Trabalhadora sexual, empreendedora, filantropa
Eny Cezarino nasceu no bairro da Aclimação (SP) em 23 de abril de 1917. Filha do italiano José Cesarino – que desembarcou no Brasil de um navio infestado pelo cólera, quando o país ainda praticava a escravidão -, e da francesa Angelina Bassoti Cesarino. Recebeu da família uma educação tradicional, com direito a colégio de freiras e criação para arrumar um bom casamento.
De sua juventude, duas lembranças a acompanhariam a vida toda. A descoberta sexual com uma amiga de colégio, dois anos mais velha e a perda da virgindade, com o pai de um amigo, por simples curiosidade, como relataria décadas depois.
Após fugir de casa trabalhou como prostituta em São Paulo, Porto Alegre e Paranaguá (PR), mundo ao qual foi apresentada pelo gigolô e namorado Germano Flores, um carioca que conheceu ao frequentar as noitadas do Cassino da Urca (RJ).
Em Porto Alegre, Eny aprendeu com Gina Brunetti, mulher francesa ligada à prostituição, técnicas comerciais para construir o seu próprio império – a exemplo, estimular o consumo de bebidas alcoólicas pelos clientes da prostituição, limitando às profissionais o consumo de bebidas com pouco ou sem álcool. Eny percebia que importava à profissão o menor desgaste físico possível. Ao ser contra a profissional ter orgasmo com o cliente, por exemplo, Eny estaria buscando proteger as trabalhadoras do sexo de se apaixonarem por homens que as viam como meros objetos sexuais, bem como de possíveis relacionamentos problemáticos e gravidez com tais clientes. Anos mais tarde diria Eny, que a prostituição foi a melhor opção para não se tornar uma entregadora de marmitas, como a irmã, ou operária de fábrica de chocolates, como muitas amigas de infância.
Na década de 1940 se transferiu para a cidade de Bauru, como uma das meninas da Pensão Imperial e, posteriormente, comprou o bordel e passou a gerente.
Em poucos anos tornou-se poderosa, influente, amiga de políticos e dona do maior e mais luxuoso bordel do país, o Eny’s Bar, em um imóvel comprado fora do perímetro urbano da cidade de Bauru, atendendo a uma lei municipal de manter as “mulheres da vida” longe das tradicionais famílias.
Podemos refletir sobre as dificuldades enfrentadas por Eny ao longo de sua vida empreendedora. Por exemplo, segundo Valquíria Aparecida Passos Kneipp em Eny Cezarino, a Justiça proibiu prostíbulos no Centro de Bauru nos anos 1960. Em resposta, Madame Eny se mudou para a entrada da cidade, na contramão da concorrência que se dirigia a leste da cidade. Nesta época, teria se tornado reconhecidamente o maior bordel da história do país, chamado de Restaurante Eny’s Bar. Segundo Valquíria, o estabelecimento teria sofrido com a revolução sexual dos anos 1980. Dentre outros fatores, o texto menciona o surgimento de motéis. Muitas jovens passaram a trabalhar a partir de motéis, dando preferência a estes em relação ao estabelecimento de Eny. A autora revela uma frase atribuída a Madame Eny, consciente das mudanças sofridas no mercado da prostituição e o impacto delas em seu negócio: “Está na hora de fechar porque a profissional nunca deve perder para uma amadora.”
Segundo Fábio Alessandro Somenci e Maria Clara Mamede, Eny decidiu se prostituir após uma crise financeira vivida por sua família. Seus familiares não aprovaram o seu ofício. Os autores compreendem que Eny teria decidido a profissão não “como único recurso na vida de uma mulher”, mas sim “pelo desejo imenso de quebrar tabus pré-estabelecidos e a vontade de ganhar dinheiro de modo rápido e prazeroso”. Os autores compreendem que Eny persistiu na busca de seu sonho pela ascensão social e manutenção de sua família em condições dignas de sobrevivência. Assim, construiu seu império.
Entre 1963 e 1983, época auge, Eny chegou a contratar cerca de 70 meninas, inclusive, estrangeiras, trabalhando em sua casa de quarenta quartos, saunas, jardins, restaurante, piscina, bares e salões de festas. Festas de confraternização de empresas e convenções de políticos, em pleno regime militar, eram comuns.
Ciente do filão que explorava, oferecia aos ilustres clientes o sigilo absoluto de meninas bonitas, elegantemente vestidas, asseadas e regularmente atendidas por um médico, que cuidava para que não engravidassem. As moças podiam estudar e eram obrigadas a optar por um, dentre os três perfumes franceses recomendados por madame Eny. Aquelas que vinham de fora eram “orientadas” a transferir seu título de eleitora para a cidade.
Acontece que sexo não era tudo que Eny oferecia. Ela fazia campanhas políticas, angariava votos e ajudava a eleger amigos. Por isso, provavelmente, seu bordel era o único instalado perto da rodovia, longe da área reservada aos demais prostíbulos da cidade. Também por sua influência junto às autoridades, sempre resolveu rapidamente todos os poucos problemas que teve com a polícia, como, por exemplo a denúncia do uísque contrabandeado do Paraguai.
Seus familiares sabiam de sua profissão e recebiam mensalmente uma ajuda financeira enviada por Eny. Deles não recebia aprovação e nem desprezo. A exceção era sua avó, Rosa, para quem a neta era filha do pecado e, por isso, nunca mais lhe dirigiu a palavra.
Eny também praticava a filantropia em favor de instituições e indivíduos em necessidade, ela conseguiu ajudar sua família e doar alimentos, brinquedos e dinheiro a diversas creches, instituições sociais e pessoas que a procuravam. Madame Eny custeou a educação e a alimentação de muitas crianças ao longo de toda a sua vida, entre altos e baixos financeiros, tornando-a uma figura pública, uma benemérita na cidade, apesar do preconceito enfrentado.
Sobre sua clientela, é dada como certa, pelos moradores mais antigos da cidade, a presença de fazendeiros, padres, políticos como João Goulart, Jânio Quadros, o poeta Vinicius de Moraes, governadores paulistas, artistas, presidentes da república e até de um príncipe austríaco, que esteve na cidade, certa ocasião, para instalar uma cervejaria.
Eny foi casada durante muitos anos, mas não teve filhos. Apesar do império que construiu, chegando a possuir vinte e seis imóveis, morreu pobre e em uma cama de hospital, aos sessenta e nove anos, em 25 de agosto de 1987.
Sobre sua decadência, Eny culpava a mudança dos costumes sexuais e os anticoncepcionais, que liberaram às chamadas “moças direitas” o sexo com os namorados. Acusava também a péssima atuação de seu contador. A casa de Eny, famosa não apenas pelos sanduiches de rosbife que servia, pertence atualmente a um político local, mas está fechada.
Em 2002, quinze anos após sua morte, a vida dessa mulher que revolucionou costumes, deu origem ao livro Eny e o grande bordel brasileiro, de Lucius de Mello, publicado pela Editora Objetiva.
A Rede Globo há anos discute a produção da minissérie Casa de Eny, escrita por Walter Negrão. Conforme Flavio Ricco em História de cafetina de Bauru pode chegar ao streaming, a minissérie de 10 capítulos foi aprovada, mas ainda não produzida.
Oportuno, por fim, mencionar a humanidade de Eny Cezarino. Humana, tanto praticou o amor por toda a sua vida quanto cometeu atos contrários à vida amorosa e livre. Conforme exposto por Lucius de Mello na entrevista concedida a Amanda Araújo e na página virtual Social Bauru “O lado bruxa da Eny também me surpreendeu muito”, diz autor de livro sobre famosa cafetina de Bauru. Eny Cezarino conseguia “transformar o ambiente do seu bordel num ambiente familiar – onde ela se comportava como uma mãezona de suas ‘meninas’ que se vestiam e se comportavam com a elegância e o fino trato das moças da sociedade bauruense”. No entanto, Lucius menciona que ela violou a liberdade sexual de algumas mulheres através de esterilização não consentida. O autor revela que Eny Cezarino teria ajudado algumas mulheres a praticar o aborto – ato que deve ser escolha da mulher em gestação. Além do que ajudar não significa impor. Independentemente de ser verdade ou não as tais acusações, Madame Eny fica inscrita na história como uma das mulheres brasileiras mais bem sucedidas no empreendedorismo do século XX.
Palavras-Chave/TAG: #enycezarino #trabalhosexual #liberdadesexual #feminismo
Elaborado por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher
REFERÊNCIAS
- Produções acadêmicas:
SOMENCE, Fábio Alessandro; MAMEDE, Maria Clara. Clessí e Eny: da submissão ao empoderamento feminino. Bauru: Simpósio Internacional de Linguaens Educativas. Centro de Ciências Humanas da Universidade do Sagrado Coração (USC), 2018. Disponível em: Microsoft Word – CLESSI_E_ENY_DA_SUBMISSAO_AO_EMPODERAMENTO_FEMININO.docx (unisagrado.edu.br)
- Sites:
KNEIPP, Valquíria Aparecida Passos. Histórias da maior e mais odiada cafetina do Brasil. São Paulo: Portal Mutirão do Brasileirismo Comunicacional. Universidade Metodista de São Paulo. Disponível em: Eny Cezarino — Portal Mutirão do Brasileirismo Comunicacional (metodista.br)
Mulher 500 anos atrás dos panos. Eny Cezarino. Disponível em: Eny Cezarino (1916-1997) – Mulher 500 Anos Atrás dos Panos
Jardim do Ypê. Eny Cezarino. Bauru. Disponível em: Eny Cezarino – Cemitério Parque Jardim do Ypê (cemiteriojardimdoype.com.br)
RICO, Flavio. História de cafetina de Bauru pode chegar ao streaming. Brasil: Coluna do Flavio Ricco, Jornal R7, 2020. Disponível em: História de cafetina de Bauru pode chegar ao streaming – Prisma – R7 Flavio Ricco
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