Quando da sua criação, em 1943, a data comemorativa foi intitulada Dia do Índio, e assim permaneceu durante oito décadas. Concebida durante a ditadura do Estado Novo, por Getúlio Vargas através de um decreto-lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943, por influência do Congresso Indigenista Interamericano realizado no México, em abril de 1940, e pela pressão do indigenista brasileiro Marechal Rondon.
O objetivo do Congresso era discutir a situação dos povos indígenas das Américas e propor estratégias e ações a serem adotadas pelos governos da região a fim de garantir os direitos dos povos indígenas e a preservação de suas culturas. Um dos encaminhamentos aprovado ao final do evento foi a necessidade de se criar uma data comemorativa em todas as nações do continente americano a fim de celebrar a diversidade e as culturas dos povos indígenas de cada país. A data sugerida pelos participantes foi o 19 de abril, quando teve início o Congresso.
Em 2007, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Povos Indígenas, que estabelece padrões mínimos de sobrevivência, que incluem o direito à autodeterminação, ao autogoverno e a não sofrer assimilação cultural forçada, evitando assim a destruição de suas culturas. Esses padrões garantem também o direito de participação dos povos indígenas nas instituições do Estado
Depois de décadas de uso do termo índio, gerando muitos incômodos aos povos tradicionais, uma vez que a palavra carregava um sentido negativo, preconceituoso o nome foi substituído por Dia dos Povos Indígenas, através de um Projeto de Lei 5.466/2019, apresentado pela deputada federal Joenia Wapichana, de Roraima, que revogava o decreto de 1943 e pedia a alteração do nome da data comemorativa. Aprovado pelo Congresso Nacional, em julho de 2022.
Um ano depois, em 5 de julho de 2023, em sessão conjunta do Congresso Nacional, os parlamentares derrubaram o Veto 28/2022, do então presidente da República Jair Bolsonaro que insistia em manter o decreto original de 80 anos atrás. O Senado Notícias publicou o texto Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, substitui Dia do Índio após derrubada de veto revelando que 69 votos, sem votos contrários, derrubaram o veto de Bolsonaro. Já na Câmara, foram 414 rejeições aos vetos, contra 39 votos a favor de veto, e 2 abstenções.
Ainda que a vitória de 2023 seja importante, não devemos perder de vista que em 2024 a data comemorativa fez 81 anos, e que estamos muito longe da segurança jurídica plena em relação aos direitos humanos dos povos indígenas brasileiros e mundiais. A exemplo, A Comissão Pastoral da Terra (CPT), noticiou que o relatório Conflitos no Campo Brasil 2022, aponta que a Amazônia Legal concentrou 59% dos conflitos por terra em 2022. No ano anterior esse número era de 51%. A falta de uma política contundente somada ao desgoverno dos órgãos ambientais levou a Amazônia a vivenciar uma expansão desenfreada da fronteira agrícola, associada diretamente ao desmatamento ilegal e ao crime ambiental. O mais triste disso tudo: das 47 mortes registradas pela pesquisa, 72% ocorreu na Amazônia; indígenas representam 38% de todos os assassinados, sendo o grupo com mais vítimas fatais, na frente de sem-terras, ambientalistas, assentados e trabalhadores assalariados.
Devemos também lembrar de nosso passado recente. O jornalista Murilo Pajolla também publicou a reportagem Do Dia do Índio ao Dia dos Povos Indígenas: o que mudou em 80 anos desde a criação da data, no jornal Brasil de Fato. O autor relembra que desde a criação do 19 de abril, os povos indígenas fortaleceram suas organizações, formaram alianças entre seus diversos povos, assim como com indigenistas, e produziram marcos importantes para a história indígena, brasileira e mundial. Para termos noção, em 1961 a primeira terra indígena foi reconhecida pelo governo federal. O líder do Parque Indígena do Xingu era Raoni Metukire, provavelmente a primeira liderança indígena reconhecida internacionalmente pela luta por direitos humanos, especialmente dos povos indígenas. Infelizmente, a ditadura militar iniciada em 1964 liderou um trágico episódio do genocídio contra os povos indígenas brasileiros. Sem denúncias ou oposição, o SPT – Serviço de Proteção aos Índios e todo o Estado brasileiro se organizava para perpetrar tortura, abuso sexual e assassinatos em massa. As primeiras denúncias se tornaram o Relatório Figueiredo, e para colocar panos quentes no assunto que veio a público, houve a criação da Funai – Fundação Nacional do Índio, sem descontinuar a carnificina e o terror psicológico inicialmente denunciado.
Em contrapartida, os povos indígenas se associaram com entidades da Igreja Católica Apostólica Romana (como o Cimi – Conselho Missionário Indigenista e a Opan – Operação Amazônia Nativa), assim como com antropólogos que começaram a se organizar na Associação Brasileira de Antropologia. O pesquisador da política indígena Leonardo Barros revela que assim os povos indígenas foram construindo um processo de rede de aliados, sendo o trabalho com alianças uma característica política indígena em níveis local, nacional e internacional. Assim, quando houve a Constituinte de 1987 e 1988, os povos indígenas saltaram organizativamente. Décadas de genocídio ditatorial militar não impediu que os povos indígenas se juntassem a todos os setores da sociedade para reivindicar seus direitos. Surgem, assim, as bases organizacionais do movimento indígena brasileiro contemporâneo.
Devemos continuar lutando pela segurança jurídica em relação aos direitos dos povos indígenas. Hoje, podemos publicar conteúdo que celebre os povos indígenas – como fizeram (i) o MDHC – Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania no seu vídeo do YouTube 19 de Abril| Dia Nacional dos Povos Indígenas, (ii) a jornalista Simoneira Araújo na reportagem Primeiro ano que dia 19 de abril é chamado de Dia dos Povos Indígenas, para a Ufal – Universidade Federal de Alagoas, e (iii) a Agência Câmara de Notícias na reportagem Nova lei denomina o 19 de abril como Dia dos Povos Indígenas, em substituição a Dia do Índio. Ainda assim, obviamente, isso é insuficiente. Em nossas relações, devemos celebrar verdadeiramente os povos originários brasileiros, evitando a proliferação de termos e visões reducionistas e preconceituosas contra esses povos – termos e visões que, infelizmente, em tantos casos extremos, leva indígenas à morte. Da mesma forma, sempre que tivermos a possibilidade de nos organizarmos politicamente em torno dos povos indígenas e de suas lutas, combatendo o racismo ambiental, a misoginia contra mulheres indígenas, a escravidão moderna contra povos indígenas e seus descendentes, devemos nos posicionar, tomar partido. É desse jeito que construímos uma realidade verdadeiramente brasileira, abarcando todos aqueles que sempre viveram aqui, assim como todos os imigrantes que aqui queiram se estabelecer.
- Elaborado por Emilson Gomes Junior e Schuma Schumaher
Para saber mais:
- Sites:
19 de Abril| Dia Nacional dos Povos Indígenas. MDHC – Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, YouTube: 19 de abril de 2023. Disponível em: (292) 19 de Abril| Dia Nacional dos Povos Indígenas – YouTube. Acesso em 15 fev 2024.
ARAÚJO, Simoneide. Primeiro ano que dia 19 de abril é chamado de Dia dos Povos Indígenas. Universidade Federal de Alagoas: Alagoas, 19 de abril de 2023. Disponível em: Primeiro ano que dia 19 de abril é chamado de Dia dos Povos Indígenas — Universidade Federal de Alagoas (ufal.br). Acesso em 15 fev 2024.
Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, substitui Dia do Índio após derrubada de veto. Agência Senado: Brasília, 11 de julho de 2022. Disponível em: Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, substitui Dia do Índio após derrubada de veto — Senado Notícias. Acesso em 15 fev 2024.
Nova lei denomina o 19 de abril como Dia dos Povos Indígenas, em substituição a Dia do Índio. Agência Câmara de Notícias: Brasília, 11 de julho de 2022. Disponível em: Nova lei denomina o 19 de abril como Dia dos Povos Indígenas, em substituição a Dia do Índio – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 15 fev 2024.
PAJOLLA, Murilo. Do Dia do Índio ao Dia dos Povos Indígenas: o que mudou em 80 anos desde a criação da data. Brasil de Fato: Lábrea, 19 de abril de 2023. Disponível em: Do Dia do Índio ao Dia dos Povos Indígenas: o que | Direitos Humanos (brasildefato.com.br). Acesso em 15 fev 2024.
PAJOLLA, Murilo. Violência no campo se concentrou na Amazônia e indígenas são os que mais morreram, diz CPT. Brasil de Fato: Lábrea, 17 de abril de 2023. Disponível em: Violência no campo se concentrou na Amazônia e | Direitos Humanos (brasildefato.com.br). Acesso em 15 fev 2024.