Schuma Schumaher
A chamada segunda onda feminista iniciada nos anos 1960, distancia-se da primeira fase, focalizada na luta pelo direito ao voto. Nessa época o feminismo se apoiou, principalmente, nas idéias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O Segundo Sexo, publicado pela primeira vez em 1949, referência, durante muito tempo, para o movimento internacional de mulheres. Simone questiona a estrutura hierárquica e a naturalização das relações sociais, que durante séculos sustentaram as desigualdades entre os sexos. Outro marco importante foi a publicação do livro A Mística Feminina de Betty Fridman (1963), que agrega às idéias de Beauvoir novas formulações. Beth Fridman busca explicar o que ela chamou de o “mal que não tem nome”, ou seja, a angústia relacionada ao eterno feminino e ao estereótipo da mulher sedutora e submissa.
O mundo vivia um período de inquietude social. Nesta conjuntura, a difusão do novo pensamento feminista potencializou a insatisfação das mulheres com o tradicional papel que lhe era atribuído pela sociedade. Alimentadas por novas informações, passaram a reunir-se promovendo intensa mobilização em busca de outras formas de realização pessoal. Pressionada por esta movimentação, a Organização das Nações Unidas indicou a realização de uma grande Conferência Internacional, realizada na cidade do México, em 1975, com a presença de delegações de diversos países, inclusive do Brasil. A data foi instituída como o Ano Internacional da Mulher, inaugurando em todo o mundo a Década da Mulher, período que se estende até 1985. A necessidade de ampliar a cidadania das mulheres difundiu-se nos mais variados países, independente de seu grau de desenvolvimento econômico e social. Foi assim que, num contexto de repressão e cerceamento das liberdades democráticas, emergiu no Brasil o feminismo organizado dos anos 1970. A nova onda feminista, se por um lado lutou contra a ditadura militar, por outro lutou também contra a hegemonia masculina, a violência sexual e pelo direito ao prazer.
As mulheres que faziam parte desses grupos- em sua maioria oriundas de agrupamentos de esquerda, se debatiam com inúmeras questões: Feminismo, feminino ou movimento de mulheres? Luta geral ou luta especifica? Defender quem: todas ou as mais oprimidas? Quem era o inimigo principal: o homem, a sociedade ou o capitalismo? Seriam todas irmãs na luta pela igualdade? E a liberdade, onde encontrar ?
A confluência dessas idéias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares e aquelas que priorizavam os partidos políticos, não se dá sem conflitos. Muitas vezes o debate político nessa época foi caracterizado pela polarização entre luta geral e luta específica. A segunda metade dos anos 70 foi em boa parte consumida por essa polêmica, necessária e imprescindível para chegar no início da década de 80 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de posições feministas, cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejorativos: havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno- burguesas preocupadas com a sexualidade, as proletárias divididas entre a chamada luta geral e a luta especifica, as defensoras do movimento autônomo, as “estrangeiras” (ex-
exiladas) influenciadas sobretudo pelo movimento feminista europeu. Esse universo constituía o movimento de mulheres no Brasil.
Despidas de suas diferenças, encontraram na defesa da autonomia do movimento, as suas semelhanças. Autonomia essa, experimentada de maneira distinta. Autonomia com relação aos homens (algumas), autonomia com relação aos partidos políticos (muitas) e autonomia com relação ao Estado (todas). O bipartidarismo que reinava absoluto até então nos colocava (a todas) num mesmo barco. Com a Anistia, essa ampla esquerda se reorganiza em vários matizes: social democrata, socialista, comunista, revolucionário, centrista avermelhado e outros.
Em 1982, quando a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, com a convocação de eleições diretas para governadores, e o feminismo contava com aliados em alguns partidos políticos o movimento reinaugura sua aproximação com o Estado. Um grupo de feministas paulistas propôs a criação de um órgão específico, responsável pela defesa da cidadania feminina e implementação de políticas públicas para as mulheres na estrutura do estado. Assim nasceram em 1993 os dois primeiros conselhos estaduais do Brasil, em São Paulo e Minas Gerais.
Paralelamente às ações dos mecanismos estatais o movimento feminista se ampliou, com o surgimento dezenas de grupos espalhados pelo país, realiza encontros nacionais, ganha novos contornos e incorpora outros segmentos, outras realidades, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, educadoras populares, entre outras. Nesse momento, permeando as diferentes formas de organização, alguns temas possibilitaram a convergência dos diversos grupos e articulações: a denúncia da violência doméstica, a luta pela saúde, direitos reprodutivos e sexuais, a descriminalização do aborto, o combate ao racismo, a luta pela ampliação do número de mulheres em espaços de decisão, foram as principais bandeiras.
Na década de 1990, o movimento feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a Eco 92, no Brasil, passando pela Conferência sobre Direitos Humanos (Viena,1993), População e Desenvolvimento (Cairo,1994). O ápice deste processo de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing,1995) que em muitos países possibilitou uma grande mobilização. No Brasil o processo preparatório para Beijing foi acompanhado pela criação da Articulação de Mulheres Brasileiras, hoje caracterizada como uma articulação feminista, anti-racista e anti- homofóbica, e atuante nas propostas de reformas do Estado, na implementação de políticas públicas para as mulheres; sempre à luz da Plataforma Política Feminista, elaborada em 2002, a partir de ampla parceria com outras redes nacionais.
Desde que foi instituído o Ano Internacional da Mulher, data símbolo da segunda onda feminista, temos lutado pela democratização do país, por direitos, por equidade, contra o patriarcalismo e o racismo. O movimento feminista foi responsável por provocar uma profunda mudança cultural, tanto no espaço privado quanto no espaço público. Enfrentando fortes preconceitos e grandes desafios, sua atuação está pontuada de conquistas. A
sociedade brasileira está mudando, as mulheres não são mais as mesmas e as estatísticas estão aí para comprovar essa afirmação.
Reconhecido, o feminismo é considerado por muitos estudiosos o movimento social mais importante do século XX. Nem por isso deixamos de entrar no século XXI trazendo velhas questões, como por exemplo, a modesta presença das mulheres no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores, nos postos da alta hierarquia do poder Executivo e nos partidos políticos.
Conscientes do seu papel político no processo de transformação social, seja nas relações de gênero, nas relações étnico/raciais ou no relacionamento com as diferentes esferas de poder e com os novos parceiros, os movimentos de mulheres se impõem novos desafios, pautados na luta pela superação das desigualdades econômicas e sociais, pela liberdade e igualdade de gênero, pelo respeito ao Estado laico e pela radicalidade da democracia nos lares, nas ruas, no país e no mundo.
Rio, 19 de setembro de 2005
Publicado pelo Clam
Fontes: Hildete Pereira de Melo e Schuma Schumaher. Feminismo pós-75 – segunda onda feminista no Brasil. Dicionário Mulheres do Brasil; Schuma Schumaher e Elisabete Vargas. Lugar no governo: álibi ou conquista? Estudos Feministas.