
Mulher trans, ativista pelos direitos humanos com ênfase em pessoas LGBTQIAPN+
Sônia Sissy Kelly Lopes, nasceu em 06 de abril de 1957, numa comunidade de agricultores familiares na cidade de Aimorés (MG) e ganhou o nome de Ildeci Lopes. Aos 17 anos decidiu sair de casa, deixando para trás seus 13 irmãos. De Aimorés ela foi para Vitória, Espírito Santo, para iniciar sua transição de gênero. Lá ela se tornou trabalhadora sexual.
Conforme relata a matéria de Isabela Alves, na GazetaWeb.com, Sonia Sissy não tinha acesso a muitas informações na época, ela não compreendia as mudanças que estavam ocorrendo em sua mente e seu corpo: “Eu não tinha consciência do que era uma transexualidade, não sabia nada sobre questões de gênero e o mundo LGBT. Eu saí de casa como Idelci Lopes e fui buscar o meu eu, a minha Sônia Sissy Kelly que eu nem conhecia ainda …… Até aquele momento eu nunca tinha tirado minha sobrancelha, não tinha nem furado a orelha… Sim, eu escolhi ser uma mulher transexual e sabia que só poderia estar completamente realizada sendo mulher. Essa transição não foi feita da noite para o dia, foi construída. Eu moldei o meu corpo, a minha mente e a minha alma”.
O período em que Sonia Sissy inicia sua transição de gênero, em 1974, o Brasil vivia as agruras do regime militar onde ocorria diversos tipos de violações dos direitos humanos por parte do Estado, como perseguição política, censura, repressão e tantas outras violências. Sonia foi vítima desses abusos motivados por sua estética fora dos padrões considerados anormais para a época e por ter assumido sua identidade trans. “A segurança pública nos violentava demais e tirava todos os nossos direitos, inclusive de ser quem éramos”, relembra Sônia. Ela revela ainda que, passando por cidades pequenas, foi deportada várias vezes: “Os delegados, quando não gostavam da travesti que trabalhava na boate – nessa época, a gente trabalhava muito em boate –, eles chegavam e deportavam a gente. Levavam a gente para uma estrada e nos obrigava a sair da cidade e procurar outro local.” Ainda sobre a ditadura, Sissy destaca que “O Estado nunca nos tratou como humanas. O Estado nos colocou à margem da sociedade, no papel de servir aos seus homens que, muitas vezes, nos matam. Os mesmos homens que ficam com a gente são os que nos matam. Os policiais que nos espancam são os mesmos que vão atrás da gente nas esquinas. O Estado nos reserva a prostituição, onde temos condições precárias de trabalho e onde estamos sujeitas à morte. É preciso reparar esses erros”. Ela relembra que sobreviveu também à Operação Tarântula, instituída nos anos 80, pelo prefeito Jânio Quadros, para prender e assassinar travestis que se prostituíam com o objetivo de higienizar a cidade dessa gente “pervertida”.
Mas Vitória ficou pequena para Sissy. Em 1984, mudou-se para a Europa onde viveu em diferentes países, por sete anos. O último deles foi em Portugal quando, em 1991, descobriu ter o vírus da AIDS. Após se saber soropositiva, Sissy veio ao Brasil e iniciou sua militância para garantir direitos aos medicamentos antirretrovirais para todos. Desde então filiada à Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, Sissy militou por décadas com seu discurso voltado à vida, rejeitando a ideia sorofóbica de que contrair o HIV é uma sentença de morte. Podemos aprender muito com sua fala para o Projeto Colabora: “O HIV me salvou, me resgatou do fundo do poço, me ensinou a gostar e a cuidar mais de mim. A amar a vida e saborear as coisas em seus mínimos detalhes. O HIV não foi meu inimigo, é o meu amigo. É possível envelhecer e ter uma vida normal. O que não é possível é conviver com a sorofobia.”
Infelizmente, o retorno de Sissy ao Brasil não se limitou à militância. Nem todos de sua família aceitavam de fato a sua identidade de gênero. Assim, para evitar conflitos com seus parentes transfóbicos, Sônia passou a usar um estilo andrógino. No instante em que parou de se vestir em busca de passabilidade e aceitação cis, não pôde mais morar com sua família. A partir de 1994, Sônia viveu com a insegurança de não ter um lar: “Fui acolhida em albergues masculinos geridos por lideranças religiosas que não aceitavam minha identidade de gênero. Tinha que dormir junto com homens”. Com a bagagem das suas experiências, a militância de Sissy também foi voltada às pessoas em situação de rua.
Em 2013, Sissy Kelly foi morar em Belo Horizonte (MG), iniciando oficialmente sua militância voltada às pessoas em situação de rua, para além das pessoas LGBTQIA+. Sônia foi uma pioneira ao ter fundado o Movimento Trans Pop Rua BH/MG. Inclusive, quando ela participou da audiência pública sobre Memória, Verdade e Justiça, da Comissão de Direitos Humanos da ALMG – Assembleia Legislativa de Minas Gerais, foi destacada a sua atuação como fundadora do Movimento, para além do fato de que resistiu à ditadura militar.
Entre 2018 e 2022, Sônia morou na Ocupação Carolina Maria de Jesus, em Belo Horizonte. Inclusive, foi no salão da Ocupação que o Projeto Colabora gravou sua produção, durante a comemoração do aniversário de 65 anos de Sissy. Naquela oportunidade, Sônia Sissy relembrou a importância da longevidade de pessoas trans: “É um valor inestimável estar celebrando os 60 anos, apesar de não termos políticas públicas e sociais de acolhimento para pessoas trans e idosas. Eu não quero que minhas amigas que estão chegando aí venham a ter os mesmos problemas que eu estou tendo de envelhecer extremamente esquecida pelas políticas.” Posteriormente, Sissy se tornou a primeira mulher trans a morar em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos em Belo Horizonte. Para muitos, pode ser um feito pequeno. Para quem compreende a insegurança financeira vivida por pessoas LGBTQIA+ (especialmente mulheres trans, idosas e soropositivas), observa-se a vitória de Sissy Kelly com seu ativismo. Infelizmente, esta realidade ainda é rara, tanto pelo fato de que a expectativa de vida das pessoas trans é de 35 anos no Brasil quanto pelo fato de que muitas instituições historicamente rejeitam pessoas trans – até mesmo para abrigá-las, quando estão em situação de rua.
Segundo a Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Sissy recentemente contribuiu ativamente na construção de formulário para a pesquisa Traviarcas. Realizou este trabalho entusiasmada com a visibilidade crescente das questões que afetam as pessoas trans idosas, na fé de que essa luta estava ganhando fôlego e reconhecimento. Com esperança, incentivou a Antra e todas as suas amigas a seguir em frente. Infelizmente, este ânimo fica hoje na memória de todas e todos que a amam. Após um tempo internada, Sissy faleceu em 2 de novembro de 2024. A Antra assim disse em Nota de Pesar: “Sua partida deixa um vazio profundo na comunidade, mas também fortalece a inspiração que sempre nos trouxe com sua trajetória de luta e dignidade.” Dentre tantas instituições, o CRP-MG – Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais publicou a Nota de reverência: Sônia Sissy Kelly. Nela, afirmou: “Sua contribuição para a Psicologia como referência do Movimento Trans e Travesti brasileiro é grandiosa. Ao longo de sua vida construiu inúmeros espaços de luta e resistência: foi ativista pelos direitos das pessoas que convivem com o HIV, da população de rua, e, em especial, mobilizou multidões em defesa das vidas das pessoas dissidentes de gênero e sexualidade.” Assim como a Antra e o CRP-MG, devemos seguir preservando a memória desta incansável ativista, amante da vida e de suas amigas.
Texto escrito por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #trans #travesti #lgbtqia+ #feminismo #historia #arte #mulheres #mulherestrans #transfeminismo #direitoshumanos #transfeminicidio
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
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JESUS, Tiago Correia de. Denúncia sobre o assassinato de Gisberta Salce em Indulgência plenáriade Alberto Pimenta
- Sites
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Conheça Sônia Sissy Kelly, militante histórica, idosa travesti. Andréia de Jesus, YouTube, 16 de junho de 2021. Disponível em: Conheça Sônia Sissy Kelly, militante histórica, idosa travesti. Acesso em 17 nov 2024.
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Nossa guerreira descansou 🖤. Instagram, soniasissykellylopes_, 2 novembro de 2024. Disponível em: Sissy Kelly Kelly (@soniasissykellylopes_) • Fotos e vídeos do Instagram. Acesso em 17 nov 2024.
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