Dulce Pereira
Publicado originalmente em Coluna Olhares Negros em 26.05.2022 https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/quilombos-aquilombar-resistir/
Até onde este povo resiste, perguntavam os operadores do nazismo, como bem relata Thiago Oliveira[1] ao tratar dos testemunhos de Miklós Nyiszli e Primo Levi, em livros que abordam a desumanização e testes de limites que viveram em Aushwitz. Podemos observar a atualização dessas práticas, hoje em dia mais sofisticadas e complexas, em várias partes do mundo e, por certo, no Brasil.
E isso é gente? Esta mostra-se ser a pergunta que jaz no planejamento das instâncias do Estado, e das corporações, sobre as intervenções nos quilombos. Na cobiça pelas terras e ecossistemas com os quais interagem os quilombolas, incansáveis, as empresas e “commodities subservientes” servidores do Estado, portanto da nação, tratam de investir na quebra da resistência cidadã dos ocupantes dos territórios pelo direto ao território em que vivem, assegurado pela constituição brasileira de 1988.
Sábia foi a construção do texto constitucional, juridicamente ancorado em conceitos antropológicos de direitos, que revelam que os constituintes e muitos de nós, mesmo os mais críticos, que atuamos no processo, sabíamos dos atrasos e ganâncias em relação à ocupação das localidades. O texto do Artigo 68 das Disposições Transitórias, garante a propriedade das terras aos remanescentes de quilombos. Por mais que setores mais críticos e com propostas mais transformadoras e rigorosas em relação a direitos históricos, houvéssemos criticado a percepção dos quilombos vivos como remanescentes, há que se reconhecer que a definição constitucional permite confrontar juridicamente qualquer violação aos direitos de propriedade.
No entanto, propriedades de indígenas, ribeirinhos e quilombolas segue o “todos são iguais, mas alguns são mais iguais”, como observa Gorge Orwell, em Animal Farm[2], ao criticar a hipocrisia da imprensa inglesa, que evitava críticas ao regime Stalinista, aliado do governo britânico.
Qualquer discurso sobre sustentabilidade territorial, empreendedorismo quilombola, diálogo entre corporações e povos tradicionais, nada mais é do que parte da estratégia das corporações para submeter os históricos descendentes e ocupantes negros das terras ricas em água, minérios, situadas localidades estratégicas. Afinal, o que fazem esses seres nesses territórios nobres? Pagam o preço, as e os quilombolas, por sua sabedoria, vez que ao serem expulsos do Estado de Direito, encontraram lugares com água e terras férteis, desconhecidas e não ocupadas pelos fazendeiros, com o objetivo de viverem em comunidade e em paz. Frequentemente habitam em vizinhança dos povos originais, os indígenas.
Há cerca de 1525 territórios quilombolas em processo de reconhecimento e titulação. Apenas 167 comunidades são tituladas, segundo as informações oficiais do governo. O confronto entre racismo e antirracismo é materializado nos contextos socioambientais, com práticas crescentes de racismo ambiental.
Os quilombos de Alcântara no Maranhão; Oriximiná no Pará; Macacos, entre Simões Filho e Salvador e Boca do Rio em Aratu, as duas últimas na Bahia, contam essa história de abandono, morosidade, alienação dos órgãos de justiça, prevaricação dos órgãos do Estado em conivência as corporações ou subserviência a elas, omissão do executivo, indiferença da maioria do legislativo e demais poderes. Há invasores que são instituições do próprio Estado.
Mais de 17 mil pessoas são as e os quilombolas do município ancestral de Alcântara. Habitam cerca de 110 comunidades, ameaçadas e deslocadas na implantação do projeto de construção da base de Alcântara pela Marinha, nos anos 80. Perderam terras, acesso, capacidade de produção e paz. Agora, são violadas por um Acordo de Salvaguarda Tecnológicas (AST) com os Estados Unidos, assinado em março de 2019 pelo atual governo, por meio dos Ministério da Ciência, Tecnologia Inovação e Comunicação (MCTIC), Ministério da Defesa e Ministério das Relações Exteriores, que permite o uso comercial da Base Aérea de Alcântara.
Projetos da Marinha brasileira na região metropolitana de Salvador violam a constituição e acordos internacionais, com a ocupação de áreas do quilombo de Macacos na Bahia, que se consolida com a atuação de instituições do estado da Bahia. Limitam-lhes os acessos e as possibilidades de ir e vir, ameaçam-nos. Mortes de lideranças e uso de força para punir os quilombolas pela persistência em suas lutas são parte do cotidiano da comunidade. Há mais de 450 anos entre Simões Filho e Salvador, a comunidade de Macacos, trava desde 2010, quando foi construído o empreendimento, uma luta de Davi e Golias com a base Naval de Aratu.
No caso de Aratu, ademais, há autorização pelos órgãos do estado e federais, para que empresas que eliminam contaminantes nas áreas de proteção ambiental contaminam o mangue e outras áreas de preservação, continue explorando um porto, construído pela empresa que os confronta, a Bahia Terminais. Trata-se de uma estratégia de ocupação e espoliação territorial anterior à era cristã de ecocídio para forçar o deslocamento compulsório para a cobiçada ocupação do território, como explica Tidiane N’dyaie[3] sobre o “genocídio oculto”, na África subsaariana. O crime do lançamento de contaminantes no ambiente hídrico , que transforma a biota e expõe a comunidade a riscos de toxidade, é ignorado pelos órgãos ambientais, responsáveis, inclusive, pelas licenças às empresas.
Na Amazônia, particularmente, como ocorre no Pará, historicamente os quilombos sofrem a pressão dos “grandes projetos”. Os quilombos de Oriximiná, da região do rio Trombetas, relata a pesquisadora Zélia Amador de Deus[4], no final da década de 1970, tiveram várias comunidades afastadas de seus territórios devido à implantação do projeto da mineração Rio do Norte, para a extração de bauxita. Uma grande cidade enclave foi construída, desarticulando várias comunidades. O enclave foi construído à margem direita do rio Trombetas. Como se não bastasse, em 1980, a ditadura militar, governo do general Figueiredo, implanta à margem esquerda do rio uma reserva biológica para reduzir a área e possibilidades de cultivo no território ancestral. Não resta aos quilombolas, a não ser se tornarem peões e empregadas domésticas dentro do enclave, reflete Zélia Amador. O mesmo ocorre em Goiás, Mato Grosso, Maranhão e pelo Brasil afora.
Um dos recursos utilizado pela comunidade quilombola tem sido encaminhar pedidos de defesa da vida e da integridade física da comunidade à Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH). A resposta do Brasil, entretanto, em vários casos de punição e recomendações da Comissão, tem sido ignorá-las.
A nação brasileira teve a integridade de seu território, em muitos casos, protegida pelos povos indígenas e quilombolas. A tomada de territórios, é operada como bem descreve Ruth Wilson Gilmore[5], por estratégia de abandono organizado do Estado. Exemplo no caso dos quilombos é o fato da Associação das comunidades quilombolas do município de Oriximiná (ARQMO), um dos territórios ancestrais de maior relevância ambiental e para a memória amazônica, luta para construir “melhor relação com a mineração”, uma relação de menos subserviência. É jogada pelo Estado, como ocorre com crescente frequência no país, a pôr a raposa para cuidar dos ovos, para sobreviver. Sobreviverá ao ecocídio, epistemicídio e várias formas de genocídio, para reexistir?
[1] OLIVEIRA, T.H. et al. O bisturi que coisifica, a tabela que classifica: a desinstrução da condição humana nas narrativas do trauma do holocausto nazista em Miklós Nyiszli e Primo Levi (1944-1946). 2019.
[2] ORWELL, George. Animal farm. Oxford University Press, 2021.
[3] N’DIAYE, Tidiane. Le génocide voilé: enquête historique. Editions Gallimard, 2008.
[4] Zélia Amador de Deus é fundadora do CEDEMPA. Doutora em Ciências Sociais, escritora, foi vice-reitora da Universidade Federal do Pará.
[5] Dra. Ruth Wilson Gilmore, abolicionista afroestadunidense, geógrafa, autora de vários livros, é fundadora e diretora do Centro para Território, Cultura and Politica e professoraa de Geografia em Ciências da Terra e Ambientais na Universidade da Cidade de Nova York.
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DULCE PEREIRA Arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto, onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental. Primeira embaixadora negra do Brasil, foi secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi suplente do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e presidiu a Fundação Cultural Palmares. Mãe, feminista e ativista do Movimento Negro Unificado, integra várias redes nacionais e internacionais de pesquisadores e cientistas. Seu principal tema de estudos, nos anos mais recentes, têm sido as contaminações e desastres ambientais causados por rompimento de barragens.