• Pensamentos descolonizadores: conceitos-chave para ampliar o debate democrático

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19 de junho de 2023 por 

Ana Laura Becker de Aguiar

Este artigo tem como objetivo apresentar conceitos-chave dos pensamentos pós-colonial e descolonial, aqui chamados de descolonizadores, com o intuito de auxiliar na compreensão dessas perspectivas teóricas e de suas ferramentas metodológicas. Esse esforço justifica-se pela percepção de que as teorias hegemônicas do pensamento ocidental eurocentrado não conseguiram enfrentar adequadamente a discussão sobre uma democracia pluralista, antirracista e feminista. Os conceitos que serão apresentados auxiliam a compreender a crise do Estado moderno e a crise democrática que seus teóricos denunciaram. Ademais, ajudam-nos a pensar alternativas além dos moldes universalizantes para imaginar o inimaginável a partir de baixo, ou seja, da perspectiva daqueles que estão à margem da democracia ocidental atual (LANDER, 2005). 

Sob essa perspectiva, reconhecendo a fertilização cruzada entre os pensamentos pós-colonial e descolonial, este artigo buscará apresentar e sistematizar os seguintes conceitos-chave: 

  1. A teoria da perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade
  2. O orientalismo e o eurocentrismo
  3. O mito da modernidade
  4. A diferença do terceiro mundo 
  5. A diferença colonial
  6. A colonialidade do poder e a invenção da raça

Em conjunto, esses conceitos são ferramentas epistemológicas que nos ajudam a dar um passo atrás para desconstruir pré-conceitos teóricos e filosóficos e para pensar de maneira crítica a realidade, aprofundando o debate democrático com foco na transformação e transgressão da sociedade a partir dos interesses dos grupos mais marginalizados e excluídos. Nesse contexto, conforme destaca Gayatri Spivak (2004), a democratização não deve ser entendida apenas um método de escolha de líderes representativos e deve representar muito mais que um codinome para a reestruturação sócio-política mundial gerada pelo processo colonial capitalista. Se quisermos levar a sério a necessidade de envolver o maior setor do eleitorado do “Sul Global” no processo democrático, será necessário descolonizar, racializar e feminizar nossa perspectiva por meio de uma epistemologia voltada para o subalterno, aprendendo a (re)aprender com as pessoas que estão excluídas do sistema (SPIVAK, 2004). Este é o esforço proposto pelos pensamentos descolonizadores.

Na próxima seção será realizada uma contextualização teórica e histórica sobre os pensamentos descolonizadores, pós-coloniais e descolonial, de modo a localizar as teorias e trazer à tona suas interconexões. Nas seções seguintes serão abordados diretamente os conceitos-chave mencionados.

Antes de prosseguir, cabe observar que, ainda que se reconheça as diferenças entre os pensamentos pós-coloniais, descolonial ou decolonial, feministas, dos estudos culturais e da raça, interessa-nos estudar alguns conceitos descolonizadores e como eles se entrecruzam, tornando-se cada vez mais complexos e radicais, proporcionado um debate crítico, antirracista, anti-imperialista, feminista e plural. Trata-se de um esforço transfronteiriço e transdisciplinar, que visa apontar e estudar ferramentas epistêmicas críticas e não identificar os conceitos como parte de uma ou outra teoria. Adota-se uma abordagem que busca destacar as relações e diálogos entre os diferentes referenciais teóricos e seus ricos debates, em lugar de apontar descontinuidades ou limites teóricos. Não se pretende esgotar o debate, compreendendo que muitos conceitos, autores e debates teóricos não foram citados, pelos limites do escopo deste artigo. Tampouco busca-se criar novas terminologias. O artigo se propõe a costurar alguns pontos de partida em comum entre autores e conceitos que buscaram aprofundar ideias descolonizadoras com foco na transformação e transgressão da sociedade e das vidas das pessoas subalternizadas.

Contextualização teórica e histórica dos pensamentos descolonizadores

Os pensamentos descolonizadores, tanto pós-colonial, quanto descolonial, fazem parte do arcabouço teórico crítico cujo grande desafio é desnaturalizar o mundo e a maneira como este funciona (OLIVEIRA BATISTA; LOPES, 2014). No entanto, essas perspectivas teóricas oferecem uma crítica ao pensamento crítico, buscando superar os limites do pensamento monocultural moderno e da construção dos seus sujeitos modernos (racializados, hierarquizados, generificados) buscando dar um passo além na mudança de perspectiva para que o foco seja a transformação das vidas dos mais marginalizados das sociedades (GÁNDARA CARBALLIDO, 2015).

O pensamento pós-colonial

O pensamento pós-colonial refere-se a uma proposta ampla que apresenta uma ruptura epistemológica partindo de uma construção coletiva crítica e interdisciplinar envolvendo história, literatura, estudos culturais, sociologia, estudos de gênero, entre outros (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007). 

O pensamento pós-colonial, em linhas gerais, consiste em uma perspectiva teórica que busca descortinar os impactos do processo de colonização nas relações de poder que moldaram as estruturas econômicas, políticas e sociais nos últimos séculos, apontando para os efeitos contínuos da colonização até o presente, especialmente na produção e reprodução do conhecimento, assim como das estruturas sociais.

No entanto, mais do que uma teoria, a perspectiva pós-colonial refere-se a um grupo de respostas, lutas e atitudes contra o processo colonial e as estruturas de poder e dominação que se fizeram presentes a partir de então. Por esse motivo, é possível traçar suas origens no surgimento de autores e lideranças envolvidas com as lutas anticoloniais da virada do século XIX para XX, tendo culminado com sua institucionalização e expansão na academia moderna nos anos 1980, com a criação do Grupo de Estudos Subalternos – GES (MCEWAN, 2009; YOUNG, 2001).

Um dos primeiros marcos do pensamento pós-colonial pode ser traçado a partir do movimento pan-africanista dos anos 1890, que é um movimento político de luta antirracista e anticolonial por libertação dos africanos e descendentes de africanos afetados pelo tráfico de pessoas escravizadas. Esse movimento proporcionou uma nova narrativa epistêmica na qual os povos africanos e seus descentes foram protagonizados e valorizados com o objetivo de proporcionar sua união, tanto na África como em diáspora, por meio de um movimento de solidariedade e resistência à exploração, tendo como base princípios antirracistas, anticoloniais e anti-imperialistas. O movimento é considerado um marco no pensamento pós-colonial por apresentar uma inovação no discurso: uma narrativa contra-hegemônica com novos desenvolvimentos epistemológicos, que defendia direitos de igualdade para a população negra, subalternizada e fortemente discriminada pelo discurso hegemônico colonial (MCEWAN, 2009).

Os principais expoentes do pan-africanismo foram Henry Sylvester Williams, advogado e escritor de Trinidad e Tobago, e William Edward Burghardt (W.E.B.) Du Bois, historiador, sociólogo e ativista dos direitos civis dos Estados Unidos da América (EUA), ambos considerados os pais do movimento pan-africanista. Du Bois desenvolveu a ideia  bastante utilizada por teóricos pós-coloniais e decoloniais de que o mundo é dividido por uma “linha de cor”, que divide a humanidade entre a categoria humano (humanitas/humanidades), composta por brancos, e a categoria não-humano (anthropos), composta pelas comunidades colonizadas e desumanizadas (DU BOIS, 2007; MALDONADO-TORRES, 2016; MCEWAN, 2009; SPIVAK, 2018a).

Alguns dos líderes dos movimentos de luta pan-africanistas foram: Marcus Mosiah Garvey, jamaicano, líder do movimento “De volta para a África” durante os anos 1920; e Sol Plaatje, da África do Sul, ativista contra a falaciosa caracterização dos negros como não civilizados. Esses pensadores influenciaram muitas lutas por libertação em diversos países e diversos intelectuais que se tornaram importantes figuras políticas, como Jomo Kenyatta, primeiro presidente do Quênia, e Kwawe Nkrumah, primeiro presidente de Gana. O pan-africanismo também inspirou Haile Selassie, imperador da Etiópia entre 1930 a 1974 e símbolo do movimento rastafári.

Também com inspiração pan-africanista, entre 1920 e 1930, nos Estados Unidos, surgiu o movimento cultural de Renascimento do Harlem, marcado pela promoção do orgulho racial e das artes e da literatura negra do qual faziam parte muitos afrodescendentes de colônias africanas e do Caribe. Entre os anos 1940 e 1950, o Renascimento de Harlem inspirou outro movimento, conhecido como “negritude”, que emergiu entre intelectuais negros francófonos das colônias francesas do Caribe e da África. Entre eles, destacam-se Léopold Sédar Senghor, que se tornou presidente do Senegal em 1960, Aimé Césaire, poeta da Martinica, e Léon Gontran Damas, poeta, escritor e político da Guiana Francesa. O movimento negritude consistia na valorização do negro e na solidariedade em favor de uma identidade negra comum. O movimento representou um esforço para combater os preconceitos do discurso colonial e racista e é inspiração poética e filosófica para o pensamento antirracista até os dias atuais (MCEWAN, 2009).

A América Latina, por sua vez, é considerada uma região especial na história do anticolonialismo, tendo forte relação com a teoria pós-colonial. Em referência às lutas anticoloniais que marcaram o pensamento pós-colonial na região, destacam-se os movimentos Zapatista, no México, em 1910, e a revolução cubana de 1959, que inspirou movimentos revolucionários em todo o mundo, inclusive no sudeste da Ásia e na África. Robert J. C. Young (2001) destaca o fato de que a região foi sujeita ao colonialismo e ao neocolonialismo como nenhuma outra, tendo sido fortemente pressionada pelo imperialismo norte-americano, o que deu origem à teoria da dependência, além de destacar Che Guevara como importante pensador e liderança revolucionária anticolonial.

As lutas e narrativas revolucionárias influenciaram o desenvolvimento de uma literatura anticolonial que, posteriormente, serão importantes para a sistematização da teoria acadêmica pós-colonial nos anos 1980, com o GES. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos do poeta e romancista Chinua Achebe, da Nigéria, especialmente, por seu artigo sobre o livro “O Coração das Trevas” (Heart of Darkness, no original), de Joseph Conrad, intitulado “Uma imagem da África: racismo no Coração das Trevas de Conrad”, de 1975. O artigo é referência da crítica pós-colonial, pois denuncia o racismo dos europeus na forma como retratavam a África. Também são figuras proeminentes da literatura anticolonial autores como Ousmane Sembène, roteirista e cineasta senegalês; o indiano Mahatma Gandhi; o trinidadiano C.L.R. James; o guianense Walter Rodney; o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o; e o sul-africano Steve Biko.

Outra figura importante na transição para a academia foi Amílcar Cabral, da Guinea-Bissau e Cabo Verde, intelectual, diplomata, poeta e revolucionário anticolonial, que liderou o movimento nacionalista dos seus países de origem. Cabral dizia que a luta anticolonial estava relacionada não somente com lutar por melhores condições dos povos colonizados, contra a pobreza, miséria e por direitos, mas também contra o fato de que os colonialistas tiraram dos povos africanos sua própria história (VILLEN, 2013; YOUNG, 2001).

Um dos primeiros autores a trazer para a academia europeia as questões relacionadas aos movimentos e expressões anticoloniais foi Frantz Fanon, considerado o mais proeminente pensador do século XX no campo da descolonização e psicopatologia da colonização. Nascido na Martinica e aluno de Aimé Césaire (pan-africanista), seu primeiro livro, “Pele negra, máscaras brancas” (Peau noire, masques blancs, no original), de 1952, é um marco para os estudos anti-pós-coloniais (HULME, 1995; MCEWAN, 2009). No livro, o autor analisa o impacto da subjugação colonial na psiquê das pessoas negras e como a relação de dominação entre colonizador e colonizado é normalizada. Influenciado pelo existencialismo de Sartre e por Lacan, uma das principais questões abordadas por Fanon (2008) é como o racismo cega o próprio homem negro de sua subjugação ao universalizar a experiência branca como norma e o aliena da consciência sobre essa dominação. Abordando questões autobiográficas de forma altamente reflexiva, já que era membro da elite colonizada, mas negro e nascido na Martinica, Fanon introduz de forma original a análise sobre a maneira como o colonialismo afeta o desenvolvimento das subjetividades dos colonizados, especialmente das elites coloniais, assim como dos novos líderes nacionais (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007). Suas contribuições teóricas demonstram a necessidade urgente de desconstruir e reconstruir os discursos como forma de libertação.

A partir da década de 1970, o pensamento pós-colonial passou a ser fortemente influenciado por Michel Foucault e por outros pós-estruturalistas franceses, especialmente por suas contribuições filosóficas e discussões relacionadas ao poder/saber, à linguagem e à desconstrução, conceitos que, inclusive, estão na base da crítica pós-colonial, conforme formalizada na academia nas décadas de 1970 e 1980 (CHAKRABARTY, 2000).

Uma das obras consideradas como marco do pensamento pós-colonial é o livro de Edward Said, publicado em 1978, chamado “Orientalismo” e traduzido para o português como “Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente”. O subtítulo em português explica a grande contribuição da obra em denunciar a construção epistêmica dos não-europeus como “Outros” exóticos a partir do olhar dos ocidentais. Este conceito será abordado com mais detalhamento na seção seguinte. 

Contudo, conforme mencionado, a sistematização do pensamento pós-colonial na academia europeia deu-se apenas na década de 1980, com o Grupo de Estudos Subalternos (GES), um coletivo de acadêmicos majoritariamente composto por historiadores indianos radicados na Inglaterra, interessados em estudar as sociedades pós-coloniais no Sul da Ásia, especialmente na Índia, a partir da perspectiva do subalterno e das não-elites. Devido ao foco nesse contexto geopolítico, mais tarde o grupo ficou mais conhecido como Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia.

O GES foi fundado por Ranajit Guha, historiador da Universidade de Sussex na época, e editor de vários volumes de genealogias históricas elaboradas pelo grupo, assim como por Shahid Amin, David Arnold, Partha Chatterjee, David Hardiman e Gyan Pandey, que produziram cinco volumes da coleção de ensaios historiográficos chamada Estudos Subalternos (Subaltern Studies, no original) (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007; GUHA, 1982). Mais tarde, também fizeram parte do grupo Gyan Prakash, Dipesh Chakrabarty, Gayatri Chakravorty Spivak. 

Além de colocar o subalterno como protagonista da história, o GES apresentou uma inovação epistêmica a partir de seu olhar crítico e suspeitoso quanto aos pressupostos e às verdades do conhecimento eurocêntrico. Um dos seus objetivos era descolonizar a produção do conhecimento. Segundo o historiador Robert J.C Young (2001), o GES foi, em vários sentidos, o herdeiro intelectual e político dos movimentos de libertação anticoloniais em termos de escrita da história a partir da agência e protagonismo dos subalternos.

A escolha da utilização do termo subalterno, que dá nome ao grupo, deu-se porque utilizavam, originalmente, uma perspectiva marxiana gramsciana, baseada no conceito de grupos subalternos de Gramsci (MCEWAN, 2009). O GES ampliou e popularizou o termo subalterno, que  passou a ser entendido para se referir aos “excluídos da mobilidade social e cujas vozes não são ouvidas ou ignoradas” (SPIVAK, 2004, p. 180). Nesse sentido, os estudos pós-coloniais procuram revelar como uma certa perspectiva da história global foi arbitrariamente construída como algo universal e linear e quais atores sociais e grupos foram “historicizados” e narrados em detrimento de outros, que foram invisibilizados e ocultados. Também buscam trazer luz ao fato de que algumas práticas e culturas foram celebradas e legitimadas, enquanto outras foram desqualificadas ou dizimadas. Nesse sentido, denunciam que a produção do conhecimento não é neutra e desinteressada, mas, reflete, sobretudo, uma narrativa contada pelas elites, detentoras do poder de impor sua versão da história.

O pensamento pós-colonial também foi fortemente marcado por Homi Bhabha, também indiano, teórico da literatura, tendo lecionado por dez anos na Universidade de Sussex e, atualmente, reconhecido por tornar mais complexa a compreensão da relação entre colonizador e colonizado e aprofundar a discussão sobre os efeitos da colonialidade e suas expressões contemporâneas, descrevendo o encontro colonial como um espaço de interação ambivalente e híbrido (BHABHA, 1994).

Além disso, Gayatri Spivak, indiana, teórica da literatura, é considerada a mais influente pensadora dos estudos pós-coloniais. Foi tradutora do livro “Gramatologia”, de Jacques Derrida, para o inglês e, como mencionado, fez parte do GES. Spivak realizou contribuições teóricas especialmente relevantes por articular, no pensamento pós-colonial, a crítica feminista e problematizar a discussão sobre representação, interpretação e apropriação do discurso da pessoa subalterna. Seu artigo “Pode o subalterno falar? (“Can the subaltern speak?”) (SPIVAK, 1988) é considerado seminal. Nele, Spivak questiona a prática de intelectuais privilegiados de reivindicarem falar pelas vozes subalternas através de sua linguagem técnica, por meio da sua essencialização e da busca da vítima autêntica, considerando como efeito desta prática uma violência epistêmica que silencia e contém a própria capacidade subalterna de falar por si mesma (MORTON, 2003). 

Em resumo, o pensamento pós-colonial apresenta-se como uma grande contribuição filosófico-teórica devido a seu desengajamento crítico do projeto colonial e do pensamento moderno e eurocentrado, que provocou (e provoca) reflexões sobre as possibilidades e meios para atuar politicamente no campo das ideias e da prática para transformar o mundo em prol dos subalternos (HALL, 2008). 

Além disso, pode-se dizer que esse pensamento é responsável por popularizar as perspectivas críticas descolonizadoras na produção teórica da academia norte-americana e europeia, fazendo surgir o interesse por estudos e pensamentos descolonizadores no Norte Global. Por outro lado, a incorporação do pensamento pós-colonial em muitas universidades norte-americanas como “estudos pós-coloniais”, passou a adotar um viés bastante culturalista e acadêmico, distanciando-se do sentido de emergência política que marcou os intelectuais do GES, muitas vezes reproduzindo práticas (neo)colonizadoras e imperialistas sem alterar a relação de forças dentro dos “palácios” do Império (RIVERA CUSICANQUI, 2010). 

A própria Spivak passou a se distanciar dos estudos pós-coloniais. Em entrevista, Spivak (2018b) afirma que devemos seguir adiante e não nos preocupar em corrigir ou culpar o uso errado do pensamento, mas refletir sobre qual é o projeto que mais nos interessa. “Eles não sabem que o subalterno não existe”, logo, devemos seguir a diante.

O pensamento descolonial

Inspirados pelo desenvolvimento da nova corrente de pensamento pós-colonial, estudiosos latino-americanos criaram o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos para estudar a história dos marginalizados na América Latina (SUBALTERNOS, 1998). O Grupo também era composto majoritariamente por intelectuais radicados nos Estados Unidos e buscava realizar o mesmo esforço de descolonizar a produção de conhecimento sobre e na América Latina (SUBALTERNOS, 1998).  

Logo em seu início, o Grupo se desmembrou. Grosfoguel (2008), um dos integrantes do grupo que optou pela ruptura, explica que o rompimento se deu devido a uma necessidade de transcender epistemologicamente e descolonizar a produção de conhecimento. Entre as várias razões, destaca: a) o desacordo em privilegiar marcos teóricos europeus, como Derrida, Foucault e Gramsci; b) a compreensão da ideia de subalternidade pelos viés da crítica pós-moderna ao invés da crítica descolonial e da compreensão sobre a colonialidade e; c) a necessidade de desenvolver uma epistemologia que privilegiasse a produção “do” subalterno e não “sobre” o subalterno, distanciando-se de uma prática comum dos Estudos Regionais presentes nos Estados Unidos de estudar o Sul partindo das referências do Norte. Nesse sentido, Grosfoguel ressalta que tanto o Grupo de Estudos do Sul da Ásia quanto o Grupo Latino-Americano realizavam uma crítica a partir do pós-modernismo. No entanto, o primeiro privilegiava a crítica pós-moderna a partir do Sul Global, enquanto o segundo, do Norte Global. Reconhecendo a importante contribuição do Grupo Sul Asiático sobre os debates contra o eurocentrismo, notou-se a necessidade de ir além dos paradigmas universalistas (pós-)modernos e ocidentais para buscar uma epistemologia que reconhecesse a diversidade das cosmovisões em um projeto pluriversal, que leve a sério as perspectivas e cosmologias de intelectuais do Sul Global pensando a partir dos corpos e espaços raciais/sexuais/étnicos subalternizados. A esta virada de perspectivas, chamaram de “giro decolonial” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Esta virada foi resumida e apresentada em um excelente artigo produzido por Luciana Ballestrin (2013), com o qual este artigo dialoga.

Neste processo, instituiu-se o Grupo Modernidade/Colonialidade (conhecido como Grupo M/C) a partir de uma série de encontros e produções acadêmicas de intelectuais, majoritariamente latino-americanos, caribenhos e norte-americanos que tinham relação com a academia norte-americana. Entre outros, destaca-se no estabelecimento do Grupo M/C a participação da Associação Caribenha de Filosofia, do qual faz parte Maldonado-Torres (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Dessa forma, criou-se uma nova rede de pensadores que apresenta como uma crítica ao pensamento crítico pós-colonial, buscando ir mais além dos seus limites anglo-saxões e norte-americano. 

Quanto à diferença de grafia ou abordagem entre descolonial e decolonial, Catherine Walsh apresenta uma proposta de privilegiar o uso do termo “decolonial” (sem “s”) a fim de demarcar uma postura epistêmica distinta e complexa. A esse respeito, destaco a explicação de Walsh (2017, p. 16):

Dentro da literatura relacionada à colonialidade do poder, encontram-se referências tanto à descolonialidade como ao descolonial, assim como à decolonialidade e ao decolonial. Sua referência dentro do projeto de modernidade/colonialidade começa em 2004, abrindo assim uma nova fase em nossa reflexão e discussão. A supressão do “s” é minha opção. Não se trata de promover um anglicismo. Pelo contrário, visa marcar uma distinção com o significado espanhol de “des” e o que pode ser entendido como um simples desarmar, desfazer ou reverter do colonial. Ou seja, passar de um momento colonial para um não-colonial, como se fosse possível que seus padrões e traços deixassem de existir. Com este jogo linguístico, tento colocar em evidência que não existe um estado nulo de colonialidade, mas sim posicionamentos, horizontes e projetos de resistência, transgressão, intervenção, in-surgência, criação e incidência.  O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua no qual “lugares” de exterioridade e construções alter-(n)ativas podem ser identificados, tornados visíveis e encorajados. 

Por outro lado, Silva Rivera Cusicanqui, no livro intitulado “Ch’ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores”, publicado em 2010, apresenta uma dura crítica à Walter Mignolo e Catherine Walsh por adotarem práticas de colonialismo interno e por proliferarem neologismos que confundem e paralisam. Cabe resumir aqui alguns trechos da crítica de Cusicanqui:

Os Mignolos e companhia construíram um pequeno império dentro do império, recuperando estrategicamente as contribuições da escola de estudos subalternos da Índia e de múltiplas vertentes latino-americanas de reflexão crítica sobre colonização e descolonização. (…) Retomou minhas ideias sobre o colonialismo interno e sobre a epistemologia da história oral e as regurgitou em um discurso profundamente despolitizado sobre a alteridade. (…) A moda da história oral se espalhou, então, para a Universidade Andina Simón Bolivar de Quito, cujo Departamento de Estudos Pós-coloniais, sob a direção de Catherine Walsh – discípula e amiga de Mignolo, ensina um curso de pós-graduação inteiramente baseado na versão logocêntrica e nominalista da descolonização. Neologismos como “de-colonial”, “transmodernidade”, “eco-si-mia” proliferam e emaranham a linguagem, deixando seus objetos de estudo – povos indígenas e afrodescendentes – paralisados, com quem acreditam dialogar. Mas eles também criam um novo cânone acadêmico, usando um mundo de referências e contra-referências que estabelece hierarquias e adota novos gurus: Mignolo, Dussel, Walsh, Sanjinés. Dotados de capital cultural e simbólico graças ao reconhecimento e certificação de centros acadêmicos nos Estados Unidos, esta nova estrutura de poder acadêmico se realizada na prática através de uma rede de professores convidados e visitantes entre universidades e através do fluxo – do sul ao norte – de estudantes indígenas ou afrodescendentes da Bolívia, Peru e Equador, que são responsáveis pela sustentação do multiculturalismo teórico, racializado e exótico das academias (RIVERA CUSICANQUI, 2010, pp. 58, 64–65).

Como mencionado anteriormente, mais do que identificar os limites teóricos e suas diferenças, este artigo busca costurar as relações e entrecruzamentos entre as diversas perspectivas críticas dentro de um projeto comum de repensar e reconstruir a sociedade a partir do ponto de vista das pessoas subalternizadas. Além disso, o texto seminal de Maria Lugones (2014), “Rumo ao feminismo descolonial” (“Toward a decolonial feminism”), foi traduzido oficialmente para o português com o “s”. Nesse sentido, busca-se apresentar uma leitura dialógica dos pensamentos pós-coloniais e descoloniais e seus debates internos, apontando para as suas convergências, reconhecendo como positivo os mais distintos esforços de buscar propostas cada vez mais transgressoras de nossa realidade. Como destacado por Spivak (2018b), em entrevista mencionada acima, é preciso refletir sobre quais debates servem aos nossos projetos e, nesse sentido, entende-se que devemos seguir adiante, sempre vigilantes quanto às nossas práticas, para evitar essencializar o subalterno (compreendido enquanto perspectiva) e não praticar novos tipos de colonialismos. Assim, para a finalidade deste artigo, nas próximas seções, utilizarei a expressão pensamentos descolonizadores, referindo-se ao pensamento pós-colonial e descolonial, uma vez que abarca um grupo maior de pensadores e abordagens. 

Antes de passar para os conceitos, é importante destacar que o pensamento feminista perpassa os pensamentos descolonizadores de forma transversal, rompendo com as fronteiras disciplinares. Muitas intelectuais feministas introduziram questionamentos aos pensamentos pós-colonial e descolonial a partir de dentro promovendo ideias seminais, como nos casos de Spivak, Mohanty, Curiel e Cusicanqui, entre outras (CURIEL, 2013; MOHANTY, 1988; RIVERA CUSICANQUI, 2010; SPIVAK, 1988). Abordar os conceitos e contribuições das teóricas feministas fogem ao escopo deste artigo.

Conceitos-chave:

1 – A Teoria da Perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade

Os pensamentos críticos, tanto pós-coloniais, descoloniais, feministas e antirracistas entendem que é preciso reconhecer que o conhecimento não é neutro, mas é um produto histórico das relações de poder, datadas, e que refletem, na maior parte das vezes, interesses ou perspectivas de grupos específicos e hegemônicos. Esse reconhecimento é o primeiro passo para a construção de debates dialógicos e de uma democracia que reconhece as diferenças, a pluralidade de opiniões e a possibilidade de uma visão pluralista e diversa ao invés de monolítica e universal da realidade.

Uma das maiores contribuições teóricas sobre este debate foi realizada pelas teóricas feministas da “Teoria da Perspectiva” ou “Teoria do Ponto de Vista” , que tem como base os pressupostos marxianos do ponto de vista do proletário. Entre as principais autoras desta teoria, destacam-se Dorothy Smith, Nancy Hartsock, Sandra Harding, Donna Haraway e Patricia Hill Collins.

A teoria da perspectiva iniciou-se com a discussão sobre a questão da mulher na ciência, mas, especialmente, a questão da “ciência” para o feminismo, problematizando a ciência moderna para o campo do feminismo e questionando a neutralidade como objetividade (HARDING, 1991). A teoria da perspectiva cimentou uma das rupturas epistemológicas mais profundas do pensamento crítico, que trata sobre o reconhecimento de que não há neutralidade na produção do conhecimento/ciência. Neste sentido, a ciência é entendida como um produto das relações sociais a que está inserida. Assim, questionou-se a neutralidade como único grau razoável para garantir objetividade. Pelo contrário, reivindica-se que, para ser mais objetivo e transparente, (especialmente menos sexista, androcêntrico, antirracista, anti-imperialista) é necessário partir do ponto de vista dos grupos marginalizados e reconhecer seu posicionamento e vieses enquanto pesquisador ou pesquisadora (HARDING, 2019).

Inicialmente, para as feministas, como Harding (HARDING, 1991), havia uma preocupação em questionar o androcentrismo (pensamento com foco no homem) na ciência, por meio da qual foram justificadas perspectivas sexistas. Ainda assim, a teoria do ponto de vista foi elaborada para abordar categorias amplas de pessoas marginalizadas. Posteriormente, Patricia Hill Collins (COLLINS, 1986) expandiu os debates de forma a incluir a discussão sobre raça. Apresentou a ideia de que a mulher negra, sendo uma “outsider within” (forasteira de dentro), possui um lugar privilegiado e um ponto de vista especial para aprofundar o debate sociológico e a produção de conhecimento. Um exemplo de desconstrução da ciência a partir do posicionamento do sujeito negro é a desconstrução científica sobre a inferioridade biológica do indivíduo negro. Harding (2013) destaca, por exemplo, o fato de Fanon (1965) ter denunciado como a medicina foi cúmplice das atrocidades cometidas tanto pelo Estado nazista quanto pelos Estados coloniais. Como será abordado mais adiante, a partir das construções de Quijano (2005), essas diferenciações “naturais” justificadas pelas perspectivas modernas dominantes serviam a interesses coloniais de dominação e hierarquizações de humanos entendida como parte da colonialidade do poder. 

A teoria da perspectiva entende que é preciso levar em consideração o conceito de “parcialidade” das experiências e a posicionalidade, localidade ou lugar de fala dos sujeitos na produção do conhecimento, uma vez que toda perspectiva será relativa e parcial e responderá a uma demanda histórica localizada no tempo e no espaço, não podendo ser universal e abstrata (HARAWAY, 1995). Nesse sentido, a perspectiva dos grupos marginalizados torna-se um local privilegiado para compreender a matriz de opressão e buscar a transformação da sociedade em realidades mais democráticas e inclusivas (BREWER; COLLINS, 1992). 

Adotar a perspectiva do subalterno não significa procurar uma relação de identidade com o seu objeto de pesquisa, mas uma relação de objetividade, que é sempre entendida como parcial. Segundo Haraway (1995):

O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico não procura a posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial. Não há maneira de “estar” simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero, raça, nação e classe. E esta é uma lista resumida das posições críticas. A procura por uma tal posição “inteira” e total é a procura pelo objeto perfeito, fetichizado, da história oposicional, que às vezes aparece na teoria feminista como a essencializada Mulher do Terceiro Mundo (Mohanty, 1984).

Logo, compreende-se que o estudo científico é resultado de conhecimentos localizados e do engajamento dos pesquisadores, os quais devem reconhecer seu lugar de fala e onde se situam na história, na cultura e na sociedade, uma vez que o contexto implicará nos seus valores, metodologias, temas de pesquisa e interpretações (HARDING, 1991). 

A fim de aprofundar a ideia de objetividade, tão prezada pela ciência moderna, Harding apresentou o conceito de “forte objetividade”, segundo o qual o pesquisador ou pesquisadora (o eu cognoscente) não deve negar seu posicionamento, mas apresentá-lo de forma transparente. Além disso, deve-se sempre questionar se as convicções de quem pesquisa influenciam suas premissas e suas conclusões, adotando uma postura reflexiva sobre sua prática de produção de conhecimento. A este esforço de auto-questionamento chamou-se de “reflexividade” (HARDING, 1991). Sendo assim, não é possível universalizar a experiência humana, suas relações, visões de mundo ou sistema de valores. Entende-se que o conhecimento e a ciência são moldados pelos valores socioculturais de quem a produz em dado momento histórico. Nesse sentido, a própria concepção do Estado moderno, da ideia de um contrato social, da estrutura democrática como a conhecemos é parte de um processo histórico que é colonialista, androcêntrico, ocidental e, na maioria das vezes, monocultural. 

Outra importante reflexão nesse sentido é a necessidade de romper com a perspectiva universalista dos direitos humanos e dialogar com sua proposta ética a partir de sua  localização histórica e sociocultural (HERRERA FLORES, 2009; SEGATO, 2006; SPIVAK, 2004). No mesmo sentido, análises críticas feministas e descolonizadoras revelam a não neutralidade e obliquidade de ideias supostamente neutras, abstratas e universais. A título de exemplo, podemos citar: o desvelamento do Estado como uma estrutura patriarcal feito por Catherine MacKinnon (1989); a denúncia do Estado como perpetuador de uma estrutura heterossexual feita por Ochy Curiel (2013); e a crítica à ideia de contrato social desnudado por Carol Pateman (1988) como um verdadeiro contrato sexual. Essas análises revelam que, ao se adotar uma metodologia que parte de um ponto de vista marginal, é possível questionar as estruturas e pensamentos vigentes para transformá-los.

2 – Orientalismo e Eurocentrismo

Um importante conceito pós-colonial que nos ajuda a entender o viés  ou a localização do conhecimento e seus efeitos nefastos  é o “Orientalismo”. O termo foi cunhado pelo pensador palestino Edward Said (1978), que publicou o livro de mesmo nome considerado como obra fundacional da teoria pós-colonial (SAID, 2003). Esse conceito é usado para explicar o processo pelo qual os pensadores e líderes ocidentais criaram um discurso, um sistema de verdade, no qual o não-Ocidente foi entendido como exótico, inferior e misterioso, que deveria ser temido ou controlado. O “Orientalismo” estabeleceu um padrão monolítico de conhecimento e cultura que colocou o “Ocidente” como centro e tudo em torno dele como primitivo e inferior, o “Outro” (SAID, 2003). Enquanto palestino, Said elaborou o conceito tendo como base o contexto do Oriente Médio e da Ásia.

Na perspectiva descolonial, voltada para América Latina, esse processo foi desenvolvido por meio do conceito de eurocentrismo (DUSSEL, 2000; QUIJANO, 2005). Nesse sentido, o Ocidente deixa de ser apenas um termo geográfico para se tornar uma metáfora da cultura e de um sistema de pensamento baseado na Europa (eurocentrado) que é exportado como pensamento único (MCEWAN, 2009).

O Orientalismo é um conceito útil para descrever e compreender as estruturas de relações de poder dentro dos binarismos eurocentrado de Norte/Sul, ou “Primeiro”/“Terceiro” mundo, “Desenvolvido”/“Subdesenvolvido”, “Primitivo”/“Civilizado” que persistem relevantes na discussão sobre desenvolvimento, Estado e democracia até hoje, como nos debates sobre necropolítica, terrorismo, direitos dos povos e comunidades tradicionais, e direito das mulheres, para citar alguns exemplos.

Na mesma linha, na América Latina, Dussel denuncia o eurocentrismo ao destacar que a concepção da Europa como centro do mundo é uma invenção ideológica que apresenta a cultura grega como exclusivamente europeia e ocidental, como se sempre tivesse sido o “centro” da história (DUSSEL, 2000, p. 2,3). Dussel revela que a narrativa que coloca a Europa no centro do mundo desconsidera as diversas histórias de distintos povos da humanidade e o próprio lugar geopolítico da Europa, muito mais no limite ocidental do mercado euro-afro-asiático. 

3 – O mito da modernidade

Uma das principais expressões do Orientalismo e do eurocentrismo foi a construção do mito da modernidade. Dussel, um dos principais filósofos da teoria da libertação, explica o mito da modernidade descrevendo-o como a ideia autodesenvolvida de que a Europa moderna era mais desenvolvida do que o resto do mundo (DUSSEL, 2000, p. 49). Essa superioridade criou uma imposição na dinâmica de poder, exploração e dominação para lograr o “progresso” prometido nas sociedades “subdesenvolvidas” e ditas “primitivas”. Com base nessa concepção, caso os “bárbaros” resistissem à civilização, a violência seria usada como recurso pelo “bem” da comunidade a ser modernizada. A violência e o sofrimento dos “primitivos” eram entendidos como uma circunstância inevitável, por vezes necessária, para chegar ao caminho natural do “progresso”. Era tratada como uma “violência inocente”, pois teria sido produzida por sua própria culpa: resistir ao “progresso” e à “emancipação” (DUSSEL, 2000, p. 5). Dessa forma, atrocidades foram cometidas contra as populações consideradas “primitivas” enquanto povos foram dizimados e suas histórias apagadas. A narrativa da modernidade defende que assim se deu a “evolução” da humanidade, fundada na violência “inocente” praticada pelos europeus para o próprio “bem” dos “não-europeus”. 

Segundo Dussel (2000), somente quando negamos a inocência dessa violência e o mito da modernidade será possível reconhecer a dignidade do “Outro”, “Oriental”, exótico, bárbaro e primitivo, aquele sobre o qual não conhecemos por meio das lentes modernas. O autor também cita o mito do estado de natureza (criados pelos autores contratualistas na construção do Estado moderno), que contribui para separar corpo e mente, reiterando a ideia de que os dominadores, racionais, modernos e evoluídos, são civilizados enquanto os dominados (fora do contrato social eurocêntrico) são raças inferiores, irracionais, primitivas e subdesenvolvidas, mais próximas da “natureza” e dos animais (e das mulheres). 

Desconstruir o mito da modernidade permite-nos denunciar os Estados modernos como estruturas coloniais e patriarcais, que se fundaram na desumanização dos povos originários e das populações escravizadas, com efeitos que se perpetuam até os dias atuais. Segundo Mignolo (2014, p. 46), a democracia liberal (fundada pelo Estado moderno) é na verdade uma armadilha que beneficia a poucos (brancos e europeus) e marginaliza os demais. 

Não é preciso muita imaginação para comparar o mito da modernidade ao mito do “desenvolvimento”, da “segurança” e, também, em alguma medida, dos “direitos humanos”. As vítimas desses projetos (de guerra contra o terrorismo, guerra contra as drogas, dos deslocados por megaprojetos de infraestrutura e grande eventos, ou das vítimas das intervenções pela ordem, segurança e, muitas vezes, direitos humanos) são as mesmas de sempre, que as teorias pós-colonial e descolonial chamam de “subalternas”. O trabalho dos estudiosos pós-coloniais e descoloniais em desconstruir esses mitos temporais e espaciais é útil para compreender as relações de poder e os efeitos de certas políticas e práticas na vida daqueles que são os mais afetados por elas. 

Rita Segato (2013) destaca que é preciso reconhecer a continuidade histórica entre a conquista colonial, o ordenamento colonial do mundo e a formação pós-colonial republicana que se estende até hoje. Para a autora: 

“Nesta linha histórica, o termo ‘bárbaros’, como descrito atualmente pela imprensa para os bandidos, é o mesmo usado anteriormente, como parte da barbárie civilizatória, para caracterizar os índios, e mais tarde, todos aqueles que permaneceram fora da disciplina da lei, todos os não-brancos” (SEGATO, 2013, p. 264, tradução nossa).

No mesmo sentido, Spivak nos atenta para o risco de se utilizar o discurso dos direitos humanos como forma de corrigir os grupos de pessoas que não se enquadram na categoria do “sujeito moderno”, da mesma forma como foram justificadas as “violações capacitantes” (enabling violations) da produção do sujeito colonial com base no mito da modernidade (SPIVAK, 2004). A utilização do discurso dos direitos humanos para justificar intervenções humanitárias, por exemplo, pode se aproximar das narrativas que um dia permitiram a realização de atrocidades e extermínios em nome do fardo do homem branco colonial de levar “desenvolvimento” e “civilização” para as populações primitivas onde se queria colonizar e dominar. No mesmo sentido, ocorrem as intervenções do Estado brasileiro nas comunidades do Rio de Janeiro, com a justificativa de trazer segurança, levam terror e morte aos moradores das periferias. 

As teorias pós-colonial e descolonial clamam por uma nova epistemologia, complexa, lenta, localizada, focada no subalterno e que inclua a diversidade das experiências histórico-políticas e culturais. Nesse sentido, Luiz Tapia propõe a experimentação de políticas selvagens, de desorganização e suspensão da ordem social de opressão e das estruturas de desigualdades que possibilitem tempos de intersubjetividade igualitária (TAPIA, 2008, p. 126). Apenas uma teoria complicada, selvagem e fluída conseguirá começar a responder aos desafios sociais contemporâneos para um debate realmente democrático. 

A proposta descolonial avança no sentido de buscar alternativas de democracia e de práticas políticas fora do eurocentrismo e dos pressupostos da modernidade. Como apontado por Mignolo:

A democracia liberal é apresentada por aqueles que acreditam nela como a opção preferida. O mesmo ocorre com as outras opções. Entretanto, o diferencial de poder ainda está vigente. “Democracia” ainda reina no senso comum. A tarefa de descolonizar a democracia consiste em remover as espessas camadas de senso comum que consomem a ideia de democracia sem refletir sobre o que traz nela os traços da colonialidade. A questão é que se sempre foi uma aberração fingir que os fins propostos pela filosofia política e econômica de uma história local são válidos para as outras, a aberração já começou a ser corrigida (MIGNOLO, 2014).

4 – Diferença do Terceiro Mundo

Segundo Mohanty (1988,  2020), a partir de uma interpretação do mundo, geralmente realizada por intelectuais brancas, ocidentais e do Norte Global e de suas experiências e pontos de vista, o feminismo hegemônico apresentou uma narrativa de exploração e violência sexual que seria universal e comum a todas as mulheres, com base na sua subordinação pelas relações de gênero. Devido a essencialização geopolítica feita por mulheres posicionadas no “Primeiro Mundo”, o feminismo branco criou a narrativa de que essas violências seriam ainda mais intensas no “Terceiro Mundo”, silenciando as narrativas de resistência  e protagonismo das mulheres localizadas na periferia do mundo eurocentrado. Dessa forma, o feminismo hegemônico criou a narrativa da “Diferença do Terceiro Mundo” e de uma categoria monolítica de “Mulheres do Terceiro Mundo” como vítimas autênticas (MOHANTY, 1988). Nessa perspectiva, a experiência das mulheres ocidentais e brancas (eurocêntrica) foi utilizada como parâmetro para definir o que é ser mulher, omitindo a diversidade cultural e a pluralidade das mulheres e dos seus contextos sociais, retirando-lhes toda a capacidade de agência e as figurando como permanentes vítimas. Dessa forma o feminismo hegemônico estabelece uma relação de saber-poder a partir de seus lugares de privilégio de sexo, raça, sexualidade e geopolítica.

Mohanty (1988) argumenta que, assim como no Orientalismo, esse tipo de feminismo (hegemônico), ao criar uma ideia de opressão sexual universal entre as mulheres, gerou uma noção ou categoria monolítica de mulheres que, por consequência, gerou uma segunda categoria identitária e monolítica de “Mulheres do Terceiro Mundo”, enquanto mulheres não-ocidentais que compartilham a mesma opressão. Em geral, “as Mulheres do Terceiro Mundo”, por estarem posicionadas geopoliticamente em um local menos privilegiado dentro do sistema-mundo capitalista, foram consideradas como mulheres ignorantes, impotentes, pobres, sem instrução e vitimizadas, constituindo uma colonização das experiências heterogêneas de mulheres não-ocidentais. Mohanty chamou essa visão essencializada, monolítica e simplificada das mulheres de “Diferença do Terceiro Mundo” (MOHANTY, 1988). 

A crítica feminista pós-colonial apresentada por Mohanty repercutiu em um intenso debate nos estudos de gênero e, associada às críticas apresentadas pelas feministas negras, chicanas, especialmente as localizadas no “Ocidente”, contribuiu para promover reconsiderações e desenvolvimentos teóricos mais complexos e densos sobre as categorias de “mulheres” nos estudos feministas, produzindo, entre outros debates e conceitos, o pensamento feminista interseccional, fronteiriço e descolonial.

5 – Diferença Colonial

No mesmo sentido, o pensador da teoria descolonial Walter Mignolo desenvolveu o termo “Diferença Colonial”. Para ele:

A colonialidade do poder é o dispositivo que produz e reproduz a diferença colonial. A diferença colonial consiste em classificar grupos de pessoas ou populações e identificá-los em suas falhas ou excessos, o que marca a diferença e a inferioridade em relação àquele que classifica. A colonialidade do poder é, acima de tudo, o lugar epistêmico de enunciação no qual o poder é descrito e legitimado. Neste caso, o poder colonial”(MIGNOLO, 2014, p. 39).

Tanto a “Diferença do Terceiro Mundo” de Mohanty quanto a “Diferença Colonial” de Mignolo são expressões do orientalismo e do eurocentrismo aplicadas aos sujeitos do “Terceiro Mundo” ou aos sujeitos coloniais de forma a essencializar e homogeneizar as suas experiências. Presume-se que, como o sujeito colonial está localizado em um lugar periférico no mapa do colonialismo, sua experiência será “naturalmente” mais opressiva e frágil. Dessa forma, presume-se que o sujeito do Terceiro Mundo é essencialmente mais frágil, identificando-lhe como perpétua vítima. 

Essas são formas de retratar e classificar as pessoas e povos de forma homogênea e pejorativa, ou os identificando como cruéis estranhos/terroristas ou como vítimas a serem resgatadas e pobres inocentes. Por meio da Diferença do Terceiro Mundo/Colonial, o sujeito colonial é essencializado, homogeneizado, inferiorizado e excluído de agência/autonomia e do poder. 

6 – A colonialidade do poder e a invenção da raça

Anibal Quijano, sociólogo peruano, sistematizou e ampliou a compreensão do processo de inferiorização hierárquica e dominação através da diferença colonial por meio do conceito-chave de “Colonialidade do Poder” (QUIJANO, 2005). Para o autor, o capitalismo mundial, com base nas raízes coloniais e eurocentradas, criou um novo padrão de poder mundial através do controle da subjetividade, da cultura, do conhecimento e do trabalho e do controle dos seus recursos e produtos em torno do capital e do mercado mundial. Nesse processo, a invenção da raça tem papel primordial, sendo a principal categoria mental da modernidade na qual irá se fundar a hierarquização social e a divisão internacional do trabalho. Segundo Quijano, tanto a colonialidade do poder, quanto a ideia de raça são fenômenos que se dão de forma muito particular na região da América.  

Quijano (2005) identifica a América como o primeiro espaço/tempo deste novo padrão de poder mundial. Antes do “descobrimento” da América, não havia uma construção narrativa de raça no seu sentido moderno. É com o encontro da “América” que se cria a “Europa” e as novas categorias identitárias forjadas pela colonialidade do poder. Nesse novo contexto, o discurso colonial e moderno criou identidades sociais historicamente novas, agrupando diversos povos e comunidades completamente distintas e plurais (cada um com a sua própria história, linguagem, cultura, memória e identidade) em categorias identitárias homogêneas de “índios”, “negros”, “mestiços” e “brancos”. Essas categorias foram (e são) determinantes para a distribuição da população em níveis, espaços e papéis hierárquicos na estrutura de poder da nova sociedade capitalista, gerando uma divisão racial do trabalho em níveis globais. 

Essas diferenças identitárias são visíveis e localizam as pessoas subalternizadas nos diversos espaços à margem dos territórios valorizados, das profissões mais bem remuneradas, do acesso à informação e da produção do conhecimento, das normas e, especialmente, do controle do Estado. Forma-se uma verdadeira hierarquia étnico-racial global.

No novo contexto capitalista global, Mignolo destaca o paradoxo de que a ideia de democracia foi montada nos Estados ditos hoje como desenvolvidos durante o mesmo período em que seu crescimento econômico se deu às custas das colônias e do comércio advindo de sua exploração, e de guerras como a guerra do Ópio (MIGNOLO, 2014, p. 26). A democracia ocidental foi construída ao mesmo tempo em que eram explorados os recursos, mas, especialmente, as pessoas dos países em desenvolvimento, das ex-colôniais, do “Terceiro Mundo”, do “Sul Global. Enfim, a igualdade proposta pelo discurso democrático foi forjada por uma contradição histórica.

Nesse lugar da história e da distribuição global, o Estado brasileiro se formou dentro de um contexto em que o controle do trabalho esteve articulado para favorecer o desenvolvimento do capitalismo global e colonial, no qual se inseria como colônia de exploração (QUIJANO, 2005). Assim, a colonialidade do trabalho determinou a distribuição geográfica social do capitalismo e fez com que a Europa se constituísse no centro do mundo capitalista (QUIJANO, 2005). Nesse contexto, as identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas aos papéis e lugares que se ocupava na nova estrutura global de controle do trabalho, que resultou em uma divisão racial do trabalho tão explicita nos indicadores sociais globais e nacionais ainda hoje.  

É inviável pensar ou problematizar as questões sobre democracia no Brasil sem reconhecer as origens coloniais dos nossos problemas atuais, especialmente das categorias de trabalho e identidades. 

Como retrata Rita Segato (2013), o lugar da empregada doméstica no Brasil é uma herança colonial, que passou das escravas, às amas de leite, às amas-secas, até chegar às babás e às empregadas domésticas contemporâneas, em sua maioria negras. Segundo a autora, a hierarquia que o trabalho doméstico remunerado ocupa no mercado de trabalho contemporâneo também reflete essa herança identitária. A empregada doméstica no Brasil é o retrato da colonialidade do poder e suas intersecções entre raça, classe e gênero.

Entende-se que não há como pensar em representatividade, participação e democracia no Brasil sem considerar, por exemplo, a necessidade de transformação da representação das mulheres negras no imaginário político-social e cultural da sociedade. Apenas quando houver a naturalização da presença de mulheres negras nos espaços de poder, poderemos iniciar, dar o primeiro passo, rumo a um processo de transformação verdadeiramente democrático, antirracista, feminista e descolonial.

Ao mesmo tempo, refletir sobre uma democracia pluralista antirracista e feminista deve reconhecer como legítima outras formas de saber e viver distintas dos moldes ocidentais instituídos pelo processo colonial capitalista e respeitar as diferenças dos modos de vida, de forma a promover o pluralismo democrático.

Conclusão

Os pensamentos descolonizadores apresentam conceitos e perspectivas inovadoras que complicam, desarmonizam e aprofundam os debates acerca do Estado moderno, cidadania e democracia em sua pretensão representativa e de garantia de direitos iguais. Os pensamentos questionam a coerência evolutiva das narrativas históricas e desenvolvimentistas, dialogando, complicando e se contrapondo a conceitos modernos, como a ideia de direitos humanos, de forma a expandir o debate para além dos limites do conhecimento ocidental. Não nos apresentam respostas prontas, mas nos orientam a reconhecer as ambivalências dos conceitos e tensionar a realidade na medida da nossa utopia inclusiva e plural.

Espera-se que a partir dos conceitos apresentados o artigo tenha contribuído para a compreensão dos pensamentos descolonizadores e suas ferramentas metodológicas que buscam contribuir para a descolonização do debate sobre a democracia e representação no Brasil, localizando a construção do Estado brasileiro no seu contexto colonial, escravocrata, capitalista, patriarcal e eurocentrado.  

Assim, os pensamentos descolonizadores, por meio dos conceitos da teoria da perspectiva promovem a adoção de uma postura fortemente objetiva, reflexiva e localmente responsável, evitam o eurocentrismo, denunciam o mito da modernidade e a colonialidade do poder, rejeitam a exclusão racializada dos povos não-europeus e promovem a busca da transgressão das estruturas de opressão coloniais. 

Destrinchando e escancarando a complexidade e a colonialidade do poder entre as experiências e saberes, os pensamentos descolonizadores orientam a reconhecer a complexidade dos debates e disputar narrativas para lutar por uma democracia em que seja possível imaginar diversos sujeitos plurais não-ocidentais atuando como verdadeiros agentes e sujeitos, em diálogo coletivo e responsável, convivendo em seus diversos modos de vida.

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