Joanna Burigo
Publicado originalmente em Carta Capital – 18 de novembro de 2016. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-pos-verdade-e-a-persistencia-da-misoginia/
O Dicionário Oxford escolheu “pós-verdade” como o vocábulo de 2016. Segundo os linguistas da publicação, a expressão sintetiza os 12 meses inflamados por fenômenos políticos como o Brexit[1]e a eleição presidencial dos EUA – ambos marcados por mentiras proferidas por seus principais representantes, e disseminação desenfreada de notícias falsas nas redes – e reflete as tendências socioculturais e político-econômicas do ano. “Pós-verdade” talvez seja mesmo a expressão que melhor define a sensação de incredulidade diante do que testemunhamos no decorrer deste ano que ainda não acabou. Ainda vai levar um tempo para que a escalada conservadora que constituiu 2016 seja integralmente explicada e entendida, mas um elemento central a todos os debates sobre política naquele ano pode ser também uma chave para nosso entendimento acerca de questões comuns no processo de retrocesso que o Ocidente vem enfrentando até hoje. Este elemento é gênero.
A vitória de Donald Trump pelas mãos da maioria dos colegiados eleitorais frustrou a possibilidade de os EUA elegerem pela primeira vez uma mulher, Hillary Clinton, para presidente – e isso meses depois de a primeira presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, ter sido deposta de seu segundo mandato, para o qual havia sido eleita pelo voto popular. Apesar das diferenças entre um contexto e outro, o tratamento discursivo oferecido às duas, tanto na mídia quanto nos debates públicos, foi igualmente misógino. As linguagens oriundas das eleições americanas e do processo de impeachment de Rousseff revelam o quão arraigado o machismo ainda está na sociedade, o quanto ele constitui isso que chamamos de civilização.
Uma pesquisa da Harvard Kennedy School[2] confirmou que Clinton recebeu mais mídia negativa do que a soma de seus concorrentes, e muito dessa negatividade foi preenchida com misoginia. O próprio Trump chegou a chamá-la de “nasty woman” (“mulher maldita”) durante um debate. Essa misoginia também pôde ser verificada em discursos anti-Dilma, nos memes e capas de revista que destilavam o mais puro ódio ou desprezo pela figura feminina. Quem consegue esquecer os adesivos em protesto ao aumento do preço da gasolina, que poderiam constar num dicionário de imagens ao lado do vocábulo “cultura do estupro”? A tendência a um retorno da aceitabilidade acerca de um linguajar misógino não é exclusividade da política. Um estudo da Cambridge University Press publicadoapós as Olimpíadas do Rio 2016 revela atitudes semelhantes em relação às atletas. Segundo o relatório[3], o linguajar sobre as mulheres do contexto esportivo concentra-se, de forma desproporcional, em aparência, indumentárias e vidas pessoais, colocando mais ênfase em estética (e fofoca) do que em atletismo. A mensagem é praticamente a mesma: mulheres são bem aceitas ou não, em diferentes espaços, dependendo de uma combinação entre o espaço e padrões de feminilidade. No esporte, mulheres são bem aceitas como musas, mas nem tanto como atletas. Na política, como complementos decorativos e primeiras-damas, mas não como protagonistas ou agentes.
O simbólico afeta e molda o real, e se feministas falam tanto sobre violência simbólica é por sabermos que os xingamentos, imagens de um feminino pejorativo, cultura do estupro e feminicídio são facetas de da misoginia. O emprego de vocabulário misógino e o uso de violência simbólica são velhos conhecidos das mulheres, tão frequentemente ameaçadas ou cerceadas por eles. A eleição de Donald Trump nos EUA e, no Brasil, de Jair Bolsonaro, tiveram alguns efeitos semelhantes lá e cá. Liberar uma violência simbólica é liberar também violências materiais. É possível analisar objetivamente a simbologia com que Trump revelou sua misoginia, racismo e xenofobia, assim como é possível traçar uma série de violências de volta para elas. É uma questão de olhar os corpos, e contar os mortos.
Nos últimos vinte anos vimos um crescimento exponencial de adesão feminista e crescimento de mídias e outros projetos dedicados à equidade de gênero. Mais documentários tratam da temática, e filmes e seriados mudaram as formas como mulheres são escritas para narrativas audiovisuais. Nas ruas esse crescimento também foi notório, e a primavera feminista de 2015 no Brasil foi capa de revista. Na música – especialmente no universo pop onde as divas sempre tiveram proeminência – e muito graças à Beyoncé[4] – a cena é inclinada ao feminismo. A jornalista Susan Faludi chama de backlash as investidas contra o feminismo e as conquistas das mulheres, que visam interromper os avanços pelos quais trabalhamos antes mesmo que sejam atingidos. O backlash, assim, é um contra-ataque preventivo, organizado, e que postula a fonte dos problemas que afligem as mulheres são as mulheres. Esta onda conservadora não representa apenas o retorno do backlash, mas um acentuamento daquilo que simboliza retrocessos – e os próprios retrocessos. Em 2022, os “nerdolas” – como ficaram conhecidos os homens cis brancos que se chateiam com diversidade e pejorativamente chamam todas as representações não protagonizadas por homens cis brancos de “lacração”, até hoje se ofendem com elencos diversos.
O conceito de masculinidade hegemônica é parte de uma teoria geral da ordem de gênero proposta por R.W. Connell[5], e pode ser definido como qualquer que seja a configuração de práticas de masculinidade que legitimem a posição dominante dos homens na sociedade e justifiquem a subordinação das mulheres (todas as mulheres) e outras formas marginalizadas de ser um homem. É observável quando figuras que encarnam a masculinidade hegemônica descrita por Connell senta no troninho oficial do poder. Para Connell, a feminilidade é sempre organizada como uma adaptação ao poder dos homens, e é de interesse feminista a construção simbólica de feminilidades. No Brasil causou furor uma matéria veiculada na Revista Veja qualificando a então primeira-dama interina Marcela Temer como bela, recatada e do lar; dois anos após um firehosing de misoginia na política contra Dilma Roussef, e de repente surgiu uma narrativa aceitável para mulheres como objetos decorativos de políticos. O primeiro-damismo confirma a teoria de Connell: fomos colocadas de volta ao lugar discursivo das feminilidades submissas, do qual sequer tínhamos nos livrado.
Nos contextos das eleições norte-americanas – apesar da diferença de idade dos atores envolvidos ser praticamente a mesma – é a filha de Donald Trump, muito mais do que sua terceira esposa, quem encarna este papel, e de formas ainda mais coniventes com a noção da pós-verdade. Ivanka se posicionou durante toda a campanha como uma mãe que trabalha, e assim cativou os votos de uma fatia da população que viu em seu discurso de “empoderamento feminino” um passe para depositar o voto no papai misógino. Para a escritora Jessica Valenti isso foi devido ao fato de que, naquele momento, a compreensão mainstream do feminismo era menos sobre política e mais sobre a ideia nebulosa de “empoderamento”. Talvez isso ajude a explicar as tantas mulheres brancas que optaram por votar em Trump – mais da metade delas votou em um machista manifesto e amplamente acusado de estupro, o que é revoltante, mas nem tão surpreendente[6]. Este resultado ilustra magnificamente a necessidade urgente pela aplicação, na prática, de outro conceito: o feminismo interseccional, termo cunhado pela professora norte-americana Kimberlé Crenshaw para quem diferentes grupos e pessoas experimentam opressão em configurações variadas. Para Crenshaw, padrões culturais de opressão não apenas estão interligados, mas unidos e influenciados uns pelos outros – o que ela chama de “sistemas interseccionais da sociedade” – e exemplos deles incluem raça, gênero, classe, capacidades físicas/mentais e etnia. O machismo visível e mensurável, tanto na derrubada de Rousseff quanto na derrota de Clinton, foi amplamente denunciado, por elas e por muitas mulheres, e gênero vem sendo um fator crucial para a análise e os debates sobre política. O ano de 2016 ofereceu registros abundantes de valores patriarcais nos discursos que acompanharam as eleições presidenciais norte-americanas e o processo de impeachment da presidenta brasileira.
Palavras-chave: gênero, pós-verdade, masculinidade hegemônica, misoginia, Donald Trump, RW Connell
[1] Brexit foi como ficou conhecido o processo de saída do Reino Unido da União Europeia, determinado em 23 de junho de 2016.
[2] Pre-Primary News Coverage of the 2016 Presidential Race: Trump’s Rise, Sanders’ Emergence, Clinton’s Struggle. Thomas E. Patterson. 13 de junho de 2016. The Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy i, Harvard Kennedy School. Disponível no link
https://shorensteincenter.org/pre-primary-news-coverage-2016-trump-clinton-sanders/ em 14/09/2022.
[3] Language, Gender and Sport. Part of the Cambridge Papers in ELT series. Cambridge University Press (2016). Disponível em cambridge.org/betterlearing e no link https://www.cambridge.org/elt/blog/wp-content/uploads/2016/08/Cambridge_Papers_in_ELT_Language_Gender_and_Sport.pdf em 14/09/2022.
[4] Beyoncé usou um trecho do discurso “We Should All Be Feminists” (“Sejamos todos feministas”), proferido pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em uma conferência TEDxEuston, em sua canção ***Flawless, de 2016. A turnê subsequente abria com a palavra “Feminist” projetada no palco.
[5] Conceito explicado em Hegemonic Masculinity: Rethinking the Concept; R. W. Connell, James W. Messerschmidt. December 1, 2005. Disponível no link https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0891243205278639 em 14/09/2022.
[6] 62% das mulheres brancas sem educação superior votaram em Trump, enquanto 95% das mulheres negras também sem educação superior votaram em Hillary Clinton. 45% das mulheres brancas com educação superior votaram em Trump (e 51% em Hillary Clinton), enquanto 91% das mulheres negras com educação superior votaram em Hillary Clinton (e somente 6% em Trump). Fonte: Quartz, 9 de novembro de 2016. Disponível no link https://qz.com/833003/election-2016-all-women-voted-overwhelmingly-for-clinton-except-the-white-ones/ em 14/09/2022.