• O passado se faz presente

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1 de dezembro de 2023 por 

Schuma Schumaher

Publicado originalmente no livro “Século XX – A Mulher Conquista o Brasil”, Org. Leonel Kaz e Nigge Loddi, Aprazível Edições, RJ, dezembro de 2006.

Um casal de adolescentes levanta-se da areia. Menino e menina erguem cada um a sua prancha de surf e entram no mar. Nas ruas de qualquer grande metrópole ocidental, executivas impecáveis em seus terninhos acenam, apressadas, para um táxi. O automóvel, que pode estar sendo dirigido por uma mulher, avança em direção a um restaurante para um almoço de negócios. Da garçonete a chefe de cozinha, as mulheres podem estar em qualquer lugar. No mundo do trabalho, nos bares, nas calçadas, nas escolas, nas ruas, elas hoje exercem plenamente seus direitos, resultado de lutas históricas. Do sufragismo à transformação das relações entre homens e mulheres, do direito ao estudo ao ingresso do mercado de trabalho, da maternidade como única possibilidade de realização às séries de TV sobre o universo das lésbicas, da retirada do útero das histéricas à liberdade sexual, a irrevogável insurreição feminina começou tímida, no século XIX, para mudar o curso da História ao longo do século XX.

Desde a antiguidade a mulher tem sido vista – e apresentada – como ser inferior. Aristóteles a definia pela carência de certas qualidades, portadora de uma espécie de “deficiência natural”. Para São Tomás de Aquino, a mulher era um homem incompleto. O Gênesis a registra como aquela que, tendo sido extraída do homem, o induziu ao pecado. A não obediência às rigorosas condutas comportamentais levou milhares delas à fogueira, durante a Idade Média. A Inquisição cometeu crimes silenciosos e permitidos. Joana D’Arc foi um símbolo dessa perseguição.

No entanto, em todos os tempos a mulher compartilhou com o homem o esforço para prover a subsistência da família, dominar a natureza e extrair dela condições de vida. Apesar dessa presença significativa, seu trabalho não era considerado nem valorizado. Ser político, militar, herói, religioso ou condutor dos destinos da sociedade era atividade exclusivamente masculina. Às mulheres, reservava-se papel secundário, caudatário, serviçal, à margem da História. A divisão do trabalho entre os sexos deixava sempre a seu cargo os cuidados com a casa, os filhos e a alimentação.

Comemorar as conquistas e avanços de hoje é reconhecer que a história das mulheres se confunde com a das lutas feministas. Seja de forma organizada e coletiva, seja individualmente, foram inúmeras as mulheres que contribuíram para a construção da condição feminina atual. As índias, ao enfrentar a violência dos colonizadores; as negras rebeladas contra a escravidão; as brancas, na ruptura com as limitações do mundo privado para conquistar direitos de cidadania e voz no mundo público.

Um olhar sobre o passado revela que há muito a desvendar, especialmente sobre índias e negras. A história oficial ignorou suas culturas, forma de mistificá-las como amantes ou amas de leite, o que ofuscou suas reações aos conquistadores e aos açoites. Bravas índias e negras tiveram papel fundamental contra a dizimação de seus povos e na organização da resistência contra a escravidão.   

No final do século XVIII, o avanço das tropas napoleônicas em direção a Portugal mudaria definitivamente os rumos da história nos trópicos. Quando, em 1808, a família real portuguesa veio viver no Brasil, as principais cidades brasileiras passaram por rápida evolução cultural, mas só o costume de reservar às mulheres o confinamento aos lares e à vida familiar não mudou. Os representantes da nobreza, da corte e da criadagem passaram a formar a sede do Império português, causando profundo impacto nos padrões de comportamento da elite e influenciou fortes mudanças políticas e sociais. Neste período, a população era estimada em quatro milhões de habitantes.

Até então, o privilégio do acesso aos cargos públicos e ao ensino era dos homens. Em 1809 foi criado um dos primeiros colégios para meninas de elite. Os ensinamentos consistiam em boas maneiras, trabalhos manuais, noções de francês, rudimentos de músicas e declamações, visando preparar as garotas para a vida dos salões e para a maternidade. Em geral ligados aos conventos, os colégios também ensinavam a rezar para afastar os “maus pensamentos”. Na primeira escola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram admitidas matrículas de moças. Manter meninas e escravos no berço da ignorância justificava-se com preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe latim não tem marido e nem bom fim” e “Escravos que sabem ler acabam querendo mais do que comer”. 

A produção jornalística e literária das brasileiras mantinha-se confinada às páginas dos diários secretos. Poesias assinadas por mulheres raramente eram publicadas – a literatura era ofício dos homens. Indignadas, algumas corajosas pioneiras dispuseram seus talentos, suas inteligências e criatividade para desafiar o conservadorismo de sua época. As primeiras vozes levantadas timidamente no acaso do século XIX levaram a uma irretoagível insurreição feminina.

Nísia Floresta, intelectual nascida no Rio Grande do Norte, é personagem marcante desses tempos. Escrevia sobre a escravidão, o sofrimento dos índios e a qualidade do ensino. Mas escrevia acima de tudo sobre a mulher. Suas idéias contestatórias foram publicadas no jornal pernambucano Espelho das Brasileiras, em 1931. Os textos de Nísia afirmavam que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma educação plena. Em 1832, lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, tradução adaptada à realidade brasileira do livro Vindicatios of the Rights of Woman, da inglesa Mary Wollstonecraft. A defesa da emancipação feminina através da educação a levou a fundar um colégio para meninas com proposta curricular avançada, tornando-se precursora dos ideais de igualdade e autonomia da mulher brasileira.

Úrsula, escrito pela negra maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859, é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mulher. Foi em São Luís que Maria Firmina fundou uma escola mista e gratuita para crianças pobres – iniciativa considera ousada para a época – , na qual lecionou até aposentar-se, em 1881.

Nas últimas décadas do século XVIII as publicações escritas e dirigidas por mulheres tratavam dos mais variados assuntos e alcançavam um diversificado público leitor. Um traço comum à imprensa feminina era não se ater apenas aos temas da culinária, da etiqueta e da moda. Os jornais para o público feminino mesclavam reflexões sobre assuntos fervilhantes, ousando defender a abolição da escravatura, a queda da monarquia, o acesso das mulheres as universidades, o divórcio e o direito ao voto. 

Crítica da sociedade de seu tempo, Júlia Lopes de Almeida, como outras mulheres da sua geração, respondeu com criatividade à resistência que encontrou no exercício do jornalismo e da literatura, escrevendo sempre sobre assuntos voltados para o público feminino. Na França, um surto de literatura feminina criou no Brasil – cuja cultura era profundamente influenciada pela francesa – o ambiente favorável ao trabalho das escritoras brasileiras que, gradativamente, foram enveredando por temas polêmicos, além dos textos dedicados às mães e esposas. O marco do sucesso de Júlia, no entanto, foi O livro das noivas, escrito em 1896. Passado de mãe para filha durante décadas, o livro tratava dos “mistérios do casamento” e foi incorporado ao cotidiano de gerações de brasileiras.

De todas as lutas enfrentadas pelas mulheres para conquistar o acesso à educação, o ingresso nos cursos superiores representou a mais difícil batalha. Em 1875, Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira que, embora aptas, tinham sido recusadas no curso de Medicina, decidiram “exilar-se” nos Estados Unidos para seguir sua vocação. A decisão ganhou grande repercussão na imprensa, que acompanhou passo a passo a trajetória delas em terras norte-americanas através da publicação A Mulher, produzida por ambas e distribuída periodicamente aos principais jornais do Brasil.

Eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obrigadas a esperar até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e permitiu, condicionalmente, a entrada das mulheres nas faculdades. Entretanto, as solteiras deveriam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimento escrito por seus maridos.

Voto feminino, condição para democracia

As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de 1891, não chegavam a mencionar as mulheres no rol dos excluídos ao voto. Ainda assim, foram mais de 40 anos de luta para conquistar esse direito.  Dois episódios ilustram as resistências encontradas pelas mulheres.

Em 1885, a cirurgiã-dentista gaúcha Isabel de Souza Matos requereu seu alistamento eleitoral. O pedido estava amparado na Lei Saraiva, que garantia o direito de voto aos portadores de títulos científicos. Isabel só conseguiu ganhar a demanda judicial em segunda instância. Com o advento da República e a convocação de eleições para a Assembléia Constituinte, ela, então moradora do Rio de Janeiro, procurou a comissão de alistamento eleitoral para fazer valer sua conquista. A comissão pediu parecer ao Ministério do Interior, do qual partiu negativa contundente – a reivindicação foi julgada improcedente.

A segunda iniciativa foi de outra Isabel, baiana e de sobrenome Dilon. Sob o argumento de que a lei eleitoral vigente assegurava o voto aos maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, sem referência explícita ao sexo do eleitor, ela se apresentou como candidata a deputada na Constituinte de 1891. Primeira mulher na história a reivindicar esse direito, Isabel tornou pública sua candidatura com o compromisso de defender a ampla liberdade de credo religioso e pensamento e a aprovação de leis que protegessem a criança, a mulher e o operariado nascente. Vetada, não conseguiu nem sequer se alistar para votar.   

A nova geração de feministas recepcionou a chegada do século XX trazendo na bagagem algumas conquistas e, sobretudo, o justo desejo de serem cidadãs por inteiro.  Influenciadas pelo avanço das mulheres em alguns cenários internacionais, elas tentavam popularizar suas reivindicações. Nas primeiras décadas do século, conviveram com os movimentos de esquerda emergentes e com as primeiras greves operárias.

Às lutas pelo sufrágio somaram-se novas causas. As mulheres enfrentavam os preconceitos da vida social e política brasileira. Em 1910, Leolinda de Figueiredo Daltro ocupou ousadamente a cena pública por suas idéias vanguardistas em defesa das mulheres e dos índios. Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio de Janeiro o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mulheres pelo direito ao voto. Contou com o apoio da primeira-dama Orsina da Fonseca e da poetisa Gilka Machado que, ao lado de outras cariocas, tomaram as ruas da cidade numa marcha memorável.

A proteção à maternidade e à infância torna-se tema de atuação pública feminina desde essa época. A “maternidade higiênica” era a bandeira da organização Damas da Cruz Verde, defensora de um conjunto de políticas públicas destinadas a proteger a mulher durante a gravidez, que implicavam numa ampla intervenção do saber médico na vida das gestantes e mães. Preconizavam ainda a instituição da obrigatoriedade de um exame pré-nupcial para a concessão da licença de casamento.  

Com o decreto formal abolindo a escravidão chegaram ao Brasil as máquinas, a indústria e as imigrantes que passaram a integrar o contingente do operariado brasileiro. As difíceis condições no mundo do trabalho começaram a fazer parte da pauta de preocupações das mulheres nas primeiras décadas do século XX. Desvalorizada, desqualificada, a força de trabalho feminina era explorada a preços muito inferiores aos pagos ao trabalhador adulto do sexo masculino. Diante das restrições e das condições injustas, surgiram os primeiros protestos. Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa Carini tiveram destaque em São Paulo na elaboração de um manifesto convocando as costureiras a lutar pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias.

A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917 – fortalecidas, dois anos depois elas organizaram paralisação histórica noticiada pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi liderado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar com o envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos escreveu, discursou e panfletou nas portas de fábrica defendendo as causas das operárias.

Depois do fim da I Guerra Mundial, a proteção ao trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens públicos a nível internacional. O Tratado de Versalles, do qual os países que participaram do grande conflito mundial eram signatários, recomendou salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexos. Abriu-se, assim, grande avenida para um movimento que desaguaria numa das mais importantes mudanças ocorridas no século passado. A partir de 1920, batizados de Ligas para o Progresso Feminino, grupos se formaram em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triunfante corrente sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha Lutz, organizou no Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na ocupação de espaços na imprensa, na montagem de estratégias para a conquista do sufrágio feminino.

As feministas foram constatando, com indignação, que o engajamento na luta política e suas conquistas no campo da educação não foram suficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus direitos de cidadãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Josefina Álvares de Azevedo, Maria Eugênia Celso, e tantas outras, iniciaram uma campanha aguerrida em várias frentes e cidades. Seminários, manifestações artísticas e até panfletagem aérea eram armas de mobilização da opinião pública, dos congressistas e da população. Em 1918, lotaram o auditório do Palácio Itamarati para assistir a argüição oral da baiana Maria José de Castro Rebelo Mendes, aquela que viria ser a primeira mulher a ingressar no Ministério das Relações Exteriores. Ao inscrever-se para o concurso, teve seu pedido recusado pelo órgão. O fato ganhou repercussão pública quando a família procurou Rui Barbosa para examinar juridicamente o caso. Pressionado, o ministro Nilo Peçanha acabou deferindo o pedido de inscrição da candidata e seu ato foi amplamente comentado na imprensa. Recebeu rasgados elogios do jornalista Carlos de Laet, em artigo publicado no dia 26 de setembro de 1818, no Jornal do Brasil e, também vorazes críticas de leitores assim como do vespertino carioca A Rua, que explicitava sua preocupação com “a marcha do feminismo no Itamarati”.  Vinte anos depois, o então chanceler Osvaldo Aranha proibiu o ingresso de mulheres no quadro do Ministério das Relações Exteriores. Em 1953, Sandra Maria Cordeiro de Melo obteve na justiça uma liminar contrária ao veto. O processo de Sandra Maria fez com que, em dezembro de 1954, fosse aprovada pelo Congresso Nacional a lei que garantiu, definitivamente, o acesso das mulheres à carreira diplomática. 

A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, colaboradora na fundação da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso “ameno e reformista” das sufragistas e optou por maneiras mais contundentes de atuar na cena política. Adepta do amor livre e plural, aproveitou todas as oportunidades para manifestar-se a favor da educação sexual, contra a moral vigente, e as posições da igreja. Reconhecia que as relações mantidas pelas mulheres com seu corpo, com os homens, na família e no trabalho eram temas mal discutidos pela sociedade. Reivindicava a inclusão no currículo de todas as escolas femininas da disciplina “História da mulher, sua evolução e missão social”.

Musa do Modernismo, a escritora e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu, escandalizou a sociedade tradicional com suas roupas extravagantes, seus cabelos curtos e chapéus, com o cigarro entre os dedos num tempo em que fumar em público era imperdoável para uma moça de família.  Numa época em que as mulheres em geral viviam e se vestiam de forma recatada e discreta, Pagu foi símbolo de atrevimento – feminista assumida, escreveu romances, crônicas, poesias e dirigiu peças teatrais. Na sua mistura de militância comunista com defesa dos direitos das mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje ícone das lutas pela emancipação feminina. Seu nome batiza diversas iniciativas feministas contemporâneas.

Outra figura emblemática da “mulher liberada” foi a jornalista Eugênia Moreira. È considerada a primeira repórter feminina do país. Sua primeira reportagem foi publicada na principal página do jornal Última Hora, na segunda década do século XX. Participou ativamente do movimento modernista, integrou o grupo das sufragetes, defendia a renovação e popularização do teatro brasileiro. Respeitada politicamente, foi uma das oradoras do célebre comício realizado pelo Partido Comunista do Brasil, em maio de 1945, no estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, ao lado de Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes, Manoel Campos da Paz e outras lideranças ligadas aos comunistas.   

Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, em 1927, a lei eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras. Ao ser eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano se tornou, um ano depois, a primeira prefeita da América Latina.

Com a brecha aberta pelas norte-rio-grandenses, ainda que seus votos tenham sido cassados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer esse direito. Um abaixo-assinado contendo duas mil assinaturas foi entregue aos parlamentares com o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramitava no Congresso. O documento, amplamente divulgado pela imprensa, era um retrato da realidade das brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não sejam eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias:

Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazendo as mulheres de todos os países civilizados. É princípio do regime democrático, universalmente reconhecido, que, aqueles que obedecem às leis e pagam impostos, assiste o direito de colaborar, direta ou indiretamente, na elaboração dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. (….) A economia doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas à organização social e econômica do país. São problemas coletivos que não toleram mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as donas-de-casa, as mães de família, cujos filhos, na freqüência diária de jardins da infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às vicissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de outros menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, considerando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior, não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração. Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está habilitada a compartilhar.

O texto segue discorrendo sobre a evolução das conquistas femininas em outros países e termina assinado por Bertha Lutz, Jerônima Mesquita, Carmen Portinho, Maria de Carvalho Dutra, Maria Ester Correia Bastos, Laurinda Santos Lobo, Baronesa do Bonfim, Maria Eugênia Celso, Nair de Teffé, entre outros renomados nomes da sociedade brasileira. Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Nacional, em 24 de fevereiro de 1932 as mulheres concretizaram a maior conquista feminina do século XX: o direito de votar e serem votadas.

É também da Era Vargas o decreto nº. 3.199, que proibia às mulheres a prática de alguns esportes considerados “incompatíveis com as condições femininas” tais como: “luta de qualquer natureza, futebol de salão, futebol de praia, pólo, pólo aquático, halterofilismo e beisebol”. O Decreto só seria regulamentado em 1965, mas no ano anterior, durante os primeiros meses da ditadura militar, o Conselho Nacional de Desportos adiantara-se, proibindo a prática do futebol feminino.

Para alcançar os pódios olímpicos, as mulheres não tiveram que enfrentar apenas os obstáculos do esporte, mas, sobretudo, as manifestações conservadoras daqueles que eram contrários as suas presenças, como o Barão Pierre de Coubertin, fundador dos jogos olímpicos. Somente em 1928 as atletas conquistaram oficialmente o direito de disputar as provas olímpicas. Coube a nadadora paulista Maria Lenk a honra de ser a primeira sul-americana a competir em uma Olimpíada, em 1932, abrindo o caminho para as demais esportistas do continente. Nos jogos de 2004, 76 anos depois da pioneira façanha de Maria Lenk, o seguimento feminino alcançou a expressiva marca de 44% de participação. O Brasil foi representado por 122 mulheres, num total de 247 atletas.

Na conturbada e efervescente agitação dos anos 1930, outro desfio estava colocado: promover a candidatura das feministas para a Assembléia Nacional Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando os eleitos e os representantes classistas, duas vozes eram femininas: Carlota Pereira de Queiroz, médica eleita por São Paulo, que se tornou a primeira deputada federal do Brasil, e a advogada alagoana Almerinda Farias Gama, que, através de uma estratégia bem sucedida da Federação pelo Progresso Feminino, representou o Sindicato das Datilógrafas e Taquigrafas do Distrito Federal.

Nas eleições gerais de 1934, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino voltou à cena patrocinando acirrada campanha nacional para a eleição de mulheres. As propostas das feministas foram resumidas num documento composto por treze princípios, de questões referentes à maternidade, passando por melhores salários e licença-remunerada, até a discussão do acesso aos cargos públicos.  Nove mulheres foram eleitas deputadas estaduais: Quintina Ribeiro, por Sergipe; Lili Lages, por Alagoas; Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte; Maria Luisa Bittencourt, pela Bahia; Maria Teresa Nogueira e Maria Teresa Camargo, por São Paulo; Rosa Castro e Zuleide Bogéa, pelo Maranhão; Antonieta de Barros por Santa Catarina, sendo esta a primeira deputada negra do Brasil. 

Com a decretação do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso até 1945. Os movimentos sociais, entre eles o feminismo, foram sufocados, encerrando-se temporariamente o mandato das parlamentares. Bertha afastou-se gradualmente da direção da entidade até deixar o cargo de presidente, em 1942, mantendo-se fiel à causa feminista até o fim de seus dias. Foi sucedida pela escritora Maria Sabina de Albuquerque, uma das suas antigas colaboradoras.

A nova onda feminista

De 1937, início da ditadura Vargas, a 1970, período de grande mobilização contra a ditadura militar, os grupos de mulheres estiveram atrelados aos partidos de esquerda ou protegidos sob seu manto. Nos anos de redemocratização pós-1945, o cenário político brasileiro não comportava organizações que privilegiassem a articulação de interesses específicos acima dos interesses de classe.

No mundo ocidental, os anos 1960 foram marcados pela luta das chamadas minorias pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, paralelamente à luta dos negros americanos por cidadania plena e os movimentos políticos contrários à guerra do Vietnã, viu-se o ressurgimento do movimento de mulheres. Essa nova “onda feminista” distanciava-se da sua primeira versão da luta pelo direito ao voto em fundamentos teóricos e em propostas de luta. O feminismo contemporâneo estava apoiado, principalmente, nas idéias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em O Segundo Sexo, publicado na França em 1949. Referência durante décadas para a nova organização do movimento de mulheres internacional, Simone questionava as relações sociais, estruturadas hierarquicamente e naturalizadas, que sustentaram durante séculos as desigualdades entre os sexos.

Sob a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa francesa promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, sem a qual não haveria feminismo possível. Ao retirar da biologia o caráter determinista do comportamento feminino, Beauvoir abriu espaço para as dicussões sobre a igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento do que hoje se chama de estudos de gênero.

Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de partida a publicação, em 1963, do livro A Mística Feminina, de Betty Friedan, no qual ela denuncia as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na esfera doméstica e propõe novas formulações para a reorganização do feminismo. Friedan busca explicar o que ela chamou de “o mal que não tem nome”, representando a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades de realização eram a família, a maternidade e o lar.

Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a prática sexual ganhou novos contornos – e possibilidades!, começando assim um lento processo de separação entre sexo e reprodução. O uso de contraceptivos mais seguros possibilitou às mulheres planejar quando e quantos filhos queriam ter e viver sua sexualidade sem associá-la à gravidez. O novo método interferiu diretamente nas relações entre homens e mulheres, uma vez que podia ser usado sem o conhecimento dos pais, do marido ou de quem quer que fosse. Se por um lado as mulheres estavam “liberadas para o prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até 1962, o Código Penal brasileiro tutelava as mulheres casadas aos desejos e decisões de seu marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem viajasse sem o consentimento do “chefe da casa”.  

A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para acirrar a insatisfação das mulheres com o tradicional papel que desempenhavam na sociedade. Alimentadas por novas informações, norte-americanas, italianas, francesas, inglesas e suecas ganharam as ruas para entoar palavras de ordem como: “Nosso corpo nos pertence!”, “O privado também é político!” e “Diferentes, mas não desiguais!”.

Como resposta à intensa mobilização de mulheres, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, promovendo na Cidade do México uma grande conferência internacional com a presença de delegações de diversos países. No Brasil, esses acontecimentos causaram enorme repercussão. Tanto a conferência da Cidade do México como a instituição da Década da Mulher pela ONU deram alento à reestruturação do movimento feminista em novas bases. A despeito de o momento político nacional estar marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas – sendo, portanto, impossível promover qualquer organização social sem o risco do confronto com os militares –, o manto protetor da instituição internacional tornou possível a organização de seminários nos quais as mulheres puderam discutir os problemas comuns. Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de novos modelos sociais, que emergiu o feminismo organizado dos anos 1970. Se por um lado a nova onda feminista lutou contra a ditadura militar, por outro batalhou também contra a supremacia masculina, a violência sexual e o direito ao prazer.

As mulheres integrantes dos diversos grupos que se formaram na época vinham quase que na sua totalidade dos agrupamentos de esquerda. Debatiam-se com questões de fundo: feminismo ou feminino? Luta geral ou luta específica? Da salvação do povo ou da classe operária – dependendo da linha política – para a salvação das mulheres e a derrocada do patriarcado. Por onde começar? Quais questões abordar? Quais mulheres “salvar”? Todas? As mais oprimidas? E quem é o inimigo principal: o homem ou o capitalismo? E afinal, quem somos? Cadê a nossa identidade e o nosso prazer?  O que fazer com nossa sexualidade? Onde colocamos nosso afetivo, nossos filhos, nossos homens? Seremos todas irmãs na luta pela igualdade? E a liberdade, onde vamos encontrá-la?

A confluência dessas idéias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares, aquelas que priorizavam os partidos políticos e as donas-de-casa não se deu sem conflitos. O debate político nesse momento foi caracterizado pela polarização de posições entre luta geral, luta específica, e o papel tradicional de mães e guardiãs da família. A segunda metade dos anos setenta foi, em grande parte, consumida por essa discussão, necessária e imprescindível, para se chegar em 1979 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejorativos. Havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno-burguesas preocupadas com sexo, as proletárias preocupadas com a união entre luta geral e específica, as “estrangeiras” – ex-exiladas influenciadas pelo movimento feminista europeu –, as defensoras do movimento autônomo…

As reuniões setoriais de metalúrgicas, químicas e outras categorias deram lugar aos Encontros de Mulheres, pela primeira vez despidas de suas diferenças para descobrir suas semelhanças. A palavra mágica dessa descoberta foi autonomia: em relação aos homens, aos partidos políticos e ao Estado. Esses encontros pautavam-se por discussões que uniam – luta por creche, contra o controle da natalidade, por salário igual para trabalho igual. Ainda sem aparecer como prioridades estavam os temas do aborto, da sexualidade e da violência. Neste período, o movimento organizado de mulheres queria achar um rumo, por a cara na rua, unir esforços, fazer qualquer coisa que apontasse para um futuro mais justo.

O movimento feminista no Brasil esteve marcado, nos anos 1970 e 1980, pela luta em prol da redemocratização e por direitos de cidadania e igualdade. Multiplicaram-se por todo o país dezenas de grupos autônomos de mulheres reunindo as mais diferentes expressões políticas: desde a antiga Associação das Donas-de-Casa, criada nos anos 1960, na Zona Leste de São Paulo, até as intelectuais e as recém-chegadas exiladas. No bojo dessa efervescência política nasceu o Movimento Feminino pela Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país e teve como uma das suas principais articuladoras a advogada Therezinha Zerbini.

Ainda na década de 1970, o jornal Brasil Mulher, editado primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um porta-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda feminista tomou conta de suas páginas. Logo depois veio o Nós Mulheres, publicação paulista que circulou de 1976 a 1978. Distribuído nacionalmente, durou oito exemplares. Já no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer este jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa situação e nossos problemas”. Inúmeros grupos e diversos jornais eram criados com o propósito de denúncia da subordinação da mulher na sociedade. 

Desta nova leva, destacava-se o jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que nasceu e contou com o suporte da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas e foi leitura obrigatória das feministas brasileiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais seguiram o exemplo: Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre (1981), o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo, e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil Mulher de Salvador a partir de 1984.

A força da mudança de comportamento das mulheres chegou também à grande mídia. Em maio de 1979 a Rede Globo de Televisão estreou o seriado “Malu Mulher”, protagonizado pela atriz Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido – a lei do divórcio acabara de ser promulgada. Daí em diante, durante um ano e meio, o público assistiu a personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevivência e pelo cuidado com a filha. Socióloga, Malu trocou sua condição de esposa pela de pesquisadora, engrossando, na ficção, as estatísticas da vida real: os anos 1980 registram 10 milhões de mulheres empregadas no país, número que cresceu para 25 milhões em pouco mais de 20 anos, quando um terço das trabalhadoras tinha pelo menos o segundo grau completo. Hoje, as mulheres têm maior nível de escolaridade do que os homens. A diferença ocorre a partir do ensino médio e vai até a universidade. Dados da Fundação Carlos Chagas informam que, em 2002, 31% das mulheres brasileiras e 28% dos homens tinham o 3º grau completo.

Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa TV Mulher, que ia ao diariamente na parte da manhã, mudava a abordagem sobre os temas femininos na TV – começam a sair de cena os cuidados com a família, trocados por conselhos da sexóloga Martha Suplicy. Nas páginas das revistas femininas, a jornalista Carmen Silva, autora, desde 1963, da coluna “A arte de ser mulher”, publicada na revista Claudia, incentivava suas leitoras a ingressar no mercado de trabalho e a questionar as atitudes masculinas.

As publicações de mulheres ganhariam reforço, a partir da década de 1990, com o lançamento da Revista de Estudos Feministas (REF), iniciativa de um grupo de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, seguindo os passos das teóricas norte-americanas e européias, levaram para a academia as discussões sobre gênero, cultura e sociedade. Pioneira, a REF é hoje uma das muitas publicações acadêmicas destinadas ao tema.  Núcleos de estudos de gênero surgiram em diversas universidades brasileiras, como Unicamp, USP, UFF e UFSC – hoje responsável pela edição da revista.

Muito antes da entrada no universo acadêmico, vem de longe, através de centenas de publicações e, por muitas mãos, o desabafo das mulheres diante das injustiças de gênero, o modo de ver o mundo e seus movimentos. Inúmeras foram as que contribuíram para promover a ruptura de paradigmas dominantes e ocupar espaços que até então lhe eram negados . No mundo das letras, Gilka Machado escandalizou os críticos mais conservadores com seus poemas eróticos publicados na segunda década do século XX. Nem o grande nome da literatura brasileira, Rachel de Queiroz, escapou dos preconceitos. Em 1930, quando lançou O Quinze, primeiro de uma longa carreira literária, houve quem, como Graciliano Ramos, duvidasse da obra ter sido realmente escrita por uma mulher. Quarenta e sete anos depois, Rachel tornou-se a primeira representante do sexo feminino a conquistar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Abriu o caminho para que, em 1996, viesse Nelida Pinõn, a primeira mulher eleita presidente da ABL.

O Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, da pesquisadora Nelly Novaes Coelho, relaciona a contribuição de 1.400 mulheres em 300 anos de participação no campo literário. Até o século XIX, grande parte das escritoras optava por pseudônimos que protegessem suas reais identidades, uma forma de escapar do preconceito. Os primeiros 20 anos do século passado testemunharam a primeira fase de ruptura com o modelo tradicional, no qual a transgressão das autoras modernistas é de grande relevância.

Mas foi a partir da explosão da Segunda Guerra Mundial que a literatura feminina brasileira começou a mudar mais profundamente, lançando as raízes do que seria a revolução a partir dos anos 1960. Os textos intimistas e psicológicos se aprofundam, como nas primeiras obras de Clarice Lispector. Nesse período, também nas letras os antigos valores vão implodir de vez e a mulher começará a buscar através da escrita sua nova imagem e seu novo lugar no mundo.  Surgem poetas, ensaístas, ficcionistas, dramaturgas, todas voltadas para as questões da atualidade.

Só muito recentemente, na História da literatura, que o principal tema feminino não é mais a relação entre homens e mulheres, não é o amor e seus derivados, mas sim as questões ligadas à existência, à condição humana (em contraposição à condição feminina), ao existencialismo. Data dos anos 1990 mudança na catalogação bibliográfica dos livros escritos por mulheres: enquanto os autores homens tinham a data de nascimento  registradas nas fichas catalográficas dos livros dos quais eram autores, a exigência não vigorava para as mulheres. A diferença escondia o privilégio de considerar que os textos masculinos precisavam ser situados num certo momento histórico, enquanto as obras femininas eram apenas “textos de mulheres” e, portanto, estavam dispensados do critério. Escritoras contemporâneas como Lygia Fagundes Tellles, Sonia Coutinho, Hilda Hilst, Marina Colassanti, Lya Luft, Ana Maria Machado, entre tantos outros nomes que poderiam ser citados, extrapolam as fronteiras do rótulo de “literatura de mulheres” e consagram-se autoras universais.

Redemocratização e movimento de mulheres

Da anistia conquistada em 1979 rapidamente o país mobilizou-se para recuperar o direito ao voto. O bipartidarismo – Arena/direita e MDB/esquerda – que reinava absoluto até então e colocava todas, as da luta geral e as da específica, num mesmo barco, caiu por terra. A chamada esquerda se reorganizou em vários matizes, alguns fugazes: social-democratas, socialistas, socializantes, comunistas, revolucionários, centristas avermelhados. A campanha das Diretas-Já! tomou as ruas, marcando o processo de redemocratização do país.

Espalhadas em diferentes partidos políticos, ou longe deles, em defesa da autonomia, o movimento seguia crescendo. Eram grupos de defesa, prioritariamente, do alargamento da cidadania e do direito à sexualidade, que aspiravam afirmar a identidade feminina. Essa multiplicidade de formas organizativas, a partir dos anos 1980, foi ganhando novos contornos e incorporando outros segmentos, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, produtoras culturais, educadoras populares e donas de casa. Vítimas das desigualdades salariais, da carestia, dos preconceitos e violência sofrida, organizam-se em grupos de auto-estima, de denúncias e de ação política.

O complexo universo de reivindicações se expressava nos encontros estaduais, regionais e nacionais. As primeiras reuniões nacionais foram promovidas pelas feministas nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Assim, em Fortaleza, no ano de 1979, realizou-se o que atualmente se convencionou chamar de Encontro Nacional Feminista. Um ano depois, no Rio de Janeiro, ocorria o segundo, uma reunião histórica com a participação de mais de 1.500 mulheres, entre professoras, estudantes universitárias e militantes do movimento.

Diante das notícias de vários assassinatos de mulheres por seus companheiros, a luta contra a violência doméstica explodiu. O que antes eram pequenas notas nos jornais ganhou as primeiras páginas com a indignação e denúncia do movimento feminista. As mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros (MG), e Eliane de Gramont (SP) tiveram enorme repercussão e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assassinos. O slogan “Quem ama não mata”, gritado inicialmente pelas mineiras, ecoou por todo Brasil.

As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimentos acabam impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista, em 1985, e em pouco mais de 15 anos contabilizava-se mais de trezentas delegacias em todo Brasil. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie “Delegacia de Mulheres”, levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas feministas 10 anos antes.

As discussões sobre a saúde da mulher já faziam parte da agenda feminista, mas o assunto pegou fogo com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Trouxeram na bagagem o polêmico tema do aborto, legalizado na França em 1975 e um dos eixos de luta do movimento internacional de mulheres.  Em 1980, quando a polícia carioca “estourou” uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela prática do aborto, as feministas organizaram um protesto e, pela primeira vez, foram a público reivindicar o direito de escolha. O silêncio que envolvia o assunto estava definitivamente rompido.

Embora largamente praticado, o Código Penal de 1940 ainda considera a interrupção da gravidez crime em qualquer hipótese, exceto quando se trata de salvar a vida da gestante ou quando a gestação é resultante de estupro. O aborto clandestino e inseguro é um problema de saúde pública e causa de mortalidade feminina. O primeiro projeto de lei propondo sua legalização foi apresentado ao Congresso Nacional em 1983. Entre 1991 e 2002 mais oito projetos favoráveis à descriminalização chegaram ao parlamento.

Desde 2004 o debate sobre aborto ganhou novos contornos: a I Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres aprovou recomendação de revisão das leis que punem o aborto no Brasil, dando origem à Comissão Tripartite – sociedade civil, estado e Legislativo –, que, em 1º de Agosto de 2005, encerrou seu trabalho com a elaboração de um anteprojeto de lei propondo a descriminalização do aborto no Brasil. O documento foi encaminhado ao Congresso Nacional em 1º de setembro de 2005, representando trinta anos de luta pela auto-determinação reprodutiva das mulheres brasileiras.

Um lugar no governo

Em 1982, com a convocação de eleições diretas para governadores, os movimentos de mulheres que contavam com aliados em alguns partidos políticos reinauguram sua relação com o estado. Um grupo de feministas paulistas propôs a criação de um órgão específico, responsável pela defesa da cidadania feminina e implementação de políticas públicas para as mulheres na estrutura do estado. Assim nasceram, em 1993, os dois primeiros Conselhos Estaduais dos Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais. As experiências regionais repercutiram nacionalmente até que, no 7º. Encontro Nacional Feminista, realizado em 1985, em Belo Horizonte, a discussão ganhou dimensões nacionais diante da proposta de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM). Apesar das suspeitas de algumas feministas em relação ao estado e de suas múltiplas possibilidades de cooptação, o CNDM foi criado em 1985 trazendo em seus objetivos, estrutura e composição de seus quadros – conselheiras e técnicas – a marca das proposições do movimento de mulheres.

Até a constituição do CNDM, o estado não possuía política pública específica para a mulher, salvo alguns programas na área da saúde. A política do conselho provocou, portanto, alterações no cenário nacional. Se foram pequenas, pontuais e fragmentadas, ainda assim, fazem parte do processo histórico. Podemos lembrar o nascimento de vários Conselhos Municipais e Estaduais, Delegacias de Mulheres, Casa Abrigo, creches nos locais de trabalho e mudança na legislação, entre outros avanços. Sem falar no competente lobby do batom, que conseguiu garantir no novo texto constitucional 85% das reivindicações das mulheres encaminhadas aos constituintes. Participaram desse processo 26 deputadas federais e seis senadoras.

Quando, em 2003, o governo Lula criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status ministerial, estrutura técnica e recursos financeiros, o CNDM ressurgiu como um colegiado integrante da estrutura básica da secretaria, agora com caráter consultivo. Atualmente existem em funcionamento 22 Conselhos Estaduais, 108 Conselhos Municipais e 39 Secretarias e Coordenadorias, segundo o Documento-base da Secretaria.

Planeta Fêmea – o feminismo internacionalizado

Quando a década de 1990 chegou, os vários anos de luta feminista já tinham promovido mudanças profundas na sociedade brasileira. Escolarizadas, trabalhadoras, com menor número de filhos, as mulheres invadiram a cena pública. Autonomia e independência se espalhavam, transformando as relações familiares, jogando no lixo velhos tabus como o da virgindade, e desmontando a cultura do patriarcado. Já não era preciso declarar-se feminista para aderir à causa dos direitos das mulheres. Fazer-se respeitar como indivíduo passava a ser a tônica das mulheres no espaço público. Historiadores como Eric Hobsbawn reconhecem que a revolução cultural promovida pelas mulheres alterou a face do século XX, promovendo mudanças de comportamento, transformando os padrões familiares e abrindo espaço para a liberalização dos costumes, no bojo dos quais vieram outros movimentos reivindicatórios como o de gays e lésbicas.

Ao mesmo tempo, as mulheres tiveram sua agenda de ação ampliada com um ciclo de conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a realização da ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, da qual as brasileiras participaram ativamente do Planeta Fêmea, espaço privilegiado dentro do Fórum das Organizações Não-Governamentais da conferência, que promoveu o encontro de representantes de vários paises e etnias e possibilitou a elaboração da Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), ambas tratando de assuntos de interesses específicos da agenda feminista. O auge desse processo de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995).

O processo de preparação dessas conferências fortaleceu os movimentos e suas articulações em todo o mundo e, no Brasil, a Conferência Mundial da Mulher abriu a oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras, reunindo fóruns e articulações já existentes, estimulando a criação de novos espaços de debate em todo o país. A ação internacionalizada seguiu-se no século seguinte: em 2001, organizações de mulheres negras se mobilizaram para participar da Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban/África do Sul).

Apesar de todo o preconceito que ainda envolve o feminismo, não há como negar que este foi o movimento mais bem sucedido do século XX. A historiadora e socióloga Bila Sorj diz que “está na hora de revermos essa narrativa profundamente inconsistente na qual não gostamos das santas, mas apreciamos o milagre”. Diferentemente dos demais movimentos políticos – como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo –, o feminismo promoveu mudança de comportamentos sem utilizar a força e sem derramar uma gota de sangue. Plural, sem dono nem estruturas de controle centralizadas e sem aspiração de tomada do poder, o feminismo segue revigorado, erguendo suas bandeiras de liberdade e igualdade entre os sexos, acatando novos desafios e espalhando transformações por onde quer que passe.

Um exemplo do seu vigor foi a realização, no Congresso Nacional, em 2002, da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras com mais de duas mil participantes. Precedido pela realização de conferências estaduais, o encontro nacional aprovou a Plataforma Política Feminista, documento que levanta desafios para a reconstrução da sociedade, do Estado, das relações inter-raciais e interpessoais, e de gênero. Sobretudo, deixou registrado um jeito diferente de fazer política, garantindo espaço tanto para as intelectuais quanto para as indígenas, quilombolas ou parteiras tradicionais.

Uma representação injusta

Apesar da riqueza e do aumento da participação política das mulheres na sociedade civil, inseridas nos mais diversos campos dos movimentos sociais – direitos das mulheres, combate ao racismo, defesa dos direitos sexuais e dos direitos humanos, ecológico, popular, comunitário e sindical –, a sub-representação feminina nas estruturas formais da política ainda é um dos principais desafios a ser enfrentados pelos países democráticos.

Em todo o mundo as mulheres representam somente 12% dos assentos parlamentares e ocupam 11% dos cargos de presidência dos partidos políticos. Segundo cálculos das Nações Unidas, mantendo-se o ritmo atual de crescimento da participação feminina em cargos de representação, o mundo levará 400 anos para chegar a um patamar de equilíbrio de gênero. O Brasil integra o grupo de 70 países com o pior desempenho quanto à presença de mulheres no parlamento – menos de 10% nos espaços Legislativos.

Embora a adoção da política de cotas tenha estimulado o movimento de mulheres a organizar atividades destinadas a melhor preparação das candidatas, animando lideranças e discutindo plataformas que levavam em conta as particularidades das mulheres, infelizmente ainda são insuficientes as mudanças substantivas no cenário político brasileiro. No âmbito estadual, em 2002 foram eleitas apenas duas governadoras e 133 deputadas, representando 13% do total de cadeiras nas Assembléias. Nas eleições de 2000, 7.001 mulheres conquistaram mandatos de vereadoras, representando 12% das 70 mil candidatas em todo o país. Ao todo, 317 mulheres elegeram-se prefeitas, representando 6% das concorrentes. Nas eleições de 2004, subiu para 407 o número de municípios governados por mulheres e foram eleitas 6.555 vereadoras.

As mulheres, maioria do eleitorado nacional, respondem por 51,53% dos votos, mas ainda representam apenas 13,95% do total de mais de 19 mil candidatos às eleições de 2006. Para se ter a dimensão do desequilíbrio entre candidatos e candidatas, as mulheres disputam as eleições em 18 estados e apenas no Distrito Federal se igualam em número com os homens.

Tão importante quanto a luta para ampliar a presença feminina na política é a luta pela afirmação de suas agendas no âmbito do estado: a inclusão da perspectiva de gênero em todas as ações de governo da sociedade e dos partidos políticos. As plataformas sobre igualdade de gênero e empoderamento das mulheres vêm sendo cada vez mais acolhidas, numa demonstração da sua expressiva contribuição para a construção de uma sociedade democrática, fraterna e justa.

Para garantir que essas plataformas se convertam em ações, o chamado feminismo contemporâneo conta com mais de mil grupos espalhados pelo Brasil, atuando em diferentes setores que vão desde os partidos políticos, estrutura do estado e sindicatos, passando por grupos autônomos, organizações não-governamentais, associações de moradores, instâncias de controle social e universidades. É uma poderosa força política distribuída por uma grande diversidade de redes: Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, Rede entre Mulheres, Articulação Nacional de Mulheres Negras, Rede de Mulheres no Rádio, Movimento Articulado das Mulheres da Amazônia (MAMA), Rede de Educação Popular entre Mulheres (REPEM), Rede de Estudos e Pesquisas sobre a mulher e relações de gênero (REDOR), Rede para humanização do parto e nascimento (REHUNA), Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP) e, finalmente, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).

Cidadãs de primeira grandeza 

A luta para garantir espaço e respeito na sociedade não se refere apenas às grandes conquistas que saem nos jornais, como a recente lei assinada que pune com mais rigor a violência contra a mulher. Políticas públicas, cotas e leis são parte integrante das bandeiras feministas desde a Revolução Francesa no século XVIII. Dois anos depois do lançamento, no outono de 1789, da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, Olympe de Gouges publicou a sua “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, na qual afirmava que as mulheres tinham os mesmo direitos dos homens – eram, portanto, iguais – e também necessidades específicas por serem mulheres, ou seja, diferentes. Foi na Revolução Francesa que surgiu a idéia de que o homem, sozinho, não representa a humanidade.  Era o ano dos debates na Assembléia nos quais nasceriam a Constituição de 1791. Olympe apoiou a posição, minoritária e perdedora, de que deveriam ser considerados “cidadãos ativos” todos aqueles que, independentemente de sexo, tivessem lutado pela queda da Bastilha. Venceu a idéia oposta e só foram considerados cidadãos os homens acima de 25 anos. Às mulheres foi negado o direito ao voto, só alcançado na França em 1944. Olympe morreu executada como traidora em 1793.

Se hoje é considerado natural que as mulheres estudem, trabalhem, deliberem sobre seus destinos, sobre o exercício da sua sexualidade, e sejam donas das suas próprias vidas é porque o feminismo produziu uma revolução silenciosa e pacífica, capaz de mudar o padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais. As propostas de Betty Friedan nos anos 1960 – de que as mulheres poderiam compatibilizar a vida familiar com uma atividade no mundo do trabalho assalariado, com a cultura e com a política – hoje são tidas como normal até nas famílias mais conservadoras, que fazem suas filhas estudarem pensando que, além de casar, exercerão uma profissão. O que já foi escandaloso, atualmente é desejável e absolutamente comum.

O modelo tradicional da mulher entrou em crise e um novo perfil feminino começou a se esboçar. Mulheres que ignoram o feminismo estão negando sua própria história e identidade. Foram elas que, em suas atitudes de vanguarda, conquistaram há 160 anos atrás o acesso à educação formal, há 74 anos o direito ao voto e há 18 anos a igualdade plena na Constituição Brasileira. O século XX assistiu a grande virada na condição das mulheres. De coadjuvantes da história, passaram a donas de seus destinos e desejos, condição de sujeitos políticos, cidadãs de primeira grandeza.

Texto de Schuma Schumaher, publicado no livro “Século XX – A Mulher Conquista o Brasil”, Org. Leonel Kaz e Nigge Loddi, Aprazível Edições, RJ, dezembro de 2006.