Emilson Gomes Junior
A construção social de gênero perpassa pela criação e reprodução de diversos signos, na sociedade cisnormativa em que nos encontramos, referentes a feminilidade e masculinidade. Essa dialética, sob o prisma da cisheteronorma, é imposta de acordo com a genitália dos indivíduos, em que a feminilidade é exigida de corpos com vagina e a masculinidade, de corpos com pênis. As expectativas sociais impostas por essa visão bipolar de gêneros afetam todos os indivíduos dentro da sociedade, mesmo que de maneiras diferentes. Para os corpos trans, entretanto, há especificidades cruéis e violentas.
Com gêneros que não correspondem às expectativas sociais de suas genitálias, as pessoas trans passam a construir seus diálogos sociais de maneiras alternativas e marginais à cisnormativa vigente, em busca do reconhecimento social dos gêneros aos quais pertencem. Segundo Bruno Cesar Barbosa, isso é percebido através da descrição dos diálogos registrados pelo autor entre mulheres trans – autodenominadas pelos nomes “travesti”, “transsexual”, “transsex”, “viado”, “homossexual”, ou simplesmente “mulher”. Existem mulheres trans que reproduzem ideais de feminilidade cis, geralmente associados também à feminilidade branca e burguesa. Existem até mesmo pessoas trans que categorizam outros corpos trans que não alcancem esse ápice de mulheridade ao rótulo de travesti, ligado ao imaginário social de total marginalidade.
Gabriel Arkles dialoga sobre a marginalidade social citada por Bruno Cesar Barbosa, na qual se encontram pessoas trans na sociedade ocidental. No ocidente contemporâneo, as identidades de gênero são negligenciadas de maneira recorrente – lidos socialmente por olhares como “lésbicas” quando são homens trans (p. 861), e como “viados”, “faggots” (bicha, tradução livre) e “chicks with dicks” (garotas com paus, tradução livre) quando são mulheres – com as especificidades de “prostitutas e pobres” para as travestis e “loucas e depressivas” para as transexuais. Gabriel Arkles também fala da extrema vulnerabilidade em que corpos trans, principalmente negros, estão expostos. O autor traz à tona que esses indivíduos conseguem ser ainda mais vulneráveis à violência familiar, escolar, policial e sexual do que pessoas cisgêneras, principalmente se forem pretas e pobres, mesmo em comparação com mulheres cis e a população LGBTQIA+ em geral.
Esse panorama complexo de violência contra a população trans é perceptivelmente uma rede de controle biopolítico desses corpos que não são capturados pela cisnormatividade. Por serem ininteligíveis à normatividade, essa população passa a ser reprimida e controlada pelos exercícios de poder encontrados na sociedade. Exemplos desse controle podem ser vistos de maneira nítida na saúde, em que a verificação legítima do gênero dessas pessoas é restrita aos critérios de instituições de saúde e seus pressupostos, como descrito por Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Dessa forma, o SUS cria uma forma de capturar a população trans, considerada pela cisnormativa como indefinida, e assim deixá-la sob a visão do “monstro do controle” e pela vigilância estatal. Essa necessidade institucional surge do fato de que o sistema normativo vigente é completamente limitado e a existência de pessoas trans perturbaria o poder-saber-controle reproduzido pela sociedade cisheteronormativa
Outra forma de controle biopolítico dessa população é através da academia. Como já citado anteriormente, pessoas trans se encaixam na descrição de população vulnerável de acordo com critérios éticos de pesquisa. Essa população se encaixa nos espectros de vulnerabilidade intrínseca e extrínseca, de acordo com Rogers (2008). A vulnerabilidade intrínseca se refere a doenças mentais, doenças graves, extremos de idade; condições subjetivas que poderiam causar desigualdade de poder entre participantes e pesquisadores. Enquanto isso o espectro extrínseco seria referente a condições externas e materiais de vulnerabilidade, tais quais pobreza, baixa escolaridade e desigualdades étnica e de gênero. Pessoas trans se encaixam em geral no aspecto intrínseco descrito em decorrência de sua transgeneridade dentro da cisheteronorma e de doenças mentais como depressão e ansiedade geradas e agravadas pela profunda marginalidade social que essas pessoas vivenciam, inclusive com pouca possibilidade de suporte psicológico institucional.
Quanto ao extrínseco, isso se deve a exemplos como baixa escolaridade devida à evasão escolar dessa população em face de violências na escola e à condição geral que esses indivíduos na prostituição (condições que inclusive se relacionam, assim como descrito por Santos, 2015, p. 632). A intenção de manter essas pessoas protegidas das desigualdades de poder e constrangimentos que possam ocorrer durante a pesquisa é razoável. Entretanto, essa é também uma forma de silenciamento dessa população, sujeitando esses indivíduos a serem estudados por órgãos institucionais que monopolizam esses discursos e limitando as possibilidades de exposição de violências sofridas por esses grupos dentro da academia. Ou seja, uma forma de controle biopolítico das pessoas trans que deve ser percebida com cuidado para que não seja o caso de ao invés de proteger, coagir.
Essa realidade ceifa vida de jovens todos os anos, ao redor do globo. Por exemplo, Nikki Aye Ryan Adamczeski publicou a reportagem Nex Benedict vigils are erupting across the country. Here are powerful photos from these memorials (As vigílias em memória de Nex Benedict estão a irromper por todo o país. Aqui estão as fotos mais impressionantes dessas vigílias, tradução livre). Ela relembra da morte do jovem não-binário que morreu aos 16 anos, vítima de bullying em sua escola. A matéria mostra poderosas imagens de vigílias que ocorreram nos estados de Oklahoma, Nova York, Califórnia, Washington, Virginia, Nova Jersey, Tenessee, Massachussetts, Colorado e Connecticut, com destaque para a vigília ocorrida em Stonewall, cidade de Nova York, local icônico para a história dos direitos das pessoas LGBT.
Na matéria Arizona advocate: LGBTQ+ youths are scared after death of Oklahoma nonbinary teen (Defesa no Arizona: Jovens LGBTQ+ estão assustados após morte de adolescente não-binário em Oklahoma, tradução livre), a jornalista Kathy Ritchie revela que a família de Nex confirma o bullying sofrido por ele antes de sua morte. O motivo era sua identidade de gênero. De acordo com Nate Rhoton – CEO da one-n-ten, organização de defesa à juventude LGBTQIA+ do Arizona, localizada em Phoenix –, a morte de Nex mexeu com toda a comunidade. Um indicador disso, disse ele a Kathy Ritchie, é o número de ligações recebidas pela linha de emergência, ou hotline, da Rainbow Youth Project USA. As ligações subiram 500% após a morte de Nex.
Segundo Rhoton, nos estados em que as legislações protetivas aos direitos das pessoas LGBTAI+ foram reduzidas, muitos jovens LGBTQIA+ passaram a experienciar mais violências verbais e físicas. Este é o caso de Oklahoma, onde Nex faleceu. Vide a matéria Human Rights Campaign Condemns Oklahoma Governor Stitt for Signing Gender-Affirming Care Ban into Law (A HRC – Human Rights Campaign condena o governador de Oklahoma, Stitt, por ter aprovado a proibição de cuidados de afirmação de gênero, tradução livre), revelando que o governo de Oklahoma baniu cuidados de afirmação de gênero. Trata-se de cuidados necessários para o bem estar de muitas pessoas trans que experienciam sintomas de disforia de gênero e/ou estresse resultante de serem trans em uma sociedade que hegemonicamente não reconhece seus gêneros.
No Brasil, a realidade consegue ser ainda mais letal. Basta lermos a reportagem Mapa mostra países que mais matam pessoas trans; Brasil aparece em 1º, de Isabela Oliveira. A jornalista noticia que, segundo o relatório do Projeto Transrespeito versus Transfobia Mundial, houve 96 mortes de pessoas trans de 1 de outubro de 2021 a 20 de setembro de 2022, o que representa 29% do total mundial, nos colocando em primeiro lugar da lista dos países que mais mata pessoas trans. A matéria Brasil registrou 145 assassinatos de pessoas trans no ano passado indica que estamos matando cada vez mais, pois em 2023 houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinato e 10 casos de suicídio posterior a violências transfóbicas. Esse número aumentou 10,7% em relação a 2022, quando 131 pessoas trans morreram vítimas da transfobia, segundo os dados da 7ª edição do Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023. Houve 12 assassinatos de pessoas trans por mês em 2023, além das pelo menos 66 tentativas de homicídios contra travestis e mulheres trás, e 3 tentativas contra homens trans e pessoas transmasculinas. No início do ano, houve a notícia Mulher trans é encontrada morta em açude no Agreste, revelando o falecimento de Telinha. Seu corpo foi encontrado em um açude de Surubim, em Pernambuco, estado que liderou o ranking de assassinatos de pessoas trans em 2022, segundo a Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
Em resposta a essa realidade cruel, pessoas trans brasileiras têm se articulado para defender seus direitos. Um excelente exemplo é a trajetória de Erika Hilton, primeira Deputada Federal negra e trans eleita na história do Brasil, recebendo 256.903 votos em São Paulo. Em 2020, ela também se tornou a vereadora mais votada do país, com mais de 50 mil votos. Por 2 anos, Erika Hilton foi a presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo. Ao se eleger vereadora, ela foi a primeira mulher trans eleita de São Paulo. Agora, em 2024, Erika Hilton se consagrou mais uma vez, sendo a primeira deputada trans a liderar bancada no Congresso, em substituição a Guilherme Boulos. O brilhantismo de Erika Hilton leva a sociedade a confiar no seu trabalho cada dia mais.
Notamos que a mobilização social em torno da deputada Erika Hilton, e de tantas outras políticas brilhantes, reflete a vontade de uma grande parcela da sociedade, que deseja construir uma nação segura para pessoas trans e cis, de todas as classes sociais, credos, sexualidades, origens étnicas. Essa mesma mobilização gerou a primeira edição da Marcha Transmasculina em 3 de março de 2024, em São Paulo. Inclusive, a deputada Erika Hilton noticiou a marcha em suas redes sociais, confirmando sua presença. O IBRAT-SP – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades – Núcleo São Paulo, em colaboração com uma rede voluntária, reuniu milhares de pessoas no evento que representa um marco na luta do movimento transmasculino no país, segundo Giovanne Ramos para a Alma Preta Jornalismo. Com o tema Homens trans e pessoas transmasculinas existem no passado, no presente e no futuro, a marcha também marca o lançamento da Carta de Compromisso com o Movimento Transmasculino, dirigida aos candidatos que concorrerão às eleições de 2024. Assim, devemos continuar nos articulando pelos direitos das pessoas transmasculinas, transfemininas e não-binárias, em combate à letal e brutal realidade vivida por pessoas trans no Brasil e no mundo.
Palavras-Chave/TAG: #transfobia #cisheteronormatividade #controlebiopolitico #feminismo #transmasculinidade #transsexualidade #LGBTQIA
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
ARKLES, Gabriel. Gun Control, Mental Illness, and Black Trans and Lesbian Survival. (January 3, 2014). Southwestern Law Review, v. 42, nº 4, p. 855-899, Northeastern University School of Law Research Paper, nº 173-2014: 2013. Disponível em: Gun Control, Mental Illness, and Black Trans and Lesbian Survival by Gabriel Arkles :: SSRN. Acesso em 6 mar 2024.
BARBOSA, Bruno Cesar. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad: Rio de Janeiro, agosto de 2013 nº. 14, p. 352-379. Disponível em: SciELO – Brasil – “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Acesso em 6 mar 2024.
ROGERS, Wendy; BALLANTYNE, Angela. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. Reciis – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 2, Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz: Rio de Janeiro, dezembro de 2008. Disponível em: 127888 (brapci.inf.br). Acesso em 6 mar 2024.
SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. A biopolítica educacional e o governo de corpos transexuais e travestis. Cadernos de Pesquisa, v. 45, nº 157, p. 630-651: São Paulo, setembro de 2015. Disponível em: SciELO – Brasil – A biopolítica educacional e o governo de corpos transexuais e travestis A biopolítica educacional e o governo de corpos transexuais e travestis. Acesso em 6 mar 2024.
SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Corpos e subjetividades trans* na escola e nos movimentos sociais: a reinvenção das tentativas de captura por meio das normativas oficiais”. 37ª Reunião Nacional da ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 4 a 8 de outubro de 2015. Disponível em: Trabalho-GT23-4128.pdf (anped.org.br). Acesso em 6 mar 2024.
Sites:
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ERIKA HILTON. Câmara dos Deputados. Disponível em: Deputada Federal Erika Hilton – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 6 mar 2024.
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Erika Hilton é primeira deputada trans a liderar bancada no Congresso. Agência Brasil: Brasília, 21 de fevereiro de 2024. Disponível em: Erika Hilton é primeira deputada trans a liderar bancada no Congresso | Agência Brasil (ebc.com.br). Acesso em 6 mar 2024.
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RAMOS, Giovanne. São Paulo sedia 1ª Marcha Transmasculina do Brasil. Alma Preta Jornalismo: 29 de fevereiro de 2024. Disponível em: São Paulo sedia 1ª Marcha Transmasculina do Brasil (almapreta.com.br). Acesso em 6 mar 2024.
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