Indígena e Sertanista
Damiana da Cunha nasceu integrante do povo Paraná-Caiapó, aproximadamente em 1779. Neta do cacique Angraí-ocha, não foi criada em sua aldeia natal. Cresceu em um assentamento colonial, entregue aos cuidados de seu padrinho Luís da Cunha Meneses, outrora governador da província de Goiás.
Damiana recebeu este nome ao ser batizada. Naquela época, a sociedade colonial compreendia o batismo como parte fundamental da introdução à sociedade e um ritual de separação entre o passado e a nova vida – a cristã. Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil, em Dicionário Mulheres do Brasil, escreveram sobre as contradições da trajetória de Damiana. A versão mais mencionada de sua vida conta que o governador da capitania de Goiás, D. Luís da Cunha Meneses, capturou um grupo de cerca de 50 caiapós na década de 1780, estando entre eles, o cacique, uma de suas filhas e dois netos. Damiana era uma das pessoas capturadas. A neta do cacique passa a se chamar Damiana da Cunha Meneses, uma vez batizada. Ou seja: ela foi introduzida na sociedade colonial ainda criança por causa de um ataque do governo colonial contra os povos originários. É possível que o fato de ela ter sido apadrinhada pelo então governador da capitania tenha proporcionado a ela melhores condições de vida em relação a outras mulheres indígenas, vítimas da colonização brasileira. Criada na religião católica, quando adulta se casou com Manoel Pereira da Cruz, um português.
Importante relembrarmos que a colônia portuguesa realizava diversas invasões a territórios de nações brasileiras indígenas para praticar o genocídio colonial. Uma das faces desses ataques, por óbvio, era o cárcere privado e o tráfico de pessoas – falando em termos atuais. Os presos políticos indígenas – sim, presos políticos, pois eram capturados por força de uma guerra iniciada pela coroa portuguesa – foram separados em 2 grupos, instalados nos locais em que as aldeias de São José de Mossamedes e de Maria (em homenagem à rainha portuguesa D. Maria Iª foram fundadas. Schuma e Érico revelam que a morte do cacique, avô de Damiana, influenciou no surgimento de novos conflitos entre indígenas e colonizadoras. Neste cenário, entre o luto de seu avô e os novos desdobramentos da guerra entre portugueses e povos indígenas, Damiana decidiu trabalhar enquanto catequista, realizando incursões no interior da então capitania. Mais do que catequista, pode-se perceber que Damiana era uma promotora da paz, ou até mesmo diplomata. Conhecedora dos costumes dos caiapós e dos portugueses, criada em uma colônia portuguesa habitada por inúmeros indígenas, Damiana alcançou um cargo institucional nas lógicas coloniais para – a despeito de ser uma mulher indígena na colônia – servir à colônia e aos povos indígenas de forma honesta, integral e poderosa, reduzindo danos e mediando conflitos.
Schuma e Érico revelam que Damiana, em 1829, quando já era sertanista, buscou o governador da capitania para intermediar a paz naquela região, pois naquele ano novos conflitos entre colonos e indígenas estavam explodindo.
A história de Damiana é um exemplo típico dos meios empregados no processo de aculturação das tribos indígenas brasileiras, fazendo-as perder seus costumes para adotar hábitos, vestimentas e lógicas coloniais. Para a colônia, isso significava sucesso político e militar. Para os indígenas, isso significava mais uma etapa da violência iniciada com a guerra portuguesa contra seus povos. Independente de tudo, Damiana viveu sendo exemplo de que é possível transformar a sua realidade de forma honesta, servindo a lados opostos em promoção da paz. Ela nunca abandonou seu povo. Damiana pertenceu e serviu aos povos caiapó e colonial, buscando preservar a paz entre ambos, a favor da sobrevivência de todos.
Nas palavras de Schuma e Érico: “Chama a atenção a importância atribuída à sua memória por vários autores que trataram da questão das mulheres indígenas no Brasil.” Eles nos relatam que, em 1925, por exemplo, o deputado federal Olegário Pinto distribuiu panfletos nas escolas públicas de Goiás contando a história de Damiana. Já a escritora e feminista Maria Eugênia Celso, em 1918, afirmou em uma conferência que Damiana teve o mérito de “trazer à civilização seus irmãos selvagens e rebeldes”. Essas ações inevitavelmente têm viés político, e infelizmente esses vieses podem trazer visões prejudiciais ou distorcidas sobre Damiana, mulheres e povos indígenas. Com Maria Eugênia, notamos que ela cita “civilização” como em uma elipse que diz “civilização branca”, ou “civilização portuguesa”. Talvez fosse ainda mais sensível ela ressaltar que os caiapós eram um povo, uma civilização, cujos membros foram capturados e incorporadas a uma outra civilização por força das guerras coloniais. Enfim, o que importa é seguirmos refletindo sobre a vida de Damiana e tantas outras, de modo a enriquecer o debate e dispersar conhecimento sobre as vidas dessas corajosas mulheres e suas formidáveis histórias.
Importa destacar que o presente texto se propõe a refletir sobre resultados científicos de estudos sobre Damiana da Cunha, sua história e seu legado. É necessário fazer este comentário pois há diversas interpretações sobre Damiana da Cunha e sua trajetória, mas poucos indícios e elementos comprobatórios de sua vida e obra. Portanto, é possível considerar que muitas das reflexões feitas por pesquisadores foram baseadas nas poucas evidências que o colonialismo português – em pleno vigor durante a vida de Damiana – permitiu serem criadas e preservadas até o presente momento. Desta forma, é importante lembrarmos que os estudos são baseados em evidências produzidas neste período histórico particularmente racista e misógino, de forma que é possível questionar se os produtores de tais evidências buscavam tornar a imagem de Damiana da Cunha como algo mais próximo de ideais brancos e masculinos da época. Este elemento, por si só, sinaliza que devemos ter parcimônia ao analisar os dados produzidos sobre a vida de Damiana da Cunha – não por questionarmos a trajetória desta mulher emblemática, mas por questionarmos a sociedade e as instituições que formularam os relatos e registros sobre ela, mulher indígena vivenciando a colonialidade patriarcal e racista portuguesa.
A despeito das expectativas coloniais, Damiana se desenvolveu de forma articulada em ambas as linguagens Paraná-Caiapó e coloniais portuguesas, assim como viveu sua fé e religiosidade duplamente. Dentre os registros históricos, consta que Damiana tanto participava de celebrações católicas apostólicas romanas com vestimentas e gestos desenvolvidos por tal cultura, como de celebrações Paraná-Caiapó com pinturas e acessórios americanos, nua.
Instrumentalizando seus conhecimentos, Damiana bravamente decidiu se posicionar enquanto líder política de sua região. Nessa toada, importa destacar que Damiana nasceu no contexto dos brutais avanços coloniais em linha com a assinatura do Tratado de Madri (1750). Tal acordo internacional visava a redefinição de fronteiras nos domínios ibéricos na América. Neste sentido, a ocupação efetiva do território pelo Império português era crucial para a redefinição das fronteiras entre os governos colonizadores. Na década de 1750, o então ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, posteriormente chamado Marquês de Pombal, adotou medidas que alegadamente visavam o “bom tratamento” às pessoas americanas com o fim último de torná-las súditas “civilizadas” e “úteis” ao Império português. Inegável a tentativa de desumanização dos povos americanos, buscando a implementação da necropolítica contra esses povos.
Damiana recebeu o título de “capitão-mor dos índios” pela colônia, título reconhecido pelos indígenas. Segundo Mary Karasch, “ela e os que como ela deixaram de ser índios sem converter-se em luso-brasileiros” perceberam que o lugar no mundo para eles era qualquer um no qual eles pudessem se amar e sobreviver.
Crucial apontar que há registros no sentido de que os integrantes do povo Paraná-Caiapó mantiveram, dentro e fora dos aldeamentos, suas tradições. A urbanização do povo frente à ameaça genocida não os teria impedido de relacionarem-se de formas não coloniais. Segundo Célia Coutinho Seixo de Britto, Damiana “resolveu envidar todos os esforços no sentido de conter os nativos, evitar perda de vidas e impedir crimes que seus irmãos da selva preparassem contra os civilizados”. Logo, compreende-se que Damiana buscava evitar confrontos e, portanto, assassinatos contra o seu povo.
Damiana faleceu entre 2 de fevereiro e 3 de março de 1831. Damiana havia partido em 1830 para uma nova expedição, levando consigo presentes a seus irmãos e suas irmãs Paraná-Caiapós, acompanhada de seu marido, Manuel Pereira da Cruz. Retornando após 8 meses de expedição, acompanhada de seus amigos americanos José e Luísa, bem como de outras 32 pessoas americanas, foi recebida com alegria pelos aldeados antes mesmo que ela chegasse a Mossamedes, enquanto o presidente da província e demais autoridades a aguardavam na aldeia. Damiana retornou doente, provavelmente em função da árdua expedição pelos sertões do século XIX. Segundo o biógrafo Joaquim Norberto, em “Brasileiras Célebres”, de 2004, “ela recebeu os socorros espirituais, e como quem adormece, cerrou os olhos num suspiro brando e suave se lhe desprendeu dos lábios.” O corpo de Damiana foi enterrado na igreja local.
Elaborado por: Emilson Gomes Junior
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REFERÊNCIAS
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