Vítima da escravidão.
Maria do Carmo é uma das poucas mulheres negras que, escravizadas, entrou com uma ação de liberdade na história do Brasil. Tal ocorreu em 1872, quando “pertencia” a Afra Joaquina Vieira Muniz, uma mulher negra que, tal como o seu marido, foi escravizada desde o nascimento e obteve a liberdade legal quando adulta. Conforme Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil em Mulheres Negras do Brasil nos ensinam: “Em 1872, duas escravas suas, as negras, Severina e Maria do Carmo, entraram com ação de liberdade e pedido de depósito, o que significava ficarem recolhidas até o fim do processo num lugar seguro indicado pelo juiz, que poderia ser a cadeia ou a casa de particulares. Comprometiam-se a acompanhar, na condição de libertas – ou seja, sem estarem submetidas a determinados castigos – a mulher do seu ex-senhor. Contudo, perderam a ação e ficaram obrigadas a permanecer como escravas de Afra até que ela morresse.”
Tal caso demonstra como o racismo institucional ocorria na época da escravidão: havia entraves absurdos à possibilidade de liberdade da pessoa negra, ao passo que havia a possibilidade de a pessoa negra legalmente livre alimentar os sonhos elitistas de manutenção da escravidão institucional do povo negro. Ainda, podemos ressaltar outro aspecto: a humildade de Severina e Maria do Carmo ao se comprometerem a acompanhar Afra, a escravagista que lhes negava a liberdade, na condição legal de liberdade. Ao mesmo tempo, devemos lembrar que foi um posicionamento estratégico este pedido, considerando as baixas chances de sucesso. Assim, sendo mulheres solicitando legalização de suas liberdades perante um Estado escravagista e misógino, fez sentido o movimento de barganha com seus algozes.
Por fim, destacamos que a liberdade legal anterior à morte de Afra significaria uma das melhores alternativas para Severina e Maria do Carmo. Isto porque, sendo elas consideradas pelo Estado como coisas, propriedades, no caso do falecimento de Afra, iniciaria o processo sucessório, de forma que suas condições de trabalhos forçados e cárcere privado, dentre outros, poderiam até mesmo se tornar ainda mais violentas e agressivas, especialmente considerando que eram mulheres negras que conheciam há décadas os seus escravizadores, e que possivelmente iriam para novas condições de escravidão, com novos algozes, após o processo sucessório. Enfim, apenas algumas reflexões, que não se esgotam aqui, dessas mulheres que, dentre as poucas da história do Brasil, tentaram judicializar suas demandas – no caso, buscando meramente o que é de todos os seres humanos, o reconhecimento de sua liberdade.
Sobre o tema, citamos Maria Amoras, Solange Maria Gayoso da Costa e Luana Mesquita de Araújo em O ativismo das mulheres negras escravizadas no Brasil colonial e pós-colonial, no contexto da América Latina. A seguir, as autoras demonstram o que representava tornar-se liberta no genocídio ibérico na América Latina, principalmente considerando a dura realidade que tais mulheres sabiam que enfrentariam em liberdade: “As recém-libertas passavam a enfrentar todos os obstáculos possíveis em decorrência dos ínfimos pagamentos que recebiam pelos serviços domésticos prestados nas cidades, que mal garantiam os custos com alimentação e manutenção de suas famílias e outros parentes. A análise crítica da historiografia nacional realizada por Marília Ariza (2018) possibilita observar que essa mulher, ao se submeter ao trabalho árduo para conquistar a alforria, tinha em mente o projeto de emancipação feminino compartilhado com outras mulheres e da própria família. É compreensível, assim, que a defesa da autonomia de seus corpos e de seus filhos estivesse no projeto de libertação defendido pelas mulheres. Isso revela ou reforça o dado da prevalência de se ter mais mulheres libertas em contexto pós-colonial do que homens. […] Com base nisso, pode-se afirmar que as diversas possibilidades de articulações dessas mulheres em busca de alforriamento compreendiam uma postura política de extrema complexidade e relevância, uma vez que se constituíam em táticas de sobrevivência com possibilidade de libertar os filhos do ciclo da escravidão”.
Texto Adaptado do livro Mulheres Negras do Brasil por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
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REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
AMORAS, Maria; COSTA, Solange Maria Goyaso da; ARAÚJO, Luana Mesquita de. O ativismo das mulheres negras escravizadas no Brasil colonial e pós-colonial, no contexto da América Latina. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 23, E202128, 2021. Disponível em: O ativismo das mulheres negras escravizadas no Brasil colonial e pós-colonial, no contexto da América Latina | Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (anpur.org.br). Acesso em 12 dez 2022.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.