Thais Corral
Publicado originalmente no Encontro Internacional Mulheres, Democracia e Direitos Humanos num Mundo Interdependente – 4-7 de abril – Lisboa, organizado pelo Centro Norte Sul. Contém ideias que foram discutidas pelo Grupo de Trabalho Internacional TERRA FEMINA que se reuniu em Sintra em Janeiro deste ano.
O enfoque de interdependência ao se tratar as questões de direitos humanos e democracia é de indiscutível importância. Talvez esta tenha sido a grande contribuição que a abordagem ecológica trouxe à análise dos problemas. As interconexões entre as questões globais e locais, entre o micro e macro e entre os polos – desenvolvimento/ subdesenvolvimento, homem/mulher, racional/emocional permite resgatar as contradições do sistema e a raiz das transgressões aos direitos humanos e à democracia.
A principal dessas transgressões reside na unilateralidade da civilização moderna que impôs para todos os seres humanos a hegemonia de um único sexo, de uma única raça, de uma única ciência e forma de conhecimento. Debater direitos humanos e democracia requer hoje o questionamento da base de pressupostos e valores dessa cultura. Pois faz parte da essência dessa modernidade o processo de globalização desse sistema de valores.
Muito claramente neste momento histórico que antecipa o próximo milênio vem à luz as contradições do próprio sistema, revelando que sem uma radical mudança do paradigma vigente não será possível alcançar nossos ideais humanos ou muito provavelmente não será possível nem mesmo sobreviver. A força
dos mitos que nos seduziram volta-se contra nós com a violência de um boomerang. O maior deles, o conceito de desenvolvimento determinado fundamentalmente pelo crescimento econômico trouxe como consequência degradação ambiental, concentração da riqueza e consequentemente aumento da pobreza. Aumentou também o fosso entre o norte e o sul. O avanço tecnológico sofisticou as armas de dominação bélica e de controle econômico de uns países sobre outros. A participação das mulheres no espaço público, embora seja de grande importância, nos possibilita hoje muitas reflexões sobre o preço que pagamos para sentirmo-nos incluídas no mundo da racionalidade, do mecanicismo. No mundo masculino.
Esse ponto nos leva a um elemento chave pois o mais importante e fundamental direito humano é o direito de existir . Fazer-se presentes. Dar expressão e visibilidade à própria história, cultura e experiência de vida. Nesse contexto a emergência do movimento de libertação das mulheres, dos indígenas, dos negros (as), de outras culturas periféricas enfrentam hoje o desafio de possibilitar à humanidade o retorno a diversidade.
No caso das mulheres, essa libertação se traduz na abolição das diversas formas de violência de que as mulheres continuam sendo vítimas. Mas implica sobretudo na possibilidade de contribuir para uma nova sociedade à Iuz de valores e experiências próprias.
Embora algumas mulheres tenham tido nas últimas duas décadas acesso às esferas de poder, o número insignificante de mulheres comprometidas como uma mudança mais profunda das estruturas hierárquicas e dos valores que as sustém, não possibilitou a transformação dos mecanismos que nas mais diversas esferas da vida humana continuam negando às mulheres e a outros seres humanos os mais básicos direitos. os percentuais das Nações Unidas são bem ilustrativos nesse sentido: as mulheres representam 57% da população mundial, são responsáveis por 66% das horas trabalhadas ganhando menos que 10% da renda mundial e são proprietárias de apenas 1% da propriedade.
Além da pobreza, do exílio geográfico e cultural de que são vítimas de milhões de mulheres, há algumas experiências que mostram como as mulheres, através de seu corpo, continuam sendo utilizadas na solução de conflitos e impasses inerentes ao sistema dominante.
A violência sexual contra as mulheres muçulmanas na ex-Iugoslávia expressa o lugar que é dado às mulheres na cultura patriarcal. Os 2O mil estupros feitos com requintes de crueldade e horror fazem parte da estratégia expansionistas dos sérvios nos territórios ocupados.
Embora sejam conhecidos os casos de violência sexual em situações de guerra, o Protocolo da Convenção de Refugiados não reconhece o direito de asilo às vítimas desse tipo de crimes, por desconsiderá-Ios. Corinne Kumar, pacifista, feminista da Índia, faz notar que na realidade no discurso tradicional dos direitos
humanos não há lugar para as mulheres. O próprio conceito de “Direitos Humanos” foi gerado no contexto de uma visão de mundo que relega as mulheres à esfera do privado, portanto esse tipo de abusos exercidos contra as mulheres são entendidos como questões domésticas ou violência pessoal. Crimes como estes até bem pouco tempo não tinham dimensão pública ou significado político.
O aspecto da procriação, especificidade biológica das mulheres, representa uma outra esfera de abusos enraizada na cultura dominante. Desde a inquisição, na Idade Média, quando foi determinada a tortura e norte de centenas de mulheres que detinham conhecimentos sobre a contracepção e sobre o parto, que essa vem sendo uma área de controle estratégico do patriarcado. Sabemos que a milhares de mulheres é negado o acesso a meios contraceptivos seguros, é negado o direito a interrupção da gravidez e à própria dimensão vital da sexualidade.
Curiosamente o número das gentes e portanto, a capacidade de reprodução das mulheres é sempre o argumento utilizado quando o sistema enfrenta um impasse. A utilização que tem sido feita da questão populacional em relação à problemática ambiental é bastante reveladora. Durante todo o processo da UNCED e nos preparativos que antecedem a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento a ser realizada no Cairo em 1994, a
visão corrente nos documentos oficiais ê de que a principal ameaça ao meio-ambiente reside no crescimento desmesurado da população, sobretudo dos pobres que vivem no SuI. No contexto desse mesmo discurso as recomendações falam “em melhorar o status das mulheres”.
Essa melhoria do status das mulheres, frequente nos discursos de instituições como o Banco Mundial, da USAID e do Iobby de população norte-americano é explicitamente apontado como um meio para se alcançar sobretudo a eficácia dos programas de planejamento familiar e diminuir, portanto, as taxas de fecundidade.
Nosso país oferece um bom exemplo em termos das consequências advindas desse tipo de proposta. No final dos anos 60 sob o pretexto de que era preciso diminuir a taxa da natalidade para erradicar a pobreza no Brasil, agências internacionais contaram com a anuência tácita do governo e investiram milhões de dólares num irresponsável programa de controle populacional que deixou a terrível marca de 16 milhões de mulheres esterilizadas, fazendo desse o método mais utilizado para controlar a natalidade.
Em verdade, os verdadeiros motivos que levaram as instituições norte-americanas a fazer esses investimentos milionários num programa de planejamento familiar no Brasil estão contidos num documento secreto do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos datado de t974, recentemente desarquivado. O conselho argumentava que uma população menor significaria mais recursos minerais exportados para os países desenvolvidos.
Muito embora a taxa de crescimento populacional brasileira tenha se reduzido à metade nas últimas duas décadas, tanto os problemas sociais quanto os problemas ambientais se agravaram, mostrando que são muito mais fruto das distorções provocadas pelo paradigma vigente do que por um simples jogo de sornar ou subtrair cifras humanas.
Vale à pena lembrar que da mesma forma que as instituições internacionais cada vez mais incluem nos planos de ajuste estrutural da dívida externa metas de controle demográfico para países do Sul, nos países desenvolvidos do Norte os governos instaurar políticas de incentivo às taxas de natalidade atualmente a níveis negativos. Os dois lados da moeda dessas políticas mostram muito claramente que o velho lema que uniu o movimento feminista no início dos anos 60: “nosso corpo nos pertence” está longe de se expressar na realidade.
O corpo das mulheres constitui-se ainda na última colônia em que se desdobra o sistema industriar moderno de produção. As mulheres da mesma forma que a natureza nas colônias são o úItimo elo da corrente cuja relação de apropriação como diz Maria Mies é caracterizada por roubo e pela expropriação. Segundo Maria Mies essa violência contra os colonizados aumentará na medida em que se acirrem as contradições do sistema.
O APORTE DAS MULHERES AO NOVO PARADIGMA
Há sinais de esperança no cenário caótico que vivenciamos. Ousaria mesmo dizer que enquanto mulheres, sujeitos sociais portadores de “outros” valores, provenientes de uma outra experiência, temos obtido interlocução e espaço de expressão. Há algumas pistas da nossa experiência recente que podem. ser consideradas.
Um dos impasses mais alarmantes da nossa realidade é a constatação de que na medida em que as sociedades se desenvolvem a qualidade de vida piora. Talvez uma afirmação tão categórica seja exagerada, mas hoje nos grandes centros urbanos, baluardes da modernidade, as pessoas são vitimas do stress, da solidão, da violência, da miséria e até mesmo da carência dos recursos naturais mais essenciais como ar puro, água potável. qualidade de vida tornou-se um ideal tão raro que hoje ou vale muito caro e só os ricos têm acesso, ou faz parte do patrimônio dos poucos (as) que conseguiram manter-se “fora” desse desenvolvimento.
A ecofeminista indiana Vandana Shiva costuma lembrar os movimentos nas comunidades da Índia que resistem ao desenvolvimento. Pois sabem que irá significar a destruição da cultura e das bases naturais de sobrevivência.
As mulheres trazem de sua experiência secular na esfera privada do doméstico, onde em essência a vida se reproduz, a sensibilidade inata para os valores e os elementos que contam para a manutenção e regeneração da vida, valores que em última análise estão na base do projeto possível do humano.
No movimento ecológico mundial se constata que embora os homens ocupem os postos de destaque nos espaços institucionais, as mulheres destacam-se como a grande maioria nos movimentos de base de resistência e luta pela não destruição e preservação dos recursos naturais, fonte da vida.
As mulheres são também presença majoritária nos movimentos pacifistas, contra a corrida armamentista e nuclear. Destacam-se na resistência ao desenvolvimento de algumas tecnologias que na opinião de muitas de nós representam o aspecto mais arriscado do projeto patriarcal: as novas tecnologias da reprodução e a biotecnologia moderna.
Essas tecnologias trazem imbuídas um projeto de colonização da vida na sua essência mais intima. O controle do código genético dos seres vivos, a busca da manipulação são totalmente coerentes com o projeto patriarcal. Além dos aspectos éticos e filosóficos que o desenvolvimento dessas tecnologias envolve ao arriscar a desorientação por completo do próprio eixo da civilização, há ainda a acrescentar que serve a um projeto econômico de mercantilização “comodificação” de todas as formas de vida.
Muitos grupos de mulheres dizem não a esse “desvio” do projeto civilizatório. A noção dos limites éticos e até mesmo humana vem sendo levantado pelas mulheres.
Em duas ocasiões recentes, um grande contingente de mulheres representando todos os países, movimentos, setores sociais, demonstrou que temos propostas e não aceitamos mais a condição de seguir o rastro de um projeto que já se sabe fracassado. Em novembro de 1991, em Miami, 1100 mulheres aclamaram uma proposta de Agenda 21 contendo a visão das mulheres. Essa agenda foi depois discutida e desdobrada num plano de ações durante o evento que mulheres do mundo inteiro promoveram no Fórum GIobaI – espaço paralelo de manifestação da sociedade civil na ECO-92.
A Agenda 21 de Ação das mulheres levanta questionamentos sobre pontos hoje cruciais no processo de desenvolvimento e nos destinos das sociedades. Fala em Diversidade e Solidariedade, na Divida Externa e nos Mecanismos de Ajuste. Estabelece paralelos entre os mitos da Biotecnologia e conceito da Biodiversidade. Denuncia as aberrações e consequências da corrida armamentista e do militarismo. Às contradições e riscos da transferência de tecnologia do Norte para o Sul. Aponta o poder das mulheres em estabelecer um movimento de libertação do consumo. o papel das mulheres enquanto agricultoras, guardiãs da terra.
Longe dos compromissos oficiais, ao estarem mal representadas nas delegações oficiais que discutiram durante 12 dias no Rio de Janeiro os destinos da humanidade. Às mulheres falaram de um outro lugar, falaram do lugar da emoção, falaram através da linguagem que conhecem, a da alegria e da própria
vivência. A participação das mulheres na ECO-92 representou um marco: as mulheres falaram de seu lugar de mulheres para o mundo. Um novo tempo se prospecta no horizonte.
Esse tempo já começou e por isso estamos aqui, revisando conceitos e propostas que o projeto masculino elaborou. para atender as transformações desse momento faz-se neces3ária uma nova geração de direitos humanos. Um novo conceito de democracia, que desloque a atenção da garantia apenas dos direitos dos poderosos para ouvir as vozes daqueles que não compartilham esse poder. Como diz Corinne Kumar o momento requer uma mudança de olhar. Estamos falando do olhar dos marginalizados do olhar dos que estão ao sul do Sul, dos que estão no Sul do Norte. O olhar das mulheres.