Emilson Gomes Junior
Introdução
O surgimento do Estado brasileiro perpassa por, desde a colonização, episódios de completa desumanidade e negativa de direitos. Apesar de influenciado por ideais liberais importados da Europa durante sua formação, é nítido que a realidade social influencia de maneira concreta e latente na aplicação das ações estatais sobre a vida dos indivíduos. Essa constatação é visível quando se observa a vida da população negra pós-diáspora – sendo a diáspora africana aquela ocorrida durante a as invasões colonizadoras dos povos europeus na África e tráfico de pessoas realizado até países e colônias escravagistas.
Essas relações que surgem a partir da colonização do Brasil têm reflexos na contemporaneidade, e o povo negro no Brasil ainda hoje vive uma situação precarizada em diversos âmbitos sociais. Com preconceito racial e marginalização social desde a chegada ao país, a história da negritude no país é marcada por resistência e enfrentamento a fim de conquistar cidadania em um país que lhe exclui historicamente.
Mesmo após as conquistas do povo negro sobre a abolição da escravatura, não houve reais processos de empoderamento social com o período republicano e a democratização brasileira. Ao invés disso, os grupos hegemônicos utilizaram esses processos históricos do país como formas de legitimação das desigualdades étnicas já existentes, travestidas de “benesses” das elites para esses grupos historicamente oprimidos, com mecanismos como políticas de branqueamento, inexistentes ações reparatórias e estratégias estatais de limitada participação política das lógicas epistemológicas do Sul.
Percebendo a insustentável invisibilização da população negra na sociedade contemporânea brasileira e a situação de direitos negligenciados que a mesma vive, vê-se necessário pensar formas de reverter essa realidade social de opressão. Com o objetivo de pensar em formas de promover a necessária justiça social ao povo negro pós-diáspora, esse texto pretende expor um panorama sobre a realidade negra brasileira e desenvolver avanços no tema, na perspectiva da filosofia Ubuntu sobre promoção de equidade e justiça social.
A precarização da negritude
A história do negro no Brasil é, a saber, marcada por completa sujeição, exclusão social e negação de direitos de maneira institucional. Essa realidade foi formada por diversos fatos hediondos e preservação de status quo da elite branca ao longo da história brasileira. Esse panorama teve início na inserção do povo negro na América portuguesa, em ignóbil situação que subjugou indivíduos de diversas nações africanas à escravidão para os fins mercantilistas da coroa portuguesa. Os acontecimentos desse processo de desumanização são inúmeros. Houve a dissociação do povo negro de seus laços afetivos e signos sociais ao realizar a escravidão em território completamente alheio à realidade africana; o emprego de força constante contra esses grupos já fragilizados; a demonização de elementos africanos como a religião e a cultura desses povos trazidos ao país; enfim, diversas estratégias com a finalidade de subjugação do povo negro que no Brasil chegava. Essa situação é retratada por Streva (2016, p. 28-29), em que a autora relata a forma que os “senhores” escravocratas reprimiam e subjugavam os corpos negros a fim de manter-se num papel de soberania sobre a negritude que escravizava.
Sob esse regime de total desigualdade, naturalmente surgem formas de resistência negra ao sistema escravista. Nesse cenário, escravos fugidos formam quilombos durante todo o Brasil colônia e Império, mesmo com diversas formas de repressão existentes contra a organização negra durante a escravatura. Alguns desses episódios de resistência negra podem ser destacados, como o Guerra dos Palmares no séc. XVII e a Revolta dos Malês no séc. XIX. Marquese (2006, p. 107-108, 121) disserta sobre o tema, deixando evidente que, apesar das políticas de repressão escravocrata, as lutas pelos direitos que sempre lhes foram devidos sempre existiu, com o povo negro em busca de sua liberdade e autonomia.
Mesmo com o fim da abolição da escravidão – reflexo da luta negra e de interesses capitalistas liberais –, não houve melhoria substancial às condições de vida do povo negro no país. Ao invés de políticas estatais de reparação aos que sofreram com o sistema escravocrata e seus reflexos no país, foi decidido que não haveria medidas reparatórias pelas atrocidades causadas às pessoas negras durante séculos de subjugação ao que hoje chamamos de crimes contra a humanidade. Resultado dessa abolição mal sucedida, como dissertado por Silva (2009, p. 24-30), houve a miséria do povo negro, que continuava marginalizado pela sociedade racista brasileira e disputava empregos com os novos imigrantes europeus. Esse resultado era, inclusive, previsível. Um dos fatores foi o Estado tomar posturas benéficas quanto aos imigrantes brancos, promovendo políticas públicas de inserção social, enquanto permanecia maléfico ao povo negro, perpetuando o racismo institucional existente. Uma vez que predominava entre os intelectuais da época – inclusive abolicionistas, como Joaquim Nabuco – o pensamento de que os imigrantes europeus embranqueceriam o país, as políticas de sujeição ao povo negro permaneceram existindo, pois a lógica racista nunca fora a de libertação da negritude, mas sim de rearranjos sociais para os moldes liberais inspirados na Europa.
Movimento negro e demandas sociais
Percebendo que nem a abolição da escravidão negra, nem a proclamação da República, trouxeram igualdade social aos negros brasileiros, surge a necessidade de articulação política do povo negro, com suas demandas a serem atendidas num cenário de indiferença estatal.
Ainda excluídos das narrativas institucionais, o povo negro – “libertos”, “mestiços” e “ex- escravos” – passa a articular-se de maneira independente sobre suas demandas. Como descrito por Domingues (2007, p. 103-109), são formados na República grupos recreativos e associações que formavam redes de contato negro e inserção social, além do alvorecer de imprensas alternativas negras que denunciavam o racismo no país. Apesar das repressões ao movimento político organizado, como houve durante regimes do Estado Novo e da Ditadura Militar (p. 107-108; 111-112), o movimento negro foi silenciado e suas maiores organizações políticas foram desmobilizadas. Apesar do contexto repressor, o movimento continuou caminhando timidamente com pequenos jornais e seguindo na clandestinidade.
Já no processo de redemocratização pós-ditadura militar, o movimento negro ressurge junto de outros movimentos sociais para pautar suas demandas. Ainda de acordo com Domingues (2007, p. 114-117), o movimento negro passou a se rearticular com novas propostas. Uma delas foi a unificação da luta negra pelo país através do surgimento MNU – Movimento Negro Unificado, fundado por Lélia Gonzalez e outros. Outras formas de articulação do movimento foi a interseccionalidade da luta negra com outros movimentos, como o movimento de classe e o movimento feminista, e a utilização do empoderamento negro tanto no resgate da religiosidade africana quanto no uso frases de ordem como “negro no poder”.
Com a perspectiva contemporânea do movimento negro, há também reivindicações quanto à necessidade do resgate da ancestralidade africana e da utilização de literatura negra desde o ensino até a política institucional, conduzindo à criação de uma perspectiva afrocentrada dos discursos que dizem respeito ao povo negro.
Quanto às reparações históricas, ainda há um abismo com o qual devemos lidar. Como construir diálogos de igualdade na atualidade, para um grupo social que se articula politicamente de maneira tão efervescente na sociedade brasileira? A filosofia africana Ubuntu traz possibilidades de proporcionar uma teoria da justiça que contemple a realidade afrobrasileira.
A justiça social da filosofia Ubuntu
De acordo com a lógica do direito vigente, a reparação de danos é vista de maneira monetária, como uma forma de punição aos fatos passados. Essa lógica é visível em Silva (2009, p. 59-61), quando a autora cita projetos de lei que visam reparações econômicas aos descendentes dos povos negros escravizados no Brasil, além de reparações aos Estados africanos, que diretamente sofreram com a diáspora. Essas estratégias políticas seriam inviáveis, uma vez que não há como mensurar os direitos infringidos contra esses povos negros e seus descendentes, tampouco quantia suficiente em poder das nações para reparar esses trágicos episódios.
Como alternativa à lógica hegemônica de políticas reparatórias, apresenta-se a filosofia Ubuntu para se pensarmos melhorias sociais dos negros pós-diáspora. Em Ramose (2001), o autor descreve que Ubuntu é uma percepção de mundo como uma unidade em sua existência, sendo essa unicidade infinita e contínua, partindo da essência universal à evolução rumo ao coletivo – um ciclo, visto que a essência é o coletivo, e vice-versa. A concepção Ubuntu de lei e justiça é baseada numa tríade que se auto-regula: o sobrenatural, os vivos e os que ainda irão nascer. Essa tríade tem como finalidade alcançar o equilíbrio da existência, sem desrespeitar o coletivo por perceber que todos são um na infinitude existencial.
Uma forma de garantir os direitos do povo negro é deixar de perpetuar formas de silenciá-lo politicamente. Assim como afirma Lassalle (2006), uma boa constituição deve refletir os fatores reais de poder que regem seu país. Tal fato não aconteceu em sua plenitude na realidade brasileira, mesmo com as reivindicações do movimento negro brasileiro sendo pautadas na ANC – Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, como salientam Gay e Quintans, devido à constituinte ter limitado no campo normativo as propostas do movimento negro. Algo semelhante ocorreu na redemocratização da África do Sul, como abordado por Ramose, em que a filosofia Ubuntu era utilizada da maneira que interessava à constituinte, tendo sido até mesmo excluída do texto constitucional final. Essa forma de promover política permanecerá tendendo ao fracasso, e os fatores reais de poder continuarão reivindicando justiça e reparações justas de acordo com suas demandas.
Outra forma de reparação possível de acordo com a filosofia Ubuntu é através da educação. Como um centro social de formação do indivíduo, as escolas devem ser sempre vistas como fontes de enorme potencial transformador das futuras gerações. Pensar diversidade de acordo com a mesma é essencial, visto que os conhecimentos normativos do Brasil continuam reproduzindo racismo e conceitos escravocratas herdados culturalmente. Santos (2010) faz uma excelente reflexão sobre os ensinamentos realizados no âmbito escolar e sobre o quão nocivo pode ser pra essas crianças a reprodução do ideal de neutralidade que o ensino proporciona e a invisibilidade de identidades culturais historicamente sublimadas. A autora aponta que a valorização de signos culturais negros para as crianças ao lado de muito diálogo pode ser a combinação que leva à valorização da multiculturalidade, reparando através das novas gerações as injustiças às quais a cultura afrobrasileira foi exposta.
Considerações finais
É obviamente injusto que o povo negro permaneça sob a dor carregada por gerações de negros desde a diáspora africana, e que reverberará enquanto houver o desequilíbrio entre as forças sociais existentes. Apontada como solução às injustiças sociais ocorridas ao povo negro no Brasil, a percepção filosófica Ubuntu dissocia-se da visão tradicional eurocêntrica, que prevê reparações monetárias ostensivas e impraticáveis – uma vez que não há reparação monetária suficiente para o sofrimento humano, tampouco de diversos povos – e muda o foco pra transformação coletiva, para a evolução social. Ou seja: a necessidade é de transformação real sobre a vida dos indivíduos, libertando-os de maneira plena da colonização à qual eles e seus antepassados foram submetidos. Nessa empreitada, o Estado deve assegurar formas de realizar essa justiça social de maneira que o equilíbrio entre a justiça, os seres vivos que hoje sofrem e os futuros que a esse mundo virão possam desfrutar da equidade plena e não sejam negativamente afetados pelas injustiças passadas.
Palavras-Chave/TAG: #racismo #escravidao #antirracismo #lutadeclasse #ubuntu #filosofia #mulheresnegras #leliagonzalez #mnu
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, nº. 23, p. 100-122: Niterói, 2007. Disponível em: SciELO – Brasil – Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Acesso em 6 mar 2024.
GRAY, Antonia; QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. Movimento Negro e a luta por direitos. A participação na ANC e as conquistas na Constituição Federal Brasileira. publicaDireito: 2014. Disponível em: publicadireito.com.br/artigos/?cod=7d7733c8d01b7352. Acesso em 6 mar 2024.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Edições e Publicações Brasil: São Paulo, 2006. Disponível em: Que é uma Constituição? – Ferdinand Lassalle (usp.br). Acesso em 6 mar 2024.
MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos Cebrap nº. 74, p. 107-123: São Paulo, 2006. Disponível em: SciELO – Brasil – A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Acesso em 6 mar 2024
RAMOSE, Mogobe B. Una perspectiva africana sobre la justicia y la raza. Poylog. Foro para filosofía intercultural. Polylog, Foro para filosofia intercultural 3: 2001. Disponível em: polylog / temas / enfoque / Mogobe B. Ramose: Una perspectiva africana sobre la justicia y la raza. Acesso em 6 mar 2024.
SANTOS, Maria Walburga dos. Multiculturalismo e prática cotidiana: desafios de educar na diversidade. In: CARNEIRO, Maria Ângela Barbato (org.). Cócegas, cambalhotas e esconderijos: construindo cultura e criando vínculos. Articulação Universidade Escola: São Paulo, 2010. Disponível em: Cócegas, cambalhotas e esconderijos: (pucsp.br). Acesso em 6 mar 2024.
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STREVA, J. M. Objetificação Colonial dos Corpos Negros: Uma leitura descolonial e foucaultiana do Extermínio Negro no Brasil. PUC-Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: 1412196_2016_completo.pdf (puc-rio.br). Acesso em 6 mar 2024.