Dulce Pereira
Originalmente publicado em Congresso em foco – https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/quilombadas-de-alcantara-versus-o-estado-brasileiro-por-um-brasil-mais-justo/, em 05.05.2023.
Em janeiro de 1980 o Centro Espacial de Alcântara (CLA), planejado no regime militar e encampado pelo General João Figueiredo, era uma ameaça distante para o povo daquele paraíso, para aquele povo negro e de origem indígena que desde o XVII ali estava. O que estava em jogo e permanece é a colossal riqueza da cultura de Alcântara, produzida naquela área rica em biodiversidade. Na Amazônia Legal, a Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses, foi reconhecida como patrimônio nacional brasileiro em 1948. Aquele é um mundo, entretanto, que não mais existe.
Está em pauta a exploração comercial da base de Alcântara que demanda ampliação da área ocupada, projeto que caminha há anos, proposta avançada no governo Bolsonaro, e consolidada por um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado entre o Brasil e os Estados Unidos. Juristas afirmam que tal projeto implica em desvio de finalidade do Centro de Lançamento. Como ocorreu na construção do CLA a partir de 1982, o planejamento da expansão demanda remoção de pessoas e, como na implantação do centro, mais quilombolas seriam deslocados de suas comunidades ou de Alcântara. Ilustra Luzia Diniz, quilombola deslocada de sua comunidade para a agrovila Marudá, nos informa contundente: “…. nós sofremos todas as consequências desse projeto. Eu digo que é um projeto que foi da morte porque deixamos pra trás a nossa vida, nós deixamos todo um patrimônio de diversidade que a natureza nos oferecia, tudo com fartura, nós tínhamos uma riqueza imensa de produtos naturais”. Não há autonomia comunitária e as vilas não têm potencial produtivo.
Foram muitas as perversidades nos territórios, como o fato de o exército capacitar negros para remover a pessoas e treinar 30 jovens de Alcântara em São José dos Campos, em 1982, para se tornassem soldados. Esses “Filhos de Alcântara” foram trabalhar na base e atuaram na remoção, inclusive de seus parentes.
Bairros de São Luís, a 22 km de Alcântara, abrigam pessoas vulnerabilizadas pelos processos de desarticulação comunitária e expulsão. São locais que acumulam desigualdades, racismo ambiental e precariedade de serviços, embora as famílias pratiquem sua arte e religiões, enriquecendo a singularidade da cultura maranhense na capital. Assevera Luzia Diniz: “…muitos companheiros e companheiras tiveram de abandonar as casas e morar em São Luís em busca de uma vida melhor e alternativa para seus filhos também estudarem. Mas só que isso não foi bom. Em parte, a maioria naqueles jovens que foram para São Luís entraram no mundo errado, da droga, da prostituição, da gangue e tivemos famílias que receberam seus filhos no caixão. Então, isso é muito triste”.
O Estado brasileiro está sob julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelas violações cometidas contra a comunidade quilombola, onde as mulheres que foram submetidas a violência sexual, e toda sorte de constrangimentos, pagam alto preço pela desestruturação comunitária e desarticulação do processo produtivo, onde até a autonomia para empreender tem sido impedida! “Esse caso é emblemático do tratamento histórico que o Estado dispensa às comunidades quilombolas do Brasil, especialmente aquelas cujo conflito se dá diretamente com o Estado”, segundo o cientista social Danilo Serejo, coordenador do Grupo de Assessoria Jurídica das Comunidades Quilombolas de Alcantara.
Na audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizada no Chile, em 26 de abril passado, o governo brasileiro pediu perdão formal pelas violações de direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Foram 40 anos de remoções forçadas e desapropriações nos quilombos, sem que fossem ouvidos, sem que os laudos técnicos e portarias de reconhecimento fossem considerados ou as audiências públicas respeitadas. Foi um pedido de perdão seguido de proposta de criação de um Grupo de Trabalho pelo Presidente Lula, para cumprir o estabelecido no Tratado, e inclui reparação financeira, como demandado pelas comunidades. No entanto, os quilombolas não acreditam que as violações cessaram. Avalia o pesquisador Danilo Serejo: “Com relação ao pedido de desculpas feito durante a audiência, considero importante, mas está aquém do que pedimos e merecemos. O Estado pediu desculpas, mas naquilo que nos é mais caro – a titulação, não assumiu compromissos concretos.”
A denúncia do Estado perante a CIDH feita pelos quilombolas cria mais uma oportunidade para que o Brasil aproxime o discurso de Direitos Humanos da prática e honre o compromisso constitucional de proteger essas comunidades, celeiros de biodiversidade e cultura. Traz o executivo para o cumprimento da constituição e dos compromissos firmados com o conjunto de nações signatárias da Convenção, ainda ignorados no caso das comunidades negras e de outros povos tradicionais. Certamente por isso o Presidente Lula estabeleceu prazos, por meio do Decreto nº 11.502, para a titulação progressiva dos territórios. Afinal, o reconhecimento das comunidades está formalizado pela Fundação Palmares desde 2004, resta efetivar a titulação pelos órgãos responsáveis. Serejo analisa:
“É a primeira vez na História do país que o Estado está sendo julgado por crimes cometidos contra quilombolas. É um caso cuja importância transcende muito as partes diretamente envolvidas… O caso em julgamento não se desloca dessa realidade de abandono e seu resultado deverá criar um importante precedente jurídico no Sistema Interamericano de Direitos Humanos em relação a proteção de territórios Quilombolas no Brasil.” Oxalá!
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AUTORIA
DULCE PEREIRA – Arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto, onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental. Primeira embaixadora negra do Brasil, foi secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi suplente do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e presidiu a Fundação Cultural Palmares. Mãe, feminista e ativista do Movimento Negro Unificado, integra várias redes nacionais e internacionais de pesquisadores e cientistas. Seu principal tema de estudos, nos anos mais recentes, têm sido as contaminações e desastres ambientais causados por rompimento de barragens.