• Estado racista: nação dependente e subordinada

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15 de abril de 2024 por 

Dulce Pereira

Publicado originalmente na Coluna Olhares Negros, em 17.09.2022, em: https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/estado-racista-nacao-dependente-e-subordinada/

A independência do Brasil foi uma solução encontrada pelas elites da época para manter o poder sobre a nação e a subordinação do povo a seus interesses. Também, para construir uma imagem de Estado-nação independente, seguindo a tendência global. Sequer abolir a escravidão de africanos e seus descendentes, ou reconhecer os territórios dos povos nativos fez parte do projeto, pois era contra seus interesses. A dependência econômica da Europa incluiu até o pagamento da indenização a Portugal com empréstimo de bancos  da Inglaterra . O poder concentrou-se nas mãos das mesmas famílias escravocratas que recorreram aos métodos de dominação e exploração herdados desde a antiguidade, em nosso país aperfeiçoados. A hegemonia mantém-se até nossos tempos  por meio de tortura, tomada dos territórios, epistemicídio, ecocídio, feminicídio/genocídio, ancorados no patriarcalismo e no racismo. Diferentes estágios do capitalismo sobrevivem sob o comando dessas elites subordinadas, porém eficientes em suas estratégias de concentração de riqueza.  Os setores políticos e acadêmicos progressistas não são transformadores a ponto de romperem com as ideologias de hierarquia social dos grupos que  conduzem  os processos de gestão internos e as relações internacionais.

Este artigo é uma mirada que reúne o conteúdo de muitas falas, análises e percepções, oportunas às vésperas das eleições que definirão quem será chefe de Estado, quem concentrará o poder parlamentar no congresso. Essas vozes começam a aprofundar reflexões sobre o fracasso dos grupos que controlam o poder de estado no Brasil e vampirizam a energia nacional, em oposição às oportunidades que a Natureza oferece e a inteligência que a nação acumula. Em todas as suas fases de existência histórica, observe-se que os movimentos negros abordaram a história a partir de perspectiva crítica em relação ao poder que se serve, mas não serve a nação.

Porque as elites colonizadas são tão atrasadas e subordinadas? O fato é que a mais longeva ideologia, o racismo, formou a humanidade a partir da definição que negros não são humanos. A imposição da supremacia europeia edificou a riqueza dos impérios, legalizando a escravidão e estruturando as economias ancoradas no racismo e no patriarcalismo. Os Estados instrumentalizaram os saberes, que não se descolonizaram.  Os superiores europeus, de acordo com  intelectuais como o filósofo Immanuel Kant, devido aos seus “talentos diferenciados” seriam naturalmente destinados a conduzir a humanidade, subordinando os outros seres,  “incapazes de serem autônomos”, “irreflexivos”, “preguiçosos”, naturalizando as explorações de negros e asiáticos[1]. Kant ainda hierarquizou as características relacionando-as ao ambiente:

Branco de cor mais castanho
Primeira raça
Loiros nobres (Europa do Norte)
de frio úmido
Segunda raça
Cobre-avermelhados (América)
de frio seco
Terceira raça
Negros (Senegambia)
de calor úmido
Quarta raça
Amarelo-oliva (Ásia – Índia)
de calor seco (Immanuel Kant)[2]

Então, as elites colonizadas não questionaram esses conceitos, adequaram-se a tais status de desenvolvimento, reproduzindo-os e naturalizando-os. Agora, onde ficam nessa escala hierárquica? Certamente não estão no topo da cadeia. Olham para o outro e a outra, mas quebram o espelho quando observam sua própria imagem.  Mas, de ilusão e estratégia entendem. Assim, absorvem a retórica dos movimentos, dos documentos de direitos humanos e ambientais para desfilarem verborreias sobre justiça. No entanto, basta observar o Estado, as áreas que gerenciam a coisa pública e tratam dos interesses públicos. os tribunais e o conjunto das instâncias de justiça. Continuam masculinos e brancos, além de grisalhos. O Congresso da mesma forma, os conselhos, como é a composição dos executivos de toda a esfera administrativa.

Nada do que ocorre no Brasil está fora dessa necessária compreensão. Degradação da Amazônia; dependência das commodities, atraso científico tecnológico que submete o país à indústria internacional; fome; feminicídio; assassinatos planejados de negros, indígenas, travestis, jovens e lideranças ambientalistas; perseguição, eliminação e desqualificação de jornalistas; deterioração do sistema de educação.  Também o enriquecimento acelerado de setores que comercializam equipamentos e outros itens de suporte para sobrevivência à pandemia em paralelo à retirada de direitos, de saúde, de comida, de água, de educação e daí para a frente.

Os palanques dessas eleições revelam os condicionamentos e estagnação colonizada, hierarquizam os brasileiros entre os “têm” e os “têm não”, deixando de lado a imensa oportunidade de tratar das questões como temas nacionais de corresponsabilidade coletiva, para ultrapassarmos, como nação, as barreiras da subserviência e dependência. Os setores conservadores afirmam-nos como colônia em pleno século XXI. Como a disputa impõe embate a partir do que oferece cada candidata ou candidato, os grandes temas que realmente atingem os territórios não se aprofundam.

As candidaturas negras estão silenciadas. Não têm tido voz de poder nos palanques, embora o combate ao racismo apareça adequado aos diversos interesses na fala, do centro-direita até a esquerda. O voto negro está em disputa e talvez por isso aquelas e aqueles que mais atrairiam esses votos são silenciados. Os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, destinado a candidaturas negras, continua inacessível para a maioria desses concorrentes às eleições. Há concorrente que sempre foram brancos, declarando-se pardos ou até pretos, cometendo crime eleitoral.   Entretanto, são as candidaturas negras as que trazem os conteúdos que posicionam o país rumo a condições de transição, para além das fronteiras da subordinação. Consideram os grandes temas que desafiam a humanidade, estão relacionados aos territórios e propõem formas dignas de vida comunitária.

Autonomia e autodeterminação passaram a ser expressões de utopias passadas à medida que o atual estágio de globalização, seguindo padrão colonizador, tornou-se conceito absoluto. Passou-se a falar em globalização quase que como uma era, um período único da história. Não é o entendimento para os negros, nem para os asiáticos. Afinal, não foi num passe de mágica que os smartfones surgiram em nossas mãos, como reflete o cientista negro Renato de Mendonça[3], ao escrever sobre investimento em  ciências. A memória ancestral que nos conduz em coletividade demanda transições e justiça, direitos e novas conexões com a vida. Isso exige espaço e organização política por qualidade de vida, demanda caminhos opostos à morte dos corpos e das culturas que ressignificamos todos os dias. Por conseguinte, mudanças estruturais na relação com o ambiente, descarbonização da economia,  saneamento ambiental com produção de energia limpa, avanço da produção científica com ciência e tecnologia para a preservação ambiental, saúde e produção de alimentos orgânicos, proteção e preservação das águas do Brasil, expansão do registro dos saberes e da produção intelectual brasileira, educação para a prevenção de riscos, precaução e renaturalização de territórios, produção de energia limpa articulada com  cuidado ecossistêmico, com as pessoas e  territórios, transporte acessível e mobilidade facilitada, emprego e renda dignos, tudo isso é prioridade para as candidaturas de ativistas  dos movimentos negros, que fazem a entrega de parte preciosa de suas vidas para serem candidatas e candidatos ao legislativo e ao executivo, nas eleições de 2022.

Como escreve Mendonça, não investir em ciência é investir em pobreza[4]. Por isso, propostas para investimento no avanço científico, para promoção da saúde física e mental, para avanços da capacidade produtiva segundo a realidade ambiental, ocupam espaço relevante nas propostas das candidaturas antirracistas. Avançar com os programas de cotas, salvar vidas negras, titular os territórios quilombolas urbanos e rurais, respeito e preservação dos espaços de religiões de matrizes africanas, combate à violência e ao genocídio dos jovens, e todas as demais pautas estão na ordem do dia, com a participação da gestão pública para implementar políticas inclusivas antirracistas.

Pode-se afirmar que as campanhas das mulheres negras candidatas desnaturalizam a imposição histórica de hierarquia humana. Se conseguirem ultrapassar os filtros das coordenações de campanha, certamente contribuirão com suas vozes para reduzir a subordinação e dependência intelectual, política e econômica da nação. As candidaturas negras, por sua vez, estão salvando estas eleições do distanciamento da afirmação dos interesses nacionais. Certamente 56,2 por cento da população, os pretos e pardos, precisam ter seus interesses representados para que a democracia seja inclusiva. Sobretudo, o conjunto da nação brasileira merece que seus interesses sejam priorizados, tal que a nação seja o território autônomo de gerenciamento da riqueza de seus territórios e de expansão das potencialidades de seus povos.

[1] Sugiro a leitura de GONÇALVES, Ricardo Juozepavicius. A superioridade racial em Immanuel Kant: as justificações da dominação europeia e suas implicações na América Latina. Kínesis-Revista de Estudos dos Pós-Graduandos em Filosofia, 2015, 7.13: 179-195.

[2]   KANT, 2013a, p. 69-70; W VI, 28.

[3] 4 MENDONÇA, R. Não investir em ciência é investir em pobreza. Estado de Minas [on line], Minas Gerais, 15 set. 2022. Opinião, Disponível em: < www.em.com.br/opiniao/>. Acesso em 16 set. 2022

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DULCE PEREIRA Arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto, onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental. Primeira embaixadora negra do Brasil, foi secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi suplente do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e presidiu a Fundação Cultural Palmares. Mãe, feminista e ativista do Movimento Negro Unificado, integra várias redes nacionais e internacionais de pesquisadores e cientistas. Seu principal tema de estudos, nos anos mais recentes, têm sido as contaminações e desastres ambientais causados por rompimento de barragens.

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