• Chica da Silva (1732 -1796)

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11 de setembro de 2023 por 

Figura mítica, ex-escravizada, filantropa

Francisca da Silva Oliveira, conhecida como Chica da Silva, foi uma mulher negra que nasceu escravizada, sob as leis da Colônia do Brasil do Reino de Portugal. A sua certidão de batismo foi registrada no arraial de Milho Verde, na cidade de Serro Frio, atual município do Serro, Minas Gerais, no ano de 1732. Chica da Silva é filha de Maria da Costa, mulher africana mantida em condição de escravidão, e Antônio Caetano de Sá, português, capitão das ordenanças. Tendo em vista o nome de sua mãe, é possível que Maria da Costa seja originária da Costa da Mina. Conforme a página virtual Costa da Mina: “Costa da Mina designava o litoral da África Ocidental que se estendia a leste do Castelo de São Jorge da Mina, na atual Gana, incluindo as antigas Costa do Ouro e Costa dos Escravos. A Costa do Ouro estendia-se do Cabo Três Pontas até o Rio Volta, e a Costa dos Escravos, do Rio Volta até o Rio Lagos, embora alguns autores pudessem estabelecer outros limites geográficos”.

Segundo Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil em Dicionário Mulheres do Brasil, Chica teve o primeiro filho, Simão, com seu proprietário, o médico português Manuel Pires Sardinha, fato documentado no arquivo do Bispado, segundo a historiadora Junia Furtado, no livro Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes. Ele exerceu os cargos de juiz e presidente do Senado da Câmara na vila do Príncipe. Sardinha estava impedido, legalmente, pela Igreja, de assumir esta paternidade, mas concedeu alforria ao menino na ocasião do batismo. Mais tarde, ao redigir seu testamento em 1755, reconheceu Simão como seu filho bastardo, nomeando-o como um de seus herdeiros.

Francisca parda, (como era chamada), foi alforriada pelo desembargador João Fernandes de Oliveira, que chegara ao arraial do Tejuco, antigo nome de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, no segundo semestre de 1753, para administrar o contrato dos diamantes arrematado por seu pai. A região, que englobava a vila do Príncipe e o Tejuco, desde 1729, ano da descoberta dos diamantes, era a mais cobiçada da colônia portuguesa. Devido às dificuldades de arrecadar os tributos relativos à extração das pedras, a Coroa resolveu adotar o sistema de contrato. Apenas o contratador podia explorar os diamantes, garimpados por mão-de-obra negra escravizada.

Francisca foi tornada propriedade de João Fernandes de Oliveira quando tinha 22 anos. Logo em sequência, tornou-se oficialmente cidadã livre. Francisca da Silva de Oliveira é seu nome legal após sua liberdade.

Chica teve forte influência monetária na região de arraial do Tejuco. Historiadores apontam que adquiriu fortuna através de uma relação romântico-afetiva com João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes da região. No ano seguinte da sua alforria, em 1754, já era proprietária de um sobrado e pessoas escravizadas, demonstrando que procurava inserir-se no mundo livre do arraial, incorporando seus costumes e adquirindo os bens necessários para se fazer respeitada.

Vale mencionar que tal relação era vista de forma negativa pela sociedade colonial. Era considerado concubinato: convivência romântico-afetiva entre mulher e homem sem a realização da cerimônia do casamento. Possível compreender a gravidade da relação no contexto social colonial a partir do ensinamento de Ana Lucia Santos Coelho: “Nesse contexto, em meados do século XVI, o Concílio de Trento passou a considerar o concubinato de estado ‘criminal’ para ‘pecado grave’.”

Conforme nos revela Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil, entre 1755 e 1770, o casal conviveu na atualmente chamada Casa da Chica da Silva. O relacionamento de Francisca e João se tornou publicamente uma relação de concubinato. O casal teve 13 filhos, sendo nove mulheres e quatro homens. A média de um filho a cada treze meses faz desmoronar a figura sensual, lasciva, e devoradora de homens à qual Chica esteve sempre ligada. João Fernandes legou-lhes todo o seu patrimônio. Os nomes dados aos filhos, além de repetirem os do pai e da mãe, homenageavam as cinco irmãs freiras de João Fernandes, a mãe e a irmã de Chica. Reverenciavam também alguns santos de devoção da família, conforme revelado pelo próprio João Fernandes em seu testamento e pelos sobrenomes adotados pelas tias das crianças. Esta reafirmação dos laços familiares sugeria que ali se estabelecia uma família autêntica, ainda que não sagrada pelos laços oficiais do matrimônio. Revela também a intenção de honrar os filhos e de inseri-los no seio familiar, buscando, ao mesmo tempo, conferir legitimidade à relação.

Todos os filhos obtiveram educação de qualidade. Educou suas nove filhas no Recolhimento de Macaúbas, melhor educandário das Minas, destinado apenas às filhas das famílias abastadas. Educação esmerada para as mulheres significava, principalmente, a preparação para uma vida virtuosa. Os muros do convento deveriam funcionar como uma barreira intransponível para a vida mundana que grassava no seu exterior. Puras, intocadas e bem-preparadas, as mulheres ali reclusas estariam aptas a escolher uma das duas alternativas que a sociedade da época oferecia às mulheres: a vida religiosa ou o casamento honrado. A primeira opção não era o objetivo de Chica. Assim, embora cinco de suas filhas tivessem professado os votos e se tornado freiras, quatro delas abandonaram mais tarde o hábito para se casar.

Há registros de que João presenteava Francisca de formas variadas e extravagantes. Compreende-se que, de fato, Francisca tinha livre acesso ao capital de João, a fim de satisfazer suas necessidades e realizar seus desejos. Neste sentido, há registros de que Francisca se relacionava com os círculos sociais burgueses e eclesiásticos, realizando eventos para a elite econômica mineira e doações a associações cristãs beneficentes.

Chica procurou sempre sua inserção social e a de seus filhos na elite do arraial. Isto ocorreu a partir de vários expedientes, não devendo ser creditado apenas à importância e à fortuna de João Fernandes, já que ele teve que retornar a Portugal em 1771, chamado pela Coroa para prestar contas de violações das regras do contrato de que foi acusado. Tendo que contar consigo mesma, Chica buscou mecanismos para a manutenção de seu status, a exemplo das outras mulheres forras do Tejuco. Um deles era a filiação a diversas irmandades. Estas procuravam agregar indivíduos de mesma origem e condição, sendo, por isto, um modo de obter distinção e reconhecimento social. Era também comum a participação de brancos nas irmandades de pardos e negros, como sinal de proteção à entidade. Prova da importância e do grau de inserção que alcançaram é o fato de Dona Francisca da Silva de Oliveira, como era sempre tratada, e seus filhos pertencerem às principais irmandades do Tejuco, fossem de brancos, pardos ou negros. Na Irmandade das Mercês, que congregava pardos, chegou ao cargo de juíza. A maioria das filiações ocorreu em datas posteriores ao retorno de João Fernandes ao Reino e a sua morte.

No livro da Irmandade do Santíssimo do Tejuco, existem dezenas de registros de pagamentos feitos por Chica por conta de casamentos, batismos e enterros de escravizados que lhes serviam. Na sociedade escravista da América portuguesa, era obrigação de um bom cristão garantir o acesso de seus cativos aos sacramentos religiosos. A Igreja procurava punir os senhores que não deixassem seus escravos irem à missa, ou que lhes negassem a extrema-unção, impedindo que suas almas fossem salvas. Chica foi proprietária convencional de serviçais negros, pois convertê-los à fé católica era um dos mecanismos de aculturação e acomodamento ao cativeiro e à cultura dominante. Não foi encontrado nenhum registro de alforria concedido por ela. Como há lacunas nos documentos, esta afirmação não pode ser tomada de forma absoluta, porém confirma o comportamento tradicional da época, de manter a todo custo o patrimônio acumulado.

A casa de Chica ficava num local prestigiado do arraial, na Rua do Bonfim. Era praticamente um palacete, com vinte e um cômodos, onde havia um jardim com plantas exóticas vindas da Europa e cascatas artificiais. Tinha capela própria, dedicada a Santa Quitéria – privilégio de pouquíssimos no arraial -, onde mais tarde se casaram duas de suas filhas. A fachada lateral era coberta por treliça, que escondia a varanda, garantia a ventilação e protegia o interior, revelando preocupação com a intimidade familiar.

Depois da volta de João Fernandes ao Reino, em 1771, Chica procurou realizar bons casamentos para as filhas, uma vez que ele levou para Portugal os quatro filhos homens, além de Simão Pires Sardinha, o primeiro filho de Xica, que se responsabilizaria pelo futuro dos irmãos. Disposto a introduzir os filhos na corte, o ex-contratador ocultou as origens deles e a relação que mantinha com a ex-escravizada. Seu filho João tornou-se o principal herdeiro do pai, que constituiu em Portugal o Morgado do Grijó, destinando-lhe dois terços de seus bens. Casou-se com Ana Maria da Silva, natural de Guimarães, com quem teve pelo menos dois filhos. José Agostinho tornou-se padre, tendo o pai deixado renda para que ocupasse uma capela. Simão Pires Sardinha estudou em Roma, comprou um título de nobreza e uma patente de tenente coronel da cavalaria de Minas Gerais.

Importante ressaltar que a imagem pública de Francisca da Silva Oliveira tem sido historicamente misógina e racista. A imagem que se popularizou em nossos dias foi a de uma mulher imoral que abusava da sensualidade para conseguir o que queria. Este é, entretanto, um estereótipo do papel que a mulher negra ocupou na sociedade colonial, construído pelos historiadores a partir do século XIX.

A primeira vez em que Francisca da Silva apareceu como personagem histórico foi nos textos sobre Diamantina, publicados por Joaquim Felício dos Santos no jornal O Jequitinhonha. Foram posteriormente reunidos no livro Memórias do Distrito Diamantino. Para o autor, ela “não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão”. Este havia tomado conhecimento da história de Chica, segundo Junia Furtado, porque foi advogado de seus herdeiros no processo de disputa de seus bens, depois da morte do herdeiro principal, João Fernandes de Oliveira Grijó. Já o historiador Erildo Jesus afirma que este autor, o primeiro a escrever pejorativamente sobre ela, era sobrinho de Antonio Amador dos Santos, que tinha sido casado com Frutuosa Batista de Oliveira, uma neta de Chica da Silva.

As pesquisas posteriores sobre a vida de Chica revelaram, porém, que se tratava de uma mulher que procurava, e de certa forma conseguiu inserir-se na sociedade branca e excludente de Minas Gerais na época. Esta inserção se deu a partir do concubinato com o contratador dos diamantes desembargador João Fernandes de Oliveira, com o qual nunca se casou de fato por estar impedida pelos costumes e leis da época. Chica não foi rainha ou bruxa, ela soube aproveitar-se das poucas possibilidades que o sistema lhe oferecia.

A atuação de Chica junto à elite branca do arraial do Tejuco foi sempre de tentar diminuir o estigma que a cor e a escravidão lhe impuseram, promovendo a ascensão social de sua prole.

João Fernandes morreu em Lisboa, em 1779. Estava tão doente que foi incapaz de assinar seu último testamento, escrito três dias antes de seu falecimento. Foi enterrado no convento de Nossa Senhora de Jesus.

Chica morreu no dia 15 de fevereiro de 1796, no Tejuco; seu enterro no corpo da igreja de São Francisco de Assis, cuja Irmandade era reservada e congregava a elite branca do arraial, demonstra sua importância e prestígio. Teve ofício de corpo presente, reunindo todos os sacerdotes do arraial, sendo seu corpo acompanhado à sepultura por todas as Irmandades a que pertencia. Segundo suas disposições testamentárias, foram rezadas quarenta missas por sua alma na igreja das Mercês, que reunia os pardos e mulatos.

O racismo perpetuou o mito de Chica da Silva ao longo dos séculos: uma escrava que se uniu ao homem branco mais rico da Colônia. O personagem histórico de Chica da Silva foi brilhantemente interpretado pela atriz Zezé Mota, protagonista do filme Xica da Silva, dirigido por Cacá Diegues em 1976; em 1997, a TV Manchete fez uma novela de sucesso, intitulada Chica da Silva, com a atriz Thaís Araújo, interpretando o papel principal.

Talvez em função da intolerância da sociedade brasileira, uma vez obrigada a se relacionar com a figura de uma mulher negra, livre e rica, tanto naquela época quanto atualmente, Francisca da Silva Oliveira tem sido descrita em produções científicas e artísticas como uma mulher promíscua, cruel, superficial e oportunista. Importa à sociedade brasileira contemporânea desmistificar a imagem de Francisca, tendo em vista que nenhuma mulher negra, tampouco sua imagem ou sua memória, merece ser alvo do racismo ou da misoginia. Inaceitável que Chica da Silva tenha sido vítima de hipersexualização e desumanização.

Palavras-Chave/TAG: #mulhernegra #filantropia #colonialidade #racismo #exescravizada #figuramitica

Texto Adaptado do verbete contido no Dicionário Mulheres do Brasil por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.

REFERÊNCIAS

  • Sites:

Casa da Chica da Silva. Disponível em: Casa da Chica da Silva – Melhores Destinos

COELHO, Ana Lucia Santos. Infâmia, escândalo e pecado: relações de concubinato no Brasil Colônia. Revista Ágora. Vitória. 2015. Vista do Infâmia, escândalo e pecado: relações de concubinato no Brasil Colônia (ufes.br)

FURTADO, Junia Ferreira. Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes. O outro lado do mito. Editora Companhia das Letras, 2003

FRAZÃO, Dilva. Chica da Silva. E Biografia. Disponível em: Biografia de Chica da Silva – eBiografia

SILVA, Daniel Neves. Chica da Silva. Brasil Escola. Disponível em: Chica da Silva: história, mitos e morte – Brasil Escola (uol.com.br)

Práticas religiosas na Costa da Mina: Uma sistematização de fontes européias pré-coloniais. 1600-1730. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: Costa da Mina (ufba.br)

  • Produções acadêmicas:

CORTELETI, Marco Antônio. Pesquisa contesta mito de Chica da Silva. Disponível em: Pesquisa contesta mito de Chica da Silva (ufmg.br)

SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Érico Vital. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, em parceria com a Redeh, 2007.

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