Atriz
Ruth Pinto de Souza foi atriz negra pioneira no teatro, no cinema e na televisão, ao se tornar a primeira mulher e a primeira mulher negra a atuar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, além de ser a primeira mulher brasileira a receber indicação para prêmio internacional de atuação. Ruth nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 12 de maio de 1921.
Era filha de família humilde, a mãe, a lavadeira Alaíde e o pai um lavrador chamado Sebastião. Ainda criança, foi morar com os pais em uma fazenda no interior de Minas Gerais. Com o falecimento do pai, Ruth, a mãe e seus três irmãos voltaram a viver no Rio de Janeiro, onde aprendera as primeiras letras com a mãe e, mais tarde, estudou em um colégio interno. Foi também D. Alaíde quem a levou às primeiras sessões de teatro e cinema. Ruth logo se apaixonou pela arte e sempre recebeu incentivo da família.
Ruth de Souza tornou-se cinéfila a partir de sua paixão pelo filme Tarzan, o filho das selvas, de 1932. Era apaixonada por musicais, dramas e histórias, mas os grupos de teatro amador, experimental e profissional de sua época não tinham espaço para atores negros. Neste cenário, em 1944, Abdias do Nascimento fundou o TEN – Teatro Experimental do Negro.
Na obra Relações raciais, gênero e memória: a trajetória de Ruth de Souza e o Teatro Experimental do Negro e o Karamu House (1945-1952) de Júlio Cláudio da Silva, Ruth descreve que tinha admiração pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro: “O Teatro Municipal, para mim, é uma coisa muito importante, o prédio, sua arquitetura… aquilo que é um monumento, é a oitava maravilha… é a coisa mais linda que eu acho no mundo…”. O autor relembra que a mãe de Ruth passou a prestar serviços como lavar roupas e fazer bolos, doces e salgadinhos para fora. Assim, por intermédio de algumas patroas, ela conseguia entradas para o Instituto Nacional de Música e para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ruth também conta um caso inusitado desta época: “Um dia, minha mãe não conseguiu ingresso para eu ir ao Teatro Municipal, mas conseguiu com um dos porteiros que eu entrasse pela porta dos fundos e eu assisti a ópera dos bastidores.”
Ruth tinha 17 anos quando ingressou no TEN. Assim que soube que o grupo se reunia na UNE – União Nacional dos Estudantes, Ruth foi ao TEN para, no primeiro encontro, já ler um texto e entrar para o elenco. Ruth assim descreve seus pensamentos e sentimentos neste momento: “Entrei para o TEN porque queria ser atriz! Não tinha consciência do que era tudo aquilo, do que tudo representava para a época. O movimento foi crescendo, ganhando espaço e atraindo gente. O mundo artístico, o teatro, é uma coisa mágica, que atrai muita gente”. O TEN foi um marco no panorama do teatro brasileiro, pois incluía conteúdos nacionais e colocava artistas negros para atuar.
Ruth se juntou ao grupo e logo estreou a peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neil, em 8 de maio de 1945, noite de celebração do fim da Segunda Guerra Mundial. Uma linda coincidência a data de estreia de Ruth no teatro, considerando que sua trajetória brilhante representa a derrota do ideário racista brasileiro e mundial, enquanto o fim da Segunda Guerra Mundial representava o ideário racista defendido pelo nazismo. A autora descreve assim a história da primeira peça de Ruth, na qual representou a única personagem feminina: “A peça conta a história de Brutus Jones, um negro que consegue ser proclamado Imperador em uma ilha nas Antilhas, e assim discute a condição racial do negro”.
Ruth construía o início de sua carreira durante a efervescência político-cultural da década de 1940, quando o centro da então Capital da República, a cidade do Rio de Janeiro, reunia a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Teatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, a Associação Brasileira de Imprensa, o Teatro Ginástico e os cafés. Neste espaço Ruth interagiu com pessoas como Portinari, Ziembinski, o escritor Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Aldemir Martins, Manuel Bandeira.
Ruth de Souza iniciou sua carreira no cinema através de um convite de Aníbal Machado, que transformava sua garagem em Ipanema em um grande estúdio para estudantes e intelectuais. Graça Melo adaptou “Terra do Sem Fim”, de Jorge Amado, para o teatro com a participação de Ruth. Após a adaptação, Amado vendeu os direitos autorais para uma versão cinematográfica, “Terra Violenta” e indicou Ruth para o mesmo papel que ela desempenhou na peça. O filme, dirigido por E. Bernoudy, contou com Anselmo Duarte e Grande Otelo no elenco.
Um dos momentos marcantes da trajetória de Ruth de Souza foi seu estudo de teatro nos Estados Unidos. Em 1951, após indicação de Pascoal Carlos Magno, Ruth recebeu uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller. Ela foi convidada pela diretora e cofundadora do Karamu House, Rowena Woodham Jelliffe, para passar nove meses nos EUA, exercendo várias funções no teatro, incluindo atriz, diretora-estudante, diretora de cena, stage crafter e diretora financeira. A instituição demonstrou sensibilidade à formação racializada de Ruth, sugerindo que ela passasse uma semana em uma universidade para negros e duas semanas em Nova Iorque, sob os cuidados da ANTA (American Theatre and Academy), para incluir o teatro da Broadway em sua formação teatral.
Em Ruth de Souza: estrela negra, de Maria Angela de Jesus, a própria atriz revela com detalhes e sensibilidade a trajetória que viveu. Ruth relembra como foi a experiência logo ao chegar aos EUA: “A bolsa me assegurava estágio de um ano nos Estados Unidos, em universidades e escolas de teatro. Logo que cheguei me mandaram a Cleveland, Ohio, para estagiar na Karamu House. Um mês depois, estreei uma peça já falando inglês. Na Karamu House tínhamos todas as atividades ligadas a teatro. Eu saía de casa às 8 horas da manhã e só voltava às 10h30, 11 horas da noite. Fazíamos aulas de dança, canto, música e história do teatro. Havia também teatro infantil, com um grupo de crianças, que faziam seu próprio teatro. Era um trabalho lindíssimo. Tinha também o grupo dos adolescentes, os teenagers, que montavam muitas peças, com vozes lindíssimas, quase todos tocavam piano ou algum outro instrumento musical. Eram espetáculos musicais elaborados por eles, com a orientação dos professores. Havia, então, a temporada de teatro, onde fazíamos um pouco de cada uma das atividades de 93 teatro. Por exemplo, fui assistente de direção de uma montagem de Porgy and Bess e de uma outra peça, Shadow of a Gunman, na qual fui também contrarregra e diretora de palco. Como atriz fiz Dark of the Moon. Enfim, eu trabalhava constantemente. O mais importante é que íamos assimilando todo o processo de montagem de um espetáculo. E percebíamos que poderíamos fazer tudo aquilo sozinhos. Foi muito bom!”.
A carreira de Ruth foi próspera no teatro, no cinema e na televisão. Inclusive, a artista reflete sobre a experiência de atuar nos diferentes formatos quando entrevistada por Roselí Fígaro, Ruth disse que a televisão era uma eterna surpresa, pois geralmente era necessário preparar 6 capítulos em cada semana. Assim, os atores estudavam os textos no sábado e no domingo para filmar de segunda ou terça até sexta-feira, em uma correria constante. Com o desafio semanal de aprender textos completamente diferentes e as horas extensas de gravação, a atriz relembra que os atores dessas produções tendem a não ter tempo para se conhecerem de forma aprofundada. Em contraponto, ela relembra: “O cinema dá essa coisa gostosa de companheirismo. A Vera Cruz era um sonho. Todo mundo era uma família, uma grande família. Todos estavam juntos em cada canto, saía dali e ia para uma festa, visitar um outro. Tenho muita saudade de uma união que havia e não há mais. Na televisão terminou um trabalho, sumiu, nunca mais se vê.” Sob a perspectiva de atriz, Ruth reflete: “A televisão é um trabalho muito mais cansativo, até porque o teatro você vai todo o dia, mas depois já sabe todos os truques de todos os momentos.”
Ruth de Souza denunciou práticas discriminatórias que vivenciou desde a infância. Em seus depoimentos, ela explicou que seu desejo de tirar notas 10 na escola se originou de uma experiência dolorosa: ao ler um livro que descrevia as três raças e apresentava os negros de forma depreciativa, ela foi cruelmente provocada por colegas. Uma professora, Dona Anita, interveio, mas o episódio deixou uma marca profunda em Ruth, que passou a buscar excelência acadêmica para provar seu valor.
Além de suas palavras, a sensibilidade de Ruth se refletia em suas ações. Júlio Cláudio da Silva, em “Arte e antirracismo nas memórias e no acervo de Ruth de Souza (1940-1950)”, revelou que Ruth selecionou diversos documentos ao longo de sua trajetória, formando o Acervo Ruth de Souza/LABHOI-UFF. Esse acervo registra as experiências dos integrantes do Teatro Experimental do Negro (TEN) e destaca a reflexão sobre o que dizer e calar em suas atividades teatrais. Ruth usou essas memórias para falar estrategicamente sobre sua trajetória, racismo e arte.
Ruth de Souza foi uma pioneira no teatro e cinema brasileiros. Após retornar dos EUA, atuou no filme “Sinhá Moça” (1953) e se tornou a primeira brasileira indicada ao Leão de Ouro na categoria de melhor atriz coadjuvante. Ela relembrou a importância dessa indicação, destacando que perdeu o prêmio por apenas dois votos para Lili Palmer, o que foi extremamente significativo para sua carreira. Além disso, “Sinhá Moça” recebeu o Leão de Bronze na mesma bienal. Ruth foi a primeira brasileira a concorrer a um prêmio internacional de melhor interpretação feminina.
No teatro, destacam-se suas atuações nas peças “Réquiem para uma Negra” de William Faulkner (1983), “Orfeu da Conceição” de Vinícius de Moraes (1990), “Zumbi” de Guarnieri, Augusto Boal e Edu Lobo (1993), e “O Anjo Negro” de Nelson Rodrigues (1994).
Ruth também participou de várias produções cinematográficas, incluindo “Falta Alguém no Manicômio” (1948), “Também Somos Irmãos” (1952), “Terra é Sempre Terra” (1952), “Ravina” (1958), “Assalto ao Trem Pagador” (1962), “A Grande Arte” (1991), “Um Copo de Cólera” (1999) e “As Filhas do Vento” (2004).Na televisão, Ruth trabalhou para TV Tupi, Record, TV Excelsior e, desde 1968, para a Globo, estreando na novela “Passo dos Ventos”. Em 1969, tornou-se a primeira atriz negra a protagonizar uma novela, “A Cabana do Pai Tomás”, interpretando Tia Cloé.
Ruth foi homenageada com diversos prêmios ao longo de sua carreira. Em 1985, o CICAB a homenageou no Palácio do Planalto em comemoração aos seus 40 anos de carreira, na presença do presidente José Sarney. Em 1988, recebeu a comenda do Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco. Em 1989, ganhou o prêmio Dulcina de Moraes por sua contribuição ao teatro. Em 2004, Ruth e Léa Garcia ganharam o Kikito de melhor atriz no Festival de Cinema de Gramado por suas atuações em “Filhas do Vento”. Em 2010, Ruth recebeu o prêmio Almirante Negro João Cândido da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por sua defesa dos direitos humanos da população afro-brasileira.
Ruth faleceu em 28 de julho de 2019, recebendo diversas homenagens. Para aqueles que sentem saudades, recomenda-se assistir aos vídeos “Ruth De Souza e Lázaro Ramos / Espelho” e “Ruth de Souza e Selton Mello | Tarja Preta” no Canal Brasil, e “CULTNE – ‘Quarto de despejo – Carolina Maria de Jesus’ – Ruth de Souza” no canal Cultne, no YouTube.
Reconhecida como uma grande atriz por seus pares e pelo público brasileiro, boa parte de sua carreira foi, no entanto, marcada pelo fato de ser negra. A maioria dos tipos que interpretou expressa sempre a cor da sua pele – escrava, mulher pobre, papéis secundários na trama – espelhando a contradição de nossa sociedade e o racismo que, infelizmente, ainda ronda o palco das artes. Ruth foi mais que uma pioneira das artes cênicas, foi uma estrela iluminada na arte de interpretar e uma guerreira na arte de enfrentar os preconceitos encontrados no caminho.
Elaborado por: Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher.
Palavras-Chave/TAG: #mulheres #teatro #ativismo #racismo #igualdade #literatura #feminismo #teledramaturgia #cinema
REFERÊNCIAS:
- Produções acadêmicas:
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- Sites:
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FOTOGRAFIA
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