multiplicidad de sentidos anclados en el oído en la tierra Yorubá. La tonalidad del lenguaje Yorubá predispone a una comprensión de la realidad que no puede dejar al margen lo auditivo.
Para a diáspora africana, movimentar-se casa adentro significa, então, recompor a afro-existência superando todos esses obstáculos acima citados pelas intelectuais afro-brasileiras e por grupos do continente africano, com os quais nos conectamos como rede de pesquisa e de ativismo antirracista. Convém ressaltar que, dos 65.602 homicídios cometidos, no Brasil, 49.500 são de negros (as) e a histórica discriminação racial e, o racismo sistêmico, ganham novos contornos, com as crises sanitária e política. No dia 14 de julho (2020) o Portal Geledés5 anunciou: Aumento de mortes por causas naturais é três vezes maior entre pretos e pardos do que entre brancos: desigualdade foi agravada durante pandemia do novo coronavírus. Estabelecer comparações passa a ser uma exigência, na construção de contra narrativas sobre as condições de acesso a bens materiais, mobilidade socioeducativa e garantia de direitos básicos. No âmbito da América Latina e Caribe são escassos os dados acerca das perdas de vidas negras.
A formulação de contra narrativas é feita por redes de ativistas e de intelectuais que desenvolvem propostas interinstitucionais, e contemplam também países africanos. Nesse formato de cooperação, tem sido possível enfraquecer o ideário da democracia racial que, mesmo com alguma capilaridade, já não pode ser defendido. Perde força, a cada nova etapa da atuação do Movimento Negro (MN) e do Movimento de Mulheres Negras6. O ideário da democracia racial, entendido como instrumento de dominação simbólica, dificultou a compreensão do ordenamento social hierárquico e excludente e vimos, como um dos aspectos da problemática do racismo sistêmico, os efeitos das crises geradas pela perpetuação desse quadro. Órgãos internacionais alertam para o perigo emergente dos efeitos insuperáveis da violência do racismo. Nesse caso, trata-se do descaso com os setores mais afetados pela distribuição desigual de riqueza e desequilíbrio nas formas de acesso aos serviços de saúde. Podemos afirmar que, as alternativas, para o enfrentamento dessas demandas, são sugeridas por lideranças constituídas nas periferias, favelas e morros, que atuam em espaços precarizados, como as moradias provisórias que emergiram das urgências dos africanos e africanas, sobreviventes da vida nas senzalas.
As iniciativas de moradoras (es) da favela de Paraisópolis (São Paulo) ocuparam as principais notícias, sobre reação ao Covid-19, nas áreas de maior vulnerabilidade. Segunda maior do estado, com cerca de 100 mil habitantes, Paraisópolis ganhou as páginas dos jornais pela sua organização comunitária, que inclui o Comitê de Bairro, formado por cerca de 420 moradores identificados como Presidentes de Rua. Esses são responsáveis por monitorar um total de 50 famílias, cada um. A Associação de Moradores contratou ambulâncias compostas por médicos e agentes de saúde, e dentre os serviços oferecidos, incluindo um plantão, para atender as demandas de emergência. Pelo exposto, são engendradas vias de oxigenação para se garantir maiores experiências de participação social, em zonas transformadas em espaços criminalizados, conforme o entendimento de Andrelino Campos (2010). Destaca-se o empenho para a formação de agentes que possam trabalhar apoiando a dinâmica local com propostas criativas, visando a elaboração/ execução de propostas, que amenizem as ameaças em grande escala, como ocorre com a pandemia de Covid-19.
As motivações para pensar em movimento, incluindo cosmopercepções, no sentido dado por Oyěwùmí (2017) saem, justamente, de nossas suficiências. A afro-existência demanda, portanto, diversas linguagens estético-políticas. Em deslocamento permanente, atua-se sem intervalações, vive-se em constante transmutação, como nos ensina a Filosofia Bantu e, com a cooperação África-diáspora (na América Latina e Caribe), novas rotas são ensaiadas. Essa retomada de sentidos comuns, se caracteriza por uma ancoragem ancestral. A releitura da problemática das desigualdades raciais, que fazemos, inclui reconhecermos e valorizarmos o legado africano e suas cosmopercepções. Exige que compreendamos como a dominação colonial se consolida apoiada em dispositivos, promotores de alienação em grande escala. Tais diagnósticos podem reorientar análises críticas sobre ideários que insistem em negar epistemologias africanas e afrodescendentes. Sob tal perspectiva, a história da diáspora, pode ser um dos pontos altos para a conformação de temários antirracistas, conforme indica a Lei nº 10.639 (2003).
Decerto, as crises profundas que ameaçam a vida negra e a manutenção dos direitos já alcançados, serão, novamente, enfrentadas com percursos coletivos de embate e, a ancoragem que nos sustenta, nessa travessia quilombola, não pode ser fora de nossas referências de pertencimento. Assim como Catherine Walsh (2017, p. 95), valorizamos “las apuestas praxísticas-políticas y los procesos […] organizativos que empleamos e inventamos tanto para luchar en contra del proyecto guerra-muerte como para crear […] y afirmar la vida fuera de la lógica-estructura capitalista-patriarcal-moderno/ colonial imperante”. Os segmentos afetados pela perspectiva colonizadora são, estrategicamente, racializados, são os que figuraram (e figuram), nas narrativas coloniais7, como diferentes e, logo em seguida, como inferiores. Ser não branco é ser racializado tendo em vista que, a normalidade, é parecer-se com o colonizador europeu. Para o enfrentamento do problema racial é indispensável considerarmos o papel do inconsciente, nas práticas sociais e, do mesmo modo, considerar a existência de mecanismos que contribuem para a exclusão, provando que as instituições ratificam o ordenamento hierarquizado. Justamente por isso, a retomada de processos iniciados, antes mesmo da emergência das instituições do MN e das organizações do Movimento de Mulheres Negras, do Brasil, é outra vez, o ponto de partida.
Négritude e pan-africanismo
O contexto era a França dos anos de 1930 e, o protagonismo, de escritores, estudantes universitários e intelectuais pertencentes a diferentes lugares da África, Américas e Caribe.
O desafio: viver nas fronteiras simbólicas, em um mundo organizado pelas hierarquias raciais. Essa presença outra, em um país da Europa, indica quão exitosa foi a aventura colonial. Não obstante, pode-se entender que as fissuras são parte da estrutura desigual e foram localizadas por segmentos que migraram, em busca de outras percepções de si e de mundo. As manifestações são, portanto, fruto dessa junção que fomenta debates sobre modos de insurgir. Sobre a Négritude, Waldir Freitas Oliveira (2002, p. 409) discorre:
A negritude, considerada em sua essência, não nasceu, contudo, na Europa, mas em terras da América, talvez sob a inspiração do movimento New Negro, surgido dos Estados Unidos em começos deste século, do qual participaram grandes poetas negros norte-americanos como Langston Hughes, Countee Lee, Jean Toomer e Claude McKay, todos com grande influência sobre a obra dos poetas francófonos da região das Antilhas e do Caribe, em especial sobre a de Aimé Césaire, da Martinica, e a de Léon- Gontran Damas, da Guiana.
Oliveira atribuiu a Etienne Lero, Jules Monerot e René Ménil , o papel de promotores de um arcabouço filosófico e cultural, com os escritos veiculados nos anos de 1930, valorizando o manifesto Légitime Defense. Entre 1934 e 1935, Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, dirigiram o jornal L’étudiant noir. Foi no final dos anos de 1940, que “a palavra negritude veio a ganhar destaque no seio das comunidades intelectuais da Europa. Talvez em consequência da publicação, em l948, em Paris, organizada por Léopold Sédar Senghor, de L’Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgaxe” (OLIVEIRA, p. 215). Sobre esses desdobramentos, avalia que foi “um movimento capaz de posicionar-se, de modo decisivo, na história das literaturas em língua francesa”.
Algumas lições sobre a condição de existência das populações, que resistem ainda que em condições adversas, já foram absorvidas. Nas suas histórias, inúmeras trajetórias foram/são interrompidas por processos desumanizadores, com efeitos irreparáveis. Consequentemente, tal fato nos convoca a realizar incursões que nos alinham com um conjunto mais amplo de conhecimentos. Pensar em movimento é, portanto, deslocar-se com epistemologias subterrâneas, com um modo outro de ensaiar a vida levando em conta as brechas que, a olho nu, não são facilmente perceptíveis. Inclui garantirmos outro status para os percursos de resistência – como é caso da Négritude. Reconhecer-se a partir das vinculações com as cosmopercepções africanas, depende de uma experiência com referenciais positivos de pertencimento. Descolonizar, então, é um compromisso que demanda a rejeição de perspectivas superficiais de pluralidade e diversidade. Assim, vinculamos a categoria “negros”, primeiramente, ao movimento da Négritude, um tipo de deslocamento, uma movimentação que concebeu o mundo na perspectiva do outro inventado na colonização.
A Négritude é definida como uma ideologia fruto dos efeitos da estigmatização sofrida, nos países do primeiro mundo e, quando pensamos com Edward Said sobre a experiência de ser o outro colonial, concordamos que “se os negros foram outrora estigmatizados e ganharam um status inferior ao dos brancos, então torna-se necessário não negar a negritude e não aspirar a ser branco, mas aceitar e celebrar” (SAID, 2003, p.181). Said definiu, como inevitável, manifestos pelo fortalecimento da identidade de grupo, sendo esse o caso de sujeitos submetidos aos desmandos de processos devastadores. Isso mostra, ao mesmo tempo, que o racismo produz um antirracismo bem como outros modos de pertencimento e possibilidades de reagrupamento.
As pesquisas de Sheila S. Walker se desdobram, na coletânea “Conocimiento desde Adentro – los afrosudamericanos hablan de sus pueblos y sus historias” (2010) e, no documentário “Rostos familiares, lugares inesperados: uma diáspora africana global”8 (2018). Vimos como um exemplo de ações, que se voltam para a retomada de um exercício de reescrita da memória da diáspora africana. Não podemos desconsiderar os estudos que indagam a historiografia vigente e, a nossa preocupação, inclui revermos as narrativas cristalizadas como únicas. Dos seus achados, interessa observar a seguinte ênfase:
A palavra diáspora, que quer dizer ‘semear através’, faz alusão ao processo pelo qual estes africanos, brutalmente desenraizados de tudo que conheciam, fincaram novas raízes, produzindo novos frutos nas terras onde se encontravam. Em todas as américas, esses sobreviventes migrantes involuntários, depois de um trauma tão enorme, tiveram que começar imediatamente, em uma situação de opressão inimaginável, a inventar novas identidades e ciar novas culturas. Fundamentaram-nas nos saberes que trouxeram da África em sinergia com o que encontravam em sua nova terra, criações que marcaram com sua originalidade as sociedades de todos as américas (WALKER, 2010, p.15).
O quebra-cabeça a ser remontado, a partir da sugestão da autora, exige deslocamento epistemológico que, a nosso ver, faz parte das estratégias de mudança de status para os conhecimentos e saberes africanos e afrodescendentes. Walker insistiu com o mapeamento da África nas Américas e seu argumento é para produzirmos conhecimento desde dentro.
O trabalho de Lucia Helena Oliveira Silva e Regina Célia Lima Xavier (2018, p.8) apresenta alguns outros pontos cruciais para essa tarefa:
O debate aponta para a necessidade e a riqueza de se pensar, por exemplo, de forma aprofundada o processo de escravização considerando, no tempo, como diferentes povos ou etnias foram comercializados, as diferentes rotas, a diversidade das experiências em locais variados no atlântico, recuperando a dinâmica deste processo. Sem dúvida esta não é uma tarefa fácil. Requer um trabalho de arquivo ampliado considerando múltiplos espaços geográficos e políticos, o que em alguns casos pode demandar do pesquisador o domínio de diferentes línguas e a estadia em diferentes regiões ou países. Uma história diaspórica, entrelaçada, pode implicar também o domínio de diferentes historiografias, tal como aquelas referentes tanto a história africana como americana ou caribenha.
As autoras assumem “a complexidade da abordagem dos estudos da diáspora” e reconhecem “sua contribuição ao nos propor novas interrogações sobre os enquadramentos das histórias coloniais, sobre os recortes nacionais, sobre os processos identitários, sobre os arranjos sociais e culturais construídos pelos sujeitos” (SILVIA e XAVIER, 2018, p. 8).
Notadamente, as questões orientadoras, nos projetos que se ocupam de fomentar as redes de intercâmbio e de cooperação entre África e sua diáspora, devem considerar o volume de proposições já existente. E se assim pudermos entender, pensar em movimento é possível quando a memória coletiva é concebida como o portal de referências de Négritude. Significa assumir um compromisso com memórias coletivas, com a história de insurgência e, ao mesmo tempo, significa conectar-nos com epistemologias “desde dentro’, conforme a defesa de Walker (2010).
Faria diferença, para as urgências do tempo presente, incorporarmos o alerta feito por Sueli Carneiro (2019, p.45), e esse consiste em um maior cuidado para o exame das estratégias de manutenção de hierarquias que garantem múltiplas formas de fragilização da população negra:
[ …] o que se coloca aqui é a necessidade de destacar os efeitos perversos que a ideologia machista tem para a luta empreendida pelo grupo negro em geral, na medida em que, objetivamente, tanto quanto o racismo, o sexismo atua como componente intrínseco da subalternidade de expressivo contingente da população negra, as mulheres negras. Decorrem daí, as desigualdades existentes entre homens e mulheres negras, gerando entre outras condições, a fragmentação da identidade racial.
No argumento da autora falar de mulheres negras e de discriminação racial não é falar de minoria porque falamos de quase 50% da população feminina nacional. São as mulheres negras as que tomam a direção e insistem com suas famílias – que na sua maioria, habitam as periferias desassistidas – para as aventuras insurgentes. Em muitas delas, sacrifícios foram (e são) feitos para a manutenção das condições minimamente favoráveis para a subsistência.
A rebeldia impulsionada no Haiti, ainda é uma importante referência de descolonização. Essa transgressão é “sentirpensante” e envolve, a nosso ver, cosmopercepções de segmentos que elaboraram teorias e as traduziram em práticas anticoloniais. Desse modo, vimos como essa condição explicitada na Revolta de Saint-Domingue (1791-1804), é consequência daquilo que Aníbal Quijano9, definiu como o mais proeminente exemplo de descolonização. Em seus termos, foi a primeira revolução global descolonial de todo o mundo contemporâneo. “Colonialidade do poder” e “descolonialidade do poder”, para o autor, estão imbricadas no processo vivenciado na primeira revolução global descolonial de todo o mundo histórico contemporâneo. Negros contra brancos rebelados proclamam, em sua constituição, que todas os povos do mundo, são iguais. O autor considera esse feito como sendo parte de um legado, um paradigma de resistência temido, em grande parte do mundo.
A desacomodação da ordem vigente, é um traço dos ruídos produzidos por grupos que insistem em retomar a sua humanidade. No Brasil, mesmo em estruturas precárias, o que podemos observar, na segunda década do século XXI, são os efeitos da entrada de um número maior de jovens negras (os), nos bancos universitários, rompendo, mesmo que com obstáculos diversos, as amarras do racismo sistêmico.
Com larga experiência de desacomodação social, as instituições do MN brasileiro promovem, hoje, importantes agendas (nacional e internacional), e se multiplicam como agentes coletivos sem intervalos ou pausas para descansar. Ao mesmo tempo, observa-se mutações nessa luta não apenas retórica, mas efetiva, conforme se vê, no cotidiano de estratos fixados à margem. Por tudo isso, exige-se outras ambiências formativas que podem contemplar novos quadros para o trabalho de desalienação. Isso porque a auto referência é um ponto chave nos processos emancipatórios que geram convivência intercultural em contextos multirraciais afetados por ataques e boicotes sucessivos contra populações racializadas.
Pensar em movimento com nossas ancestralidades, nos leva a reconectar-nos com os diferentes percursos na diáspora africana; é reconhecer o esforço de lideranças inventivas, comunidades que, sem recursos, engendraram um mosaico estratégico, com vistas a promover espaços de fortalecimento comunitário. A produção trans mídia de intelectuais negros (as), o trabalho do Acervo Digital de Cultura Negra – CULTNE, as diferentes vias de comunicação, advindas das bases sociais e uma gama de iniciativas de colaboração com mídias digitais já consolidadas, são entendidos como dispositivos extremamente necessários. Facilitam a interconexão com uma África invisibilizada, nos redirecionam filosoficamente por meio de bens culturais, nos alimentam com outras possibilidades de percepção de mundo. Isso porque a autoimagem positiva faz parte dos objetivos a serem alcançados nas inúmeras teses sobre pertencimento na diáspora.
Para analisarmos as vias de desalienação, é imprescindível criticar a gramática conservadora, de hierarquias que se reinventam, sofrem mutações, mas que vigoram, em um discurso unívoco de experiência no mundo. O desenvolvimento da historiografia das lutas das instituições do MN é parte das demandas por revisão desses referenciais.
A agenda do Movimento Negro
A Lei nº 7.716/89 – Lei CAÓ – é uma referência de alguns resultados efetivos no combate ao racismo e reflete a organicidade na qual ativistas são formadas (os). Sua história, inclui o empenho de um ativista nascido na Bahia (nordeste do Brasil). Advogado, Carlos Alberto Caó de Oliveira (1941-2018) formou-se também em jornalismo e, no ano de 1982, se elegeu como deputado federal podendo influenciar na política, como constituinte. Com a sua participação, garantimos que o racismo se tornasse crime inafiançável. Ao analisar o importante trabalho do historiador Flávio dos Santos Gomes (UFRJ) João José Reis (1996, p. 198) interpreta o lugar de importância que ocupa o especialista da história da escravidão e reafirma, como temática central, a resistência escrava:
[…] Flávio Gomes se coloca no campo da nova historiografia da escravidão, imaginando os escravos enquanto sujeitos complexos que conceberam sua própria história em diversas direções e agiram com sentidos próprios mas multifacetados, em oposição a uma historiografia que só entende o processo histórico como uma sequência de movimentos estruturais na direção da “superação” do sistema vigente, no caso a escravidão, e tudo que não aponta nessa direção é entendido como “falho”, como insuficiente para contribuir com a dinâmica histórica.
Já em Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, Gomes (1995) considerou a existência de “mundos da escravidão” e por esse itinerário, apreendemos pistas relevantes acerca da fixação efetiva de África e de sua diáspora, nas esferas subterrâneas, em todo o globo.
Assim como na Historiografia, também no âmbito das Ciências Sociais, da Educação e em outras áreas, pouco se considerou as interconexões realizadas na contramão do racismo sistêmico. Falta, portanto, ampla avaliação do peso da agência coletiva negra tendo em vista os esforços engendrados nas fissuras localizadas como faz Flávio Gomes. As outras aprendizagens possíveis acerca da “afro-existência” podem ser alcançadas em movimentos contínuos e em redes colaborativas que privilegiam o conhecimento desde dentro, que reconhecem as cosmopercepções africanas e afrodescendentes.
No argumento de Azoilda Loretto da Trindade (2013, p.21),
Assim como podemos falar de uma diáspora africana como sendo a presença africana no mundo material e imaterial, medida pelos seus descendentes, na sua diversidade, podemos dizer que esta diversidade também se faz presente no pensamento pedagógico relacionado à aplicação da Lei 10639/2003. É diaspórica, diversa, plural, ampla como é a presença negra, afrodescendente nesse país e como anuncia a própria lei que altera a nossa lei maior da educação.
A análise acima recuperada, é suficiente para evidenciarmos argumentos sobre outros constructos epistemológicos e sobre como as instituições do MN e de Mulheres Negras, vêm negociando espaços curriculares para a dinamização de perspectivas educacionais mais justas para as populações negras e não negras, do Brasil.
Em “Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje?” Kabengele Munanga (2015, p. 21) acrescenta:
Tanto as antigas migrações combinadas com o tráfico negreiro e a colonização dos territórios invadidos, quanto as novas migrações pós-coloniais combinadas com os efeitos perversos da globalização econômica, criam problemas na convivência pacífica entre os diversos e os diferentes. Entre esses problemas têm-se as práticas racistas, a xenofobia e todos os tipos de intolerâncias, notadamente religiosas. As consequências de tudo isso engendram as desigualdades e se caracterizam como violação dos direitos humanos, principalmente o direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente.
A Educação da população negra é um dos mais importantes pontos da agenda antirracista e as lentes de Munanga impulsionam nossa crítica, sendo ele um dos nomes de destaque maior importância no histórico de formação da intelectualidade afro-brasileira. Como africano residente no Brasil, desenvolveu estudos inéditos inserindo diferentes gerações de estudantes negras (os) no mundo acadêmico. Para um país continental, desigual e, racializado como é o nosso, esses são dados que ajudam a entender a insurgência de novas (os) intelectuais negras (os).
Não é possível negar o impacto da discrepância na desigualdade socio-racial em contextos nos quais a aventura colonial europeia foi devastadora. São esses alguns importantes rastros que nos mobilizam a reavaliar o status das outras formas de pensar e, para tanto, importa localizarmos a capilaridade dos conhecimentos experienciados coletivamente e em dinâmicas comunitárias no continente africano e na sua diáspora. A diversidade linguística e o domínio de um conjunto de idiomas por parte daqueles/as nascidos/as na África, as tradições do Candomblé – religião afro-brasileira derivada dos cultos tradicionais africanos –, são elementos relevantes para essa perspectiva.
No século XXI, as armas que matam crianças, adolescentes, jovens e adultos, em situação de lazer ou descanso, são as ameaças mais explícitas, no cotidiano das grandes metrópoles. Por outra parte, a negação dessa humanidade, tem garantido o desenvolvimento de enfermidades profundas, problemas psicossociais e de perda de referências bem como de perspectivas de ruptura, com esse estado de coisas. Em processos paralelos, muito se pode observar das reações alcançadas, coletivamente.
Associações e núcleos formados em espaços plurais como as zonas periféricas, as favelas e morros, universidades, associações de bairro, instituições religiosas, entre outros, têm discutido as suas urgências, incluindo nessa pauta, a elaboração de um plano efetivo, priorizando o direito à vida. Articulações intersetorial, interinstitucional e intergovernamental, fazem parte dessas iniciativas. Com os processos de organização interna, se conectam para elaborar suas estratégias de luta social visando incidir na proposição de políticas públicas.
Chama atenção, na história recente, o desafio assumido por inúmeras organizações e núcleos antirracistas que, juntos, reinventaram os movimentos de base. Busca-se a interatividade e a promoção de uma cultura de formação na luta e para tanto, exige-se pensar em movimento. As heranças africanas estão no centro das preocupações dos grupos interessados em fomentar processos insurgentes e quilombolas. Passa a ser anticolonial a revisão da historiografia legitimada socialmente como narrativa oficial.
Como afirma Petrônio Domingues (2007, p.105) a imprensa negra incluía jornais publicados por negras (os) e elaborados para tratar de suas questões, uma via alternativa, que partiu de demandas próprias:
Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema do racismo na sociedade brasileira. Além disso, as páginas desses periódicos constituíram veículos de denúncia do regime de “segregação racial” que incidia em várias cidades do país, impedindo o negro de ingressar ou frequentar determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos comerciais e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas.
Ao mesmo tempo, foram adotadas diferentes formas de negociação com as instâncias públicas e o trabalho contínuo de sensibilização de órgãos da administração pública, no final dos anos de 1980, favoreceu uma nova conformação para a luta antirracista, a nível nacional.
O exemplo da Fundação Cultural Palmares
Para as inúmeras instituições do Movimento Negro e, do Movimento de Mulheres, garantir o direito à memória coletiva é parte dos objetivos de sua agência política. Nesse processo de negociação com o poder público, muito se caminhou, sobretudo, a partir da abertura política, dos anos de 1980. Queremos ressaltar a longa atuação de uma das suas mais importantes instâncias e que reflete parte das vitórias obtidas com a insistência e as tecnologias de negociação. Com a missão de combater o racismo, promover a igualdade racial, preservar a cultura negra e valorizar as manifestações, nas diversas áreas das Artes, a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi criada no âmbito do Ministério da Cultura, no dia 22 de agosto de 1988. Seu papel foi de aglutinar e isso está bem apresentado por Fabiana Guimarães Xavier (2018, p.86):
Analisando todos os relatórios de gestão e outros documentos oficiais da Fundação Cultural Palmares fica claro a evolução do órgão no estabelecimento de relações de cooperação internacionais e ainda como […] conseguiu dialogar com o Ministério da Cultura e barganhar apoio institucional e político, por exemplo com as suplementações em seu orçamento. Outro ponto que deve ser reafirmado é a ampliação da presença do governo brasileiro, por meio da Palmares, no continente africano. Política deliberada e encampada pelo governo Lula e seu Ministério das Relações Exteriores. Para tanto algumas ações foram executadas como: o I Fórum Internacional sobre Economia da Cultura, realizado pelo Ministério da Cultura de Cabo Verde, sob a coordenação da FCP; a I Exposição Cultural do Timor-Leste, em coordenação junto ao departamento cultural do Ministério das Relações Exteriores; a semana cultural do Benin, em Salvador; o processo de revisão da III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, junto a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o II Encontro Ibero-americano de Ministros da Cultura para a Agenda Afrodescendente das Américas, em Salvador. Esse último com o foco de elaborar uma agenda afrodescendente para as américas.
O Brasil, na análise da autora, desempenhou papel indispensável, além de avançar com a sua política de cooperação com o continente africano e com os países vizinhos. Tudo isso, com o esforço da FCP, com suas equipes gestoras. Internamente, instituiu representações em sete estados e isso revela pistas do êxito e de embate realizado na contracorrente.
Alcançou lançar-se pela orientação de lideranças reconhecidas nacionalmente, sendo esse um dado central na nossa forma de situar as condições de preservação, promoção e difusão das manifestações culturais. As etapas de atuação que localizamos como sendo as mais decisivas, foram vividas com dificuldades diversas como, por exemplo, a dificuldade de financiamento. Entre os anos de 2007 e 2010 vimos sair do papel, o “Projeto de Cooperação com os países da América Latina – processo de mapeamento das dimensões da cultura”. A fundação conseguiu imprimir um formato onde o olhar para as questões da diáspora afro-latina, passou a ganhar força, saindo das margens e se deslocando para o centro.
Para entender os contornos dessa performance institucional, vimos como um dispositivo coerente, a abordagem realizada casa adentro, nos termos adotados por Catherine Walsh e Juan García Salazar (2005, p.82). Alinhamo-nos com sua visão pelo “uso estratégico hoy de la memoria colectiva –entendida como la filosofía y enseñanza de los y las mayores– como práctica decolonial para recuperar, fortalecer, reposicionar y reconstruir la existencia como derecho ancestral”. Podemos considerar a travessia da FCP como uma experiência quilombola, insurgente e portanto, carregada de reaprendizagens sobre diáspora e África. A exemplaridade pode então, figurar como parte dos resultados de uma vertente multidimensional, por nos redirecionar nas análises sobre como se incide nas políticas culturais do país.
Podemos afirmar que sua história – de êxito e de legitimação –, vai do ano de 1988 até 2017. Observamos que as dificuldades foram aumentando, sobretudo, com o término do governo do Partido dos Trabalhadores. Não se pode falar dessa insurgência institucional sem valorizarmos as estratégias de coexistência. Em outros termos, quando a FCP é analisada no conjunto das instituições públicas, o que a diferencia pela adoção de atalhos para manter-se como tal. O mérito de seu modo de resistir, voltada para as demandas do MN é, sobretudo, das (os) diferentes agentes que, com o apoio da comunidade negra nacional, a defenderam de ataques e ameaças. Importa ressaltar que a instituição nasce de uma estratégia contínua, de uma tecnologia dialógica própria e, casa adentro. Uma tecnologia que se configurou a partir dos diagnósticos produzidos pelas (os) intelectuais das instituições. Ao mesmo tempo, é necessário admitirmos que pensamos tudo isso, em movimento, (des) aprendemos em movimento e (re) aprendemos nessa rítmica. As vias de negociação encontradas são também intragrupos, já que somos continentais e diversos em todo o país. A nosso ver, os (as) diferentes gestores (as) que atuaram no período citado, trabalharam conclamando a comunidade e negociando novas agendas para redirecionar as demandas mapeadas em diferentes partes do país.
O cantor e compositor Gilberto Gil, foi Ministro da Cultura entre os anos de 2003 e 2008 e seu substituto foi Juca Ferreira. Nota-se, no percurso da instituição, mudanças pertinentes onde se manteve o compromisso com as pautas elaboradas conjuntamente. Com essa forma de encaminhar seu funcionamento, priorizou a consolidação, impulsionando um perfil colaborativo e ratificando sua identidade institucional. Entendemos que a importância da FCP, para as políticas culturais, é sobretudo, por ter encaminhado projetos em consonância com as urgências da comunidade de interesse. Em outros termos, pode-se afirmar que se consolidou uma instância com capilaridade, mesmo enfrentando boicotes sucessivos, que já foram denunciados em diferentes pesquisas (ARAÚJO, 2020; XAVIER, 2018).
O trabalho de titulação de terras quilombolas foi um dos mais importantes trâmites assumidos. Os encaminhamentos realizados, podem ser analisados juntamente com uma agenda formativa, garantida nessas ações de reconhecimento. Outro importante projeto foi o Observatório Afro-Latino e Caribenho – um programa para interação e diálogo, dando centralidade para as culturas afro-latinas e caribenhas. Foi possível acompanhar a criação do portal bem como o plano de ação para impulsionar pesquisas sobre diáspora e presença africana na região. Sua emergência gerou grande expectativa impactando núcleos diversos, que se surpreenderam com um mosaico de possibilidades novas de mobilidade e interconexão.
Por tudo isso, temos que concordar que a FCP é parte da agenda educadora do MN e, sem dúvida, é preciso compreendê-la como resultado de uma plataforma política de um movimento que se conformou nos interstícios e que trabalhou na contramão insistindo em suas diversas ações desenvolvidas em cooperação com as comunidades e suas organizações. O acervo que conseguiu reunir, faz parte da memória do país e é indispensável para entendermos como uma instância se organizou, (pelo menos até o ano de 2017), na contramão do racismo sistêmico. Como uma instância criada para combater a luta e diminuir o que definimos como ranço colonial, a fundação pode ser situada entre as grandes vitórias do antirracismo, na diáspora africana. Hoje, mais do que antes, é tarefa sine qua non recuperarmos sua história e garantir a difusão do que semeou para a recomposição da historiografia da luta, em todo o contexto nacional.
Acreditamos que esse itinerário pode favorecer a produção de subsídios para futuros debates, pesquisas, desenvolvimento de projetos, mas sobretudo, servir como um gatilho que favoreça (des)aprendizagens sobre o que é o Brasil profundo, o Brasil negado, o Brasil de mais de 54% de afrodescendentes. Um exemplo dessa negação pode ser localizado no trabalho de mapeamento de quilombos, em diferentes regiões do país. As representações instituídas em distintos Estados, facilitaram diagnósticos e análises conjunturais que privilegiaram as demandas advindas das comunidades sempre observando seus modos de reivindicar o reconhecimento da existência dos quilombos. Suas estratégias incluíram, por exemplo, a discussão de propostas de políticas públicas para a preservação de práticas culturais de matrizes africanas e das Comunidades de Terreiro. Foram inúmeros projetos de formação, de fomento para a criatividade, concursos e apoios que facilitaram a compreensão do que seria a sua tarefa. Trata-se de um percurso exitoso que propiciou maior visibilidade para as associações e grupos atuantes, nesse universo plural. Seu papel foi, sobretudo, de inaugurar um lugar inexplorado, em termos de políticas culturais. Para Araújo (2020, p.129):
[…] a Fundação Cultural Palmares não só desempenhou um papel relevante para o estreitamento das relações culturais entre os afrodescendentes brasileiros e os afrodescendentes latino-americanos, inaugurando um período onde o intercâmbio cultural e a troca de experiências entre instituições, grupos e ativistas do movimento negro foi intenso, como também, pela primeira vez nos seus 30 anos de existência, conseguiu cumprir minimamente com os objetivos para os quais foi criada.
Entendemos que a cooperação, nessa área, é, também, cooperação política. Sendo assim, um dos seus feitos, foi revelar lacunas existentes e reconectar processos culturais privilegiando alinhamentos com a América Latina e o Caribe. Grupos de artistas participaram de ações de intercâmbio e de projetos significativos, nos países vizinhos. Já no Brasil, aconteceu o mesmo desfecho onde pensadoras (es), ativistas, artistas e estudantes, participaram de propostas de aproximação. A nosso ver, esses são alguns dos resultados alcançados com uma significativa virada conceitual contemplando a região da qual fazemos parte. O vínculo com a Colômbia, impulsionou a realização de estudos comparados. Já é possível encontrarmos pesquisas que incluem fenômenos tais como as políticas educacionais, o pensamento intelectual afrodescendente, as agendas de luta do movimento social e as alternativas de cooperação em projetos formativos.
Alguns diagnósticos foram realizados na perspectiva comparada, no trabalho de mapeamento dos processos culturais, notamos importantes traços. Já se mencionava questões das especificidades em termos da diversidade cultural e, viu-se que, no contexto colombiano, as comunidades negras lutam pelo reconhecimento dos seus direitos básicos enfrentando sérias desvantagens educacionais e socioeconômicas. Assumidamente, o Brasil foi um país aglutinador e revelou potencialidades no tema do desenvolvimento cultural afro-latino. A ausência de recursos financeiros, a difícil localização das instalações da FCP, a negação da importância da demanda por reconhecimento e valorização, são alguns traços de sua jornada de institucionalização.
Podemos afirmar que como afrodescendentes, construímos nossos respectivos países e fizemos grandes mudanças, mesmo sem o acúmulo de bens materiais. Formamos quadros, intervimos em políticas sociais e denunciamos as condições nas quais se encontram as populações da diáspora. Nossa história como sociedades plurais, com marcas culturais africanas, é inegável. Existimos e re – existimos, como parte do território da diáspora africana no mundo. Portanto, o êxito da FCP foi valorizar essa pertença social e ratificar as reivindicações do Movimento Negro. Fabiana Guimarães Xavier (2018, p.160 ) destaca que é preciso:
Entender melhor o posicionamento político dos gestores e como eles veem a cultura negra é uma das análises que podem contribuir para um melhor entendimento das decisões organizacionais tomadas pela Palmares. Outro viés a ser aprofundado diz respeito aos editais lançados pela Palmares. Na nossa investigação não conseguimos examinar eficazmente cada certame. Seria necessário ir além dos valores e compreender o simbólico e político por trás de cada seleção.
Trabalhos sobre políticas públicas de cultura para os afro-latinos versus modos outros de intervenção da Fundação Cultural Palmares (ARAÚJO, 2020; XAVIER, 2018), ganham maior importância e oferecem um outro eixo interpretativo para a análise acerca do longo percurso a ser feito, para a revisão da historiografia. Trata-se de um desdobramento fundamental de um percurso feito na perspectiva do aquilombamento (perspectiva casa adentro) e da renascença africana.
À guisa de conclusão
Com a cooperação internacional realizada entre África e sua diáspora, outras rotas são ensaiadas e, essa retomada é também de sentido comum e de amplos deslocamentos coletivos. Coloca nossas ancestralidades outra vez, no centro. Os fóruns dos quais participamos, como Rede Pedagógica Latino-americana e Afro-caribenha (formada no Equador, incluindo Cuba, Brasil e Colômbia), favoreceram interações profícuas, como por exemplo, nossa participação no Congreso Internacional Cuerpos, despojos, territorios: vida amenazada (Quito, outubro de 2018) e, em Angola, no Primeiro Colóquio Internacional sobre Tarefas para uma Educação Inclusiva, no Instituto Superior de Ciências da Educação – ISCED/ Universidade Agostinho Neto (Luanda, outubro de 2019). A experiência de deslocamento incluindo investigadoras/es desses diferentes contextos, tem garantido maior compreensão acerca das demandas interinstitucionais, o que exige a ampliação dessa dinâmica.
Consequentemente, emergem projetos transculturais incluindo a proposição de fóruns e debates que contemplem diferentes áreas. Pode-se afirmar que o esforço empreendido, é de promover diálogos transoceânicos e essas são questões que entrecruzam análises geopolíticas com o foco no continente africano. Especificamente em Luanda (Angola), foi possível iniciar uma aproximação com a Universidade Agostinho Neto, tendo em conta a importante problematização a ser desenvolvida, com núcleos já atuantes naquela capital.
Para o Brasil, a colaboração envolvendo entidades promotoras de ações antirracistas, de organizações comunitárias, da região da América Latina, é um vínculo recente. A nosso ver, não podemos interromper os processos em curso e, com tais diagnósticos, pode-se propor pesquisa social e historiográfica, além de privilegiarmos outras vias de internacionalização. Essas são algumas das tecnologias ancoradas em movimentações que geram disputas multifacetadas e, um dos efeitos positivos desse outro desenho de inserção geopolítica, é poder ser interlocutoras (es) em propostas de reaproximação com cosmopercepções africanas.
As abordagens desde dentro ganham centralidade e passam a ser abordagens inclusivas e, assim, consideramos a institucionalização de uma política de formação na pesquisa, que ressignifique os espaços disciplinares hierárquicos, bem como a seleção do conhecimento. Nessa perspectiva da internacionalização e de cooperação mútua, é possível pensar em movimento e essa proposta está pautada no ideário de (re) aprendizagens africanas e afrodescendentes. A agenda de trabalho investigativo, da qual fazemos parte, exige que façamos perguntas sobre o status quo e suas formas sutis de violência e isso exige avaliação permanente das margens impostas aos “não brancos” inventados na aventura colonial europeia.
As investigações expedicionárias e, as escavações epistemológicas, são alcançadas, conforme aprendemos até aqui, na medida em que nos colocamos em redes colaborativas para pensarmos a centralidade dos vínculos a serem impulsionados com maior densidade. Tomar como referência uma gama de saberes invisibilizados, pode ser o primeiro grande passo. As trajetórias na diáspora africana é tema emergente e ainda pouco explorado no âmbito da Educação, das Ciências Sociais e da Historiografia. Assumimos, como grupo alinhado com tais preocupações, estabelecer pontes, visando considerar o conhecimento casa adentro e intercambiar, como rede de investigação expedicionária. O esforço das redes de investigação e de proposição de fóruns temáticos e permanentes, faz parte de um modo outro de trabalhar na contramão dos obstáculos que insistem em potencializar hierarquias. Importa considerar esses itinerários levando em conta, por exemplo, o acúmulo da FCP e assim, potencializarmos nossas tecnologias para outras composições teórico-práticas e filosóficas, que podem ser construídas em movimento.
Notas
2 Ver em Cultne.TV | Página Incial.
3 George Floyd, um homem negro de 46 anos, foi assassinado em Minneápolis (USA) pelo policial branco Derek Chauvin. Mesmo após mobilizá-lo, o agente o sufocou pelo pescoço até a morte. O motivo alegado, para a detenção, foi a semelhança do afro-estadunidense com um suspeito procurado. O crime deflagrou uma série de protestos e esses se espalharam pelo país, recebendo apoio advindo de outros contextos. Vimos mobilizações em quase toda a Europa e demais continentes.
4 Aimé Césaire (1913-2008) é um dos idealizadores desse movimento e o termo Négritude aparece, primeiramente, em 1935, na Revista L’étudiant noir (n. 3), em Paris (França).
6 Sobre isso, indica-se o trabalho “As ONGs de mulheres negras no Brasil”, de Sônia Beatriz dos Santos (2009).
7 Discursos coloniais são trabalhados por Aimé Césaire em Discursos sobre o colonialismo (1978).
8 Disponível em: Rostos familiares, lugares inesperados: uma diáspora africana global (youtube.com).
9 Sobre isso, ver Aníbal Quijano (Quito, 2015), na Conferência Magistral do III Congresso Latino-americano e Caribenho de Ciências Sociais, em: Aníbal Quijano en el III Congreso Latinoamericano y Caribeño de Ciencias Sociales – YouTube.
Referências
ARAÚJO, Edvaldo Mendes de. Políticas Públicas de Cultura para Afro-latinos: o trabalho da Fundação Cultural Palmares (2003-2010). 2020. 150f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.
BRASIL. Lei n° 10.639. Ministério da Educação. Brasília, 9 de janeiro de 2003.
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen, 2019.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo [online], v.12, n.23, p.100-122. 2007.
FANON, Frantz Omar. Pele Negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.