Joanna Burigo
Publicado originalmente em Carta Capital – 23 de março de 2016 https://www.cartacapital.com.br/opiniao/feminismo-nao-e-opiniao/
Relacionamo-nos com a realidade através da seara do simbólico. Palavras, bandeiras e conceitos são frequentemente disputados e utilizados como representantes de verdades absolutas.
O pensamento feminista que informa minha práxis profissional busca evitar, a todo custo, quaisquer essencialismos, bem como fomentar o valor democrático da pluralidade de juízos.
Para muitas pessoas, tomar posicionamento discursivamente (em outras palavras: expressar seu posicionamento) acerca de ser feminista ou não, é algo difícil, justamente porque muitas não se sentem contemplada pelos discursos feministas que já estão disponíveis.
No entanto, apesar de suas múltiplas vertentes e correntes, o feminismo continua sendo o movimento que luta por equidade política, social e econômica, conforme ela é observada pelo viés das mulheres. Para isso, precisamos expor e revelar as instâncias onde estas desigualdades ocorrem – e, dado que nem toda injustiça procede da mesma forma para todos os grupos, inevitavelmente haverá divergências. Por causa disso, é importante nutrir a capacidade de reflexão para além de quaisquer essencialismos – e esta pode ser estimulada através do hábito dialético.
O que é a dialética? Em termos simples, é a arte do diálogo, ou da argumentação através do questionamento interativo. O hábito dialético fomenta a capacidade de distinguir os conceitos que perpassam uma discussão, para iluminá-la, e possibilita que argumentos sejam montados por meio do debate informado.
A dialética requer escuta generosa, sem a qual a interação perde o caráter dialógico para tornar-se nada além de dois monólogos concomitantes. Na dialética, com as interlocutoras devidamente engajadas no processo, contrapõem-se ideias para que, delas, sejam tirados novos entendimentos que expressem a validade, ou não, do que está sendo discutido.
Se um debate – qualquer debate – se propõe a caminhar em direção a uma verdade – qualquer verdade – qual interpretação dos termos que constituem tal verdade é a mais válida? O que acontece quando uma verdade que possa ser assimilada por posições interpretativas distintas não é engendrada? E quem tem o direito de definir do que consiste a verdade?
Especialistas são pessoas treinadas para uma atividade específica, e que detêm grande conhecimento, teórico ou prático, sobre esta atividade. Mas a dialética não requer que suas interlocutoras sejam especialistas no assunto em questão para funcionar. Basta estar aberta à multiplicidade interpretativa que cada debate engendra, e disposta a acreditar que a assimilação de teses divergentes possa produzir argumentos mais robustos.
Infelizmente, no calor de muitos debates – políticos, feministas, interpessoais – a dialética é esquecida, e discussões que poderiam ser elucidativas se transformam em fervorosos embates ideológicos. É na ausência de disposição para a dialética que se produz a polarização.
No debate, é fundamental que polarizações sejam desfeitas para que não se estabeleça o ódio à oponente. A capacidade de simpatizar com os argumentos apresentados pela outra, sem tornar esta outra em um ser abjeto, condiz com o ideal democrático.
A falta de empatia para com a posição da outra é fruto de uma falta de vontade, ou capacidade, de pensar para fora de nossas próprias impressões. É aqui que entramos na seara perigosa das opiniões.
A opinião de uma pessoa é aquilo que ela acredita ser verdadeiro. Opiniões representam as crenças ou atitudes de determinados indivíduos (ou grupos) em relação a quaisquer realidades.
Nossas vivências pessoais são subjetivas, e é um direito aplicar conhecimento empírico e experimental às grandes questões da existência. É desta ação que nascem as impressões que temos a respeito do que constitui nossas vidas. Acreditar piamente que o conhecimento empírico e experimental que nutrimos é suficiente para engendrar análises rigorosas a respeito do que vivemos é o que produz “opiniões”.
Ter uma impressão, ou uma opinião, a respeito de algum tema – por mais pautadas na vivência e na experiência subjetiva de cada uma que estas impressões e opiniões estejam, e por mais sentido que elas façam – não conta como análise.
Isso porque é preciso compreender que impressões e opiniões estão, necessariamente, restritas ao escopo das experiências pessoais. É por isso que impressões e opiniões, apesar de válidas, constituem apenas parte de qualquer discussão séria.
Aquelas que se engajam com um tema para aquém e além das impressões e opiniões pessoais, e aplicam métodos rigorosos de raciocínio crítico à dialética, têm o dever, numa discussão, de apontar que uma análise está mal articulada por ser pautada apenas em uma vivência particular. Isso não é arrogância. É método.
É válido opinar a partir de seu próprio entendimento, mas é igualmente recomendável que se esteja disposta a assimilar a multiplicidade de outros eixos interpretativos. Aplicar o entendimento oriundo das experiências pessoais ao conhecimento é importante, mas acreditar que são apenas as vivências pessoais o que determina e ilumina o debate acerca de um assunto é miopia.
Palavras-chave: simbólico, dialética, metodologia feminista, essencialismo, debate, opinião