• O lobby do batom, para dar o nosso tom: a Constituição Federal de 2018

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1 de dezembro de 2023 por 

Schuma Schumaher

Publicado originalmente pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, em março de 2018.

Esse texto relata o processo de envolvimento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) – criado em 1985, no período de redemocratização da sociedade brasileira – da Bancada Feminina e os movimentos de mulheres e feminista na elaboração da Constituição Brasileira, outorgada em 1988. Em especial este texto revisita o Lobby do Batom, que, inicialmente, foi um apelido pejorativo dado por parlamentares, que estavam incomodados com a forte presença das mulheres nos corredores do Congresso Nacional. Porém, as feministas transformaram este apelido num instrumento de luta e lançaram diversas campanhas, dentre elas “Constituinte, as mulheres estão de olho em você!”. Após 30 (trinta) anos de aprovação da carta constitucional, estamos assistindo nossos direitos, conquistados, serem ameaçados pela onda conservadora instaurada no Congresso.

Palavras-Chave:

  1. Movimento de Mulheres, 2. Lobby do Batom, 3. Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 4. Constituição de 1988.

Tentando evitar o saudosismo, tarefa quase impossível para quem participou do grupo que propôs e acompanhou de perto a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 1985, além de ter feito parte de sua equipe, na primeira gestão e ter sido uma das coordenadoras do lobby do batom, relembrarei o processo de envolvimento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), Bancada Feminina e os movimentos de mulheres e feminista na elaboração da Constituição brasileira.

A história do CNDM, o envolvimento das mulheres/feministas no processo constituinte e o Lobby do Batom, têm sido contados de muitas maneiras, por muitas mulheres. Nesta seção tão especial, peço licença para relembrar, como numa viagem ao passado, a potência dos movimentos feministas e sua relação com o Estado brasileiro, através do CNDM e vice versa.

Em novembro de 1985, quatro meses após sua criação, o CNDM lançou a Campanha “Constituinte sem mulher fica pela metade”, que tinha o propósito de ampliar a representação feminina no Congresso Constituinte (naquele momento representado por apenas 08 deputadas federais), debater a situação jurídica da mulher e incentivar sua participação no processo de formulação da nova Constituição Brasileira.

Depois do impacto que a Campanha causou ao ser lançada no Ministério da Justiça, com a presença de representantes dos diferentes grupos feministas e de mulheres, era preciso enraizá-la, pulverizá-la.

Muitas de nós, da equipe do CNDM[1], viramos peregrinas. Visitamos todos os estados, discutimos com as organizações feministas, grupos de mulheres, conselhos dos direitos das mulheres e lideranças locais, divulgando a campanha, estimulando o debate, defendendo a ampliação de candidaturas femininas, a participação no processo eleitoral e, posteriormente, no processo constituinte.

Paralelamente, o CNDM investiu numa campanha publicitária que incluía TV, outdoors, publicações, e outros recursos de comunicação e, organizou em todo país, encontros e seminários para discussão e formulação de propostas, culminando na realização de um Encontro Nacional, em agosto de 1986, que elaborou e aprovou a Carta das Mulheres aos Constituintes e lançou a segunda fase da campanha: “Constituinte prá valer tem que ter direitos da mulher”.

Nas eleições de 1986, a representação feminina no Congresso Nacional foi mais que triplicada, passando de 08 (oito) deputadas federais para 26 (vinte e seis) deputadas constituintes[2], num total de 559 parlamentares eleitos. Numa forte conjugação de objetivos comuns, o CNDM, centenas de grupos de mulheres, conselhos, sindicatos e a bancada Feminina, juntaram esforços para que as propostas contidas na Carta das Brasileiras fossem incorporadas na nova Constituição que estava sendo elaborada.

E assim, o CNDM, defendeu propostas feministas no Congresso Nacional -, algumas contra o próprio governo do qual fazia parte, como a licença maternidade de 120 dias e a legalização do aborto, entre outras.

A Carta das Brasileiras foi entregue solenemente ao Presidente do Congresso, deputado Ulisses Guimarães, em 26 de março de 1987, e depois, lançada em todas as Assembleias Legislativas Estaduais de maneira a evidenciar a organização articulada das mulheres e o caráter nacional de suas propostas. Estava dada a largada. A estratégia passava a ser, então, visitar gabinete por gabinete e tentar convencer os deputados e senadores da legitimidade e importância das reivindicações das mulheres.

Assim, todos os dias, um grupo de mulheres percorriam as 24 Subcomissões reunidas no Congresso a fim de acompanhar e incidir nas propostas que estavam sendo discutidas. “O que estão querendo as mulheres?”, provavelmente pensaram alguns deputados que se apressaram em tentar desvalorizar o trabalho do Grupo, chamando-as de “Lobby do Batom”.

Mas nós não nos intimidamos e nem perdemos o humor com essa provocação. Conseguimos transformar, estrategicamente, aquilo que pretendia ser uma afronta em mais um elemento da mobilização e força política das mulheres e da bancada feminina. O apelido foi parar nos jornais, mas não com a conotação pejorativa dos que subestimavam a força e a organização das mulheres.

Daí nasceu forte e decisivo o Lobby do Batom. Impossível dizer sua composição e seus limites, em número de pessoas. Todo mundo ajudava a telefonar, consultar, contatar, redigir, reproduzir, expedir, visitar gabinetes e persuadir indecisos. No Congresso até o mais distante dos parlamentares esbarrava no recado: Constituinte, as mulheres estão de olho em você !!!

A maioria das propostas contida na Carta das Mulheres na área da Família e da Saúde foi:

  • Explicitar no texto constitucional a igualdade entre homens e mulheres perante a lei.
  • Garantia de mecanismos que coíbam a violência doméstica.
  • Garantia de mecanismos que coíbam a discriminação étnica/racial.
  • Licença maternidade de 120 dias.
  • Licença Paternidade de 08 dias.
  • Direito à posse da terra ao homem e a mulher, independente do estado civil.
  • Igualdade de direitos e de salários entre homem e mulher.
  • Garantia de direitos e benefícios às trabalhadoras rurais.
  • Igualdade na sociedade conjugal.
  • Ampliação do conceito de família, que não deve mais estar atrelado exclusivamente ao casamento.
  • Reconhecimento da união estável como entidade familiar.
  • Direitos trabalhistas e previdenciários extensivos às trabalhadoras domésticas.
  • Creches no local de trabalho e moradia, de 0 a 06 anos.
  • Saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
  • Não discriminação por Orientação Sexual.

As integrantes do CNDM, a Bancada Feminina do Congresso Nacional e lideranças de inúmeras organizações de mulheres participaram de todas as etapas do processo constitucional, nas subcomissões, nas comissões temáticas, na apresentação de emendas, na análise dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do projeto final.

A Bancada Evangélica, que naquele momento era composta por 34 parlamentares, somaram forças contra o “suave” avanço incluído no relatório do senador José Paulo Bisol, que dizia: “a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebeu, é responsabilidade da mulher, comporta expectativa de direitos e será protegida por lei”. Nem esse, nem outros artigos foram incluídos no texto final.

No entanto, a igreja católica resolveu investir numa Consulta Popular – permitida no processo constituinte –, sobre a penalização do aborto em qualquer circunstância. Como resistência o movimento feminista também lançou sua consulta[3] em favor do direito das mulheres decidirem sobre a interrupção da gravidez indesejada, ou seja, o direito ao aborto. Esgotado o prazo, as duas emendas – uma favorável e outra contra o aborto –, foram entregues no Congresso Nacional. Diante do impasse e muito lobby, conseguimos manter esse assunto fora do texto constitucional.

Registram-se dois grandes embates travados nas Comissões Temáticas[4] da Câmara no que diz respeito à autonomia das mulheres: um referente ao direito ao aborto e outro, que era garantir explicitamente no texto, a proibição da discriminação em razão da orientação sexual. Embora essa demanda tenha sido pautada pelos movimentos LGBTs e apoiada pelos movimentos de mulheres, também não foi incorporada por pressão dos parlamentares conservadores[5].

Diante da polêmica instalada no Congresso e na sociedade, a Equipe do CNDM e a Bancada Feminina avaliaram que era minoritário o grupo de parlamentares que defendiam a descriminalização do aborto, não havendo consenso nem mesmo na Bancada das Mulheres. Considerando o contexto desfavorável e as ameaças de retrocessos, os movimentos de mulheres, feministas, parlamentares e o CNDM consideraram mais prudente deixar esse assunto para o Código Penal.

Vitória das Mulheres

O CNDM, atuando em nome dos movimentos de mulheres, apresentou nove emendas ao texto da Comissão de Sistematização[6], defendendo teses feministas. Conseguimos incluir no Relatório propostas que oferecem às mulheres plena igualdade ao pátrio poder, punem a violência doméstica do homem contra a mulher, ampliação da licença maternidade para 120 dias e estabilidade no emprego até 180 dias pós-parto, determinação livre e soberana do casal sobre o número de filhos que deseja ter, barrando qualquer pretensão de controle de natalidade.

Realizamos várias manifestações e vigília para acompanhar a votação final. Mantivemos um canal permanente com os Conselhos, com os grupos de mulheres nos estados, as categorias profissionais específicas, como as trabalhadoras domésticas e rurais, como as mulheres negras, indígenas, lésbicas, informando do andamento das propostas e transformando-se em um verdadeiro lobby nacional – o lobby do batom -, considerado um dos dois maiores grupos da sociedade civil, organizados na Constituinte. Cabe destacar que 85% das propostas, da Carta das Mulheres, foram incorporadas no texto final.

A interação do CNDM com a Bancada Feminina era tão grande e colaborativa que a apresentação das emendas (muitas preparadas pelo próprio CNDM) era feita de maneira coletiva. Quando uma deputada constituinte apresentava uma proposta/emenda, várias assinavam em grupo, sinalizando a estratégia colaborativa de fazer avançar nossos direitos. A cumplicidade, o compromisso com a agenda feminista e pautas mais progressistas fizeram com que muitas deputadas constituintes se rebelassem contra suas cúpulas partidárias, por defenderem posições consideradas avançadas para os partidos aos quais pertenciam chamadas por eles de “xiitas” da Constituinte – especialmente Wilma Maia e Miriam Portela (PDS), Maria de Lourdes Abadia e Raquel Cândido (PFL).

Transcorridas três décadas em que a Carta Magna do país afirma de maneira igualitária a cidadania de mulheres e homens, muitos artigos – aproximadamente 20% deles –, ainda hoje, não estão regulamentados e, portanto, permanecem sem aplicação prática. Infelizmente, outros estão sendo ameaçados por deputados conservadores e fundamentalistas que insistem em controlar o corpo e a autonomia das mulheres.

Para as mulheres, o exercício pleno da cidadania significa o direito à representação, à voz, e à vez na vida pública, mas implica, ao mesmo tempo, a dignidade na vida cotidiana, que a legislação pode inspirar e deve assegurar.


[1]Comunicação apresentada na Reunião “Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes – Comemoração ao Dia Internacional da Mulher”, realizada no dia 09 de março de 2018, das 09h às 17h, na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, no auditório Des. Paulo Roberto Leite Ventura, situado na Rua Dom Manuel nº 25 – 1º andar – Centro – Rio de Janeiro.

[2]Schuma Schumaher é feminista, escritora, foi uma das Coordenadoras do Lobby do Batom durante o processo Constituinte. Atualmente é Coordenadora Executiva da Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano e integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).

[1]Equipe do CNDM diretamente envolvida no processo constituinte: Ana Liege, Ana Maria Wilhein, Celina Albano, Comba Marques Porto, Gilda Cabral, Guacira Cesar, Iaris Cortes, Jacqueline Pitanguy, Lélia Gonzalez, Madalena Brandão, Marlene Libardoni, Maria Luiza Heilborn, Marilena Chiarelli, Malô Simões, Nair Guedes, Nilce Gomes de Souza, Ruth Escobar, Silvia Caetano, Schuma Schumaher, Sueli Carneiro, Zuleide Teixeira, Tania Fusco, dentre outras.

[2]Abigail Feitosa (PMDB/Bahia), Anna Maria Rattes (PMDB/RJ), Benedita da Silva (PT/RJ), Beth Mendes (PMDB/SP), Cristina Tavares (PMDB/PE), Elizabeth Azize (PSB/Amazonas), Eunice Michiles (PFL/AM), Irma Passoni (PT/SP), Lídice da Mata (PCdoB/Bahia), Lucia Braga (PFL/PB), Lucia Vania Costa (PMDB/GO), Marcia Kubistchek (PMDB/DF), Maria de Lourdes Abadia (PFL/DF), Maria Lucia Araújo (PMDB/AC), Marluce Moreira Pinto (PTB/RR), Miriam Portela (PDS/PI), Moema Santiago (PDT/Ceará), Raquel Cândido (PFL/RO), Raquel Capiberibe (PMDB/Amapá), Rita Furtado (PFL/RO), Sadie Havache (PFL/AM), Sandra Cavalcanti (PFL/RJ), Rita Camata (PMDB/ES), Rose de Freitas (PMDB/ES), Wilma Maia (PDS/RN), Tutu Quadros (PTB/SP).

[3]Consulta Popular sobre o Aborto (Prazo para entrega das emendas foi  até 01 de junho de 1987).

[4]08 Comissões Temáticas: Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher, Comissão da Família, da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia e da Comunicação, Comissão da Ordem Econômica, Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, Comissão da Ordem Social, Comissão da Organização dos Poderes e Comissão da Organização do Estado.

[5]Para saber mais: Relatório Senador João Paulo Bisol sobre a inclusão do respeito à orientação sexual e a retirada do mesmo do texto, após muita pressão: Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/129693/junho87%20-%200419.pdf?sequence=1, acesso em 15 março 2018.

[6]Comissão de Sistematização – Responsável pela redação final do Texto Constitucional – a partir dos relatórios das 08 (oito) comissões temáticas. Sua composição era de 93 parlamentares, basicamente homens, brancos, com curso superior, média de 50 anos de idade e 43% considerados progressistas. Dentre eles apenas três mulheres: as deputadas Abigail Feitosa, Cristina Tavares, Sandra Cavalcanti.