• Enquanto eles jogavam, elas torciam – Lugar de mulher nunca foi só no campo doméstico!

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15 de abril de 2024 por 

Liliane Brum Ribeiro [1]

Publicado no Livro “Nós Mulheres do Século Passado”, organizado por Vilma Piedade, Andrea Pachá e Cristina Gaulia, Editora Máquina de Livros, 2023.

Fui instigada a escrever esse texto e queria que fosse algo do qual pouco se fala entre mulheres, principalmente as do século passado, mesmo sendo parte de nossas vidas desde que nascemos. E me refiro, especialmente, à presença das mulheres num esporte que já foi proscrito para nós e pelo qual sempre fui apaixonada: o futebol.

E, escolho esse tema não apenas porque sempre gostei de esportes, mas também por ser um dos campos em que mais as meninas e mulheres encontraram – e encontram – dificuldades para se aventurar e conquistar espaço com liberdade no nosso país. Nunca joguei profissionalmente. Como única filha em meio a dois meninos, cresci na rua jogando peladas em campinhos de grama, de terra, de areia ou asfalto. Não cheguei longe, mas desde então meu olhar e curiosidade estiveram atentos ao que acontecia com as mulheres neste esporte de paixão nacional, mas com um caminho bem difícil para elas que precisam cotidianamente driblar preconceitos.

Da primeira partida de futebol feminino no Brasil quase cem anos se passaram. Um século de bola rolando e de conquistas das mulheres com avanços, impedimentos, bandeiradas, preconceitos e dificuldades. Cartão amarelo ou vermelho não faltou! E, logicamente, também muitos gols!

Conta a história que a chegada do futebol ao Brasil ocorreu no final do século XIX e, acolhido por uma sociedade brasileira marcada pelo racismo, machismo e sexismo, o futebol identificou-se como esporte masculino. A presença de senhoritas e senhoras da elite restringia-se à torcida. Filhos no campo e filhas na arquibancada, como destacou Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro (1964).

Aqui um fato curioso e emblemático: o termo torcida surgiu dessa presença delas nas arquibancadas do tricolor fluminense, tendo o cronista Coelho Neto escrito “enquanto eles jogam, elas torcem”, ao flagrar o movimento nervoso das jovens que assistiam as partidas e torciam suas luvas nas horas tensas dos jogos.Elas não entravam em campo, mas o termo entrou para a história.

Foi na década de 30 que o futebol se tornou um dos elementos da identidade nacional e, relatos de partidas entre times de mulheres já estavam presentes em jornais da época, geralmente ligadas a eventos beneficentes e a espetáculos em circos. Nessa época, a expressão feministas aparecia nos periódicos nacionais e, grande parte das vezes, associada à insistente presença de algumas mulheres que desafiavam os padrões impostos na época e se aventuraram em jogos pelo país.

Não demorou muito para que o patriarcado se alvoroçasse sobre esse comportamento tão fora do que era esperado de uma mulher. E o processo higienista e intervencionista, que tinha como grande aliado a ciência médica – sempre autorizada a definir com bases na biologia o destino moral das mulheres -, atinge em cheio a alegre prática do futebol que as moças vinham protagonizando. Assim, em pleno Estado Novo, o Presidente Vargas publica o Decreto 3.199/1941 em que declarava “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza…”. A partir de então, jornais que antes exaltavam as aventuras futebolísticas dos times femininos, começam a advogar pela boa conduta das “moçoilas” da época, que deveriam ser melhor controladas por seus pais ou maridos.

Com isso, as protagonistas dos campos começaram a enfrentar a ira do patriarcado, sempre atento para tentar exercer o controle sobre as mulheres. Enquanto vários times se desfizeram, outras ousaram subverter as regras e se mantiveram pelos gramados, fazendo sucesso na própria cidade, em jogos e campeonatos estaduais e mesmo interestaduais, como a imprensa da época nos dá a conhecer. Isso até 1964, quando o golpe colocou os militares no poder, dando início aos anos de chumbo no Brasil e, com eles, o apito que ditava as novas regras sentenciou definitivamente: mulheres no futebol não!

Os anos de 1970 no Brasil foram marcados pela luta contra a ditadura militar e pelo ressurgimento dos movimentos de resistência social, dentre eles o feminista. E o futebol feminino foi um espaço dessa insubordinação das mulheres. Com isso, em 1983 o CND (Conselho Nacional de Desportos) resolve liberar a prática. No ano seguinte, o futebol feminino é declarado oficialmente como modalidade esportiva e, com isso, os anos 80 do século XX compuseram uma década de vitórias para as mulheres no futebol. Até 1987, a CBF já havia cadastrado dois mil clubes e quarenta mil jogadoras.

Nos anos 90 o futebol feminino foi incluído como categoria nas Olimpíadas. Nessas décadas, as atletas viveram o sonho da profissionalização, do reconhecimento e do fortalecimento da modalidade no país. Mas, as expectativas de que a presença da mulher no futebol no Brasil se consolidaria e teriam a profissionalização que sonhavam, demorou muito a se tornar realidade, na contramão do que ocorria internacionalmente.

Nesse novo século, superando adversidades e driblando preconceitos, o futebol feminino configura-se como realidade no Brasil. Nas cidades grandes ou pequenas; capitais ou periferias; áreas remanescentes de quilombos e reservas indígenas, times amadores e profissionais reúnem meninas, moças e mulheres que evidenciam habilidades e gosto pela bola. E craque não falta!

Bola dentro? Nem tanto assim! No país do futebol, esporte dominado pelos homens, apesar dos avanços, o futebol feminino ainda esbarra em limitações que não são poucas e incluem preconceitos, dificuldades de patrocínio, de investimentos públicos, de reconhecimento. Desde 2000, o talento da seleção brasileira feminina de futebol tem conquistado medalhas de ouro, prata e bronze e ganhado o mundo. Exemplos não faltam. A alagoana Marta Vieira da Silva, a Marta, foi eleita seis vezes pela FIFA, entre 2006 e 2018, a melhor jogadora de futebol de todo o mundo. Sem dúvidas ela abriu portas. E, como ela, outras jogadoras marcaram época e desafiaram as regras patriarcais e o preconceito racial.

Hoje Martas, Cristianes, Formigas, Alines se multiplicam pelo Brasil, marcando um novo tempo para elas.

Porém, ainda muito desigual, o mesmo Brasil que se orgulha de ter o futebol como símbolo da paixão nacional ainda desconhece onde estão suas jogadoras. Quando as mulheres fazem uma opção de vida pelo futebol, encontram um caminho tortuoso, tendo que driblar preconceitos de uma sociedade que teima em não enxergar que hoje esse esporte vai muito além de um espaço reservado para que apenas os homens o ocupem.

As mulheres chegaram ao século XXI trazendo na bagagem muitas conquistas e, sobretudo, o justo desejo de exercerem sua cidadania em plenitude. Subvertendo regras, algumas se aventuraram enfrentando várias barreiras e preconceitos. Se hoje não existem atividades interditadas a elas, muitas ainda sofrem discriminações que contribuem para o fortalecimento de estereótipos de gênero, raça e orientação sexual, que acabam por afasta-las das carreiras esportivas.

A igualdade e equidade de gênero e raça no mundo do futebol ainda tem vários troféus a conquistar. Que ainda neste século possamos ver mulheres em campo, driblando menos preconceitos, marcando novos gols e recebendo os mesmos salários que eles.

[1] Sou uma mulher branca, ativista feminista antirracista da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB, antropóloga, pesquisadora e nascida no ano de 1962 na cidade de Santa Maria/RS. Atualmente resido no Rio de Janeiro e exerço a função de coordenadora de projetos na REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano.

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