
Vendedora e protagonista da manifestação das Laranjas
A baiana Sabina, descendente de escravizados, ganhava seu sustento como quitandeira na cidade do Rio de Janeiro, quando se tonou a personagem principal de uma manifestação política de estudantes de medicina da capital.
As quitandeiras, vendedeiras ou ganhadeiras, em geral mulheres negras, ocupavam maciçamente os mercados, as praças e as ruas das cidades brasileiras, com seus tabuleiros, desde o Brasil colônia. Elas constituíam um grupo bastante heterogêneo que no dia-a-dia circulava pelos espaços urbanos vendendo diferentes produtos, em geral, para garantir a sobrevivência sua e de sua família. No entanto, consideradas pelos escravocratas de plantão, como possíveis contraventoras e perturbadoras da ordem, tiveram que enfrentar muitos embates do poder público que sistematicamente as perseguiam e as reprimiam.
Havia um calor abrasador nas ruas do Rio de Janeiro, no final do século XIX. Pouco mais de um ano após a abolição oficial da escravidão no Brasil, a cidade ainda estava em meio às transformações sociais e políticas que acompanhavam a nova era republicana. Em meio a essas mudanças, Sabina, uma mulher negra e pobre, vendia suas iguarias no Largo da Misericórdia, em frente à Escola de Medicina, no Rio de Janeiro. O ponto de Sabina era um oásis de frescor em um mundo de estudantes encasacados e políticos fervorosos. Seus tabuleiros, sustentados por barris, exibiam uma profusão de frutas que aliviavam o calor dos passantes. Mas foi 1889 que suas frutas ganharam um papel inusitado na história política da cidade.
Na manhã do dia 25 de julho, um ato impensado e, por vezes, hilariante envolveu a quitandeira e o ministro da Fazenda. O visconde de Ouro Preto, ao cruzar a rua da Escola de Medicina, foi alvo de um ataque incomum: vaias, bananas, tomates e laranjas foram lançados contra sua diligência. O incidente, embora aparentemente trivial, causou uma grande comoção. Na manhã seguinte, o subdelegado regional Jacome Lazary, ordenou o fechamento da quitanda de Sabina, por considerar um local de subversão.
A repercussão foi estrondosa e gerou um frenesi nas mentes criativas dos estudantes. Com grande engenho e humor, eles organizaram uma passeata pelas ruas do Centro, munidos de laranjas espetadas em bengalas e um estandarte adornado com uma coroa de bananas, acompanhado da frase “Ao Exterminador das Laranjas”, conforme nos conta Danilo Araujo Marques em texto do Rio Memórias. A passeata começou no Largo da Misericórdia, seguiu pela Rua Primeiro de Março e pela Rua do Ouvidor, atravessou a Rua Uruguaiana e fez uma visita ao Largo de São Francisco, onde se encontraram com os alunos da Politécnica.
Ao contrário de manifestações tradicionais da época, este cortejo foi uma demonstração de protesto leve e cômico, sem confrontos ou quebra-quebras. A astúcia dos estudantes foi notável; quando alguém aproveitou a oportunidade para criticar a Monarquia, os manifestantes, com sagacidade, destacaram que o evento não era político, mas sim… agrícola. Para além da inovação humorística, a revolta das frutas teve um impacto significativo pela sua adesão popular. A cobertura da imprensa constrangeu o subdelegado Lazary, que acabou pedindo demissão. Sabina teve seu ponto restaurado e a imagem do Império, já fragilizada, recebeu mais um arranhão.
Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil em Mulheres Negras do Brasil revelam que Sabina tonou-se uma figura lendária e sua morte, no mesmo ano do episódio, chegou a ser anunciada na Gazeta de Notícias e no Brasil Médico, importante periódico da área. A memória de Sabina foi imortalizada por um tango composto por Artur Azevedo e encenado na peça teatral A República, que todas as noites atraiu centenas de pessoas, ávidas por ver Sabina no palco, na ocasião interpretada pela atriz Ana Manarezzi. Os versos de “As laranjas de Sabina” inclusive compõem uma das primeiras músicas gravadas no Brasil. Estes versos se tornaram um grande sucesso na capital federal, que em coro cantava: “sou a Sabina, sou encontrada todos os dias lá na calçada da academia de medicina”. Sabina retornou aos palcos em 1915, com peça homônima de J. Brito. Sua visibilidade se estendeu até a década de 1920, com diversas representações carnavalescas da lenda de Sabina das Punhetas.
A história de Sabina das Laranjas ou Sabina das Punhetas, cuja quitanda serviu de arma para os estudantes de medicina enfrentar os poderes da nova república e, ao mesmo tempo, tornarem seus defensores, oferece um vislumbre das perseguições, complexidades e dos desafios do período pós-abolição, especialmente na antiga capital, Rio de Janeiro.
Texto escrito por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
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REFERÊNCIAS:
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.
Sites:
“A SABINA DAS PUNHETAS”. Facebook, Fotos do Rio Antigo: 25 de julho 2023. Disponível em: Facebook. Acesso em 15 jul 2024.
MARQUES, Danilo Araujo. As Laranjas da Sabina. Rio Memória: Rio de Janeiro. Disponível em: Rio Memórias (riomemorias.com.br). Acesso em 15 jul 2024.