Bióloga, feminista e líder do movimento sufragista
Bertha Maria Júlia Lutzfoi líder do movimento feminista no Brasil e na região Panamericana. Também foi bióloga, advogada e deputada federal. Bertha Lutz foi pioneira e uma importante liderança na luta pelo voto feminino no Brasil e uma das principais responsáveis por incluir o princípio da igualdade entre homens e mulheres na Carta das Nações Unidas. Sua contribuição para o feminismo é tão emblemática que o Senado Federal instituiu, em 2001, o Diploma Mulher Cidadã “Bertha Lutz” para homenagear as pessoas que contribuíram para a luta dos direitos das mulheres.
Nasceu no dia 02 de agosto de 1894, na cidade de São Paulo. Seu pai, Adolfo Lutz, era um cientista, pioneiro da medicina tropical no Brasil, e sua mãe, Amy Fowler, era uma enfermeira inglesa. Bertha era, portanto, anglo-brasileira.
Sua origem social permitiu-lhe ter acesso a uma educação diferenciada que não era comum nem para os homens brasileiros da época. Teve a oportunidade de estudar na Europa ainda adolescente e lá teve contato com o intenso movimento sufragista, tornando-se uma feminista.
Em 1918, com 24 anos, formou-se em ciências pela Universidade de Sorbonne e regressou ao Brasil. Aqui, tornou-se uma das principais líderes do movimento feminista. Suas ideias repercutiram na sociedade brasileira especialmente a partir do seu artigo Somos filhos de tais mulheres, publicado na Revista da Semana, em 14 de dezembro de 1918. O artigo foi escrito em resposta a um jornalista carioca que menosprezava a influência do progresso feminino nos Estados Unidos e Europa no Brasil, afirmando que as mulheres eram “animais de cabelos compridos e ideias curtas”. Em resposta, Bertha escreveu um artigo contundente em que relacionou o progresso feminino com desenvolvimento das Nações e defendeu a organização das mulheres brasileiras para lutarem por seu progresso. Segundo Schuma Schumaher e Érico Vital, Bertha escreveu: “A situação em que vamos ficar, nós as mulheres morenas, em frente das nossas irmãs louras, são lamentáveis. Somos nós que comporemos, agora, um terceiro sexo, inferior e humilde. A diferença que, dentro de pouquíssimo tempo, oferecerão das nações habitadas pelas mulheres socialmente secundárias, as grandes, fortes e saudáveis nações em que fará sentir se a influência pacífica, amorável, humanitária e disciplinada da mulher, corrigindo a grosseria insolente, os vícios repugnantes e a combatividade anarquisadora dos homens será de tal modo sensível que a humanidade se dividira sob o ponto de vista da moral, em povos que dignificam a mulher e povos que continuam a desprezá-la.”
Logo depois de publicar o artigo, em conjunto com outras ativistas, como Maria Lacerda de Moura, Bertha fundou a “Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher” (LEIM), que deu origem à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Esta última, fundada e presidida por muitos anos por Bertha Lutz, foi a principal instituição para o progresso feminino e responsável por liderar a campanha sufragista no Brasil. A Liga foi originalmente composta por mulheres da elite branca e burguesa carioca que buscavam atuar em prol do progresso e da garantia de mais direitos para as mulheres no Brasil. No entanto, ao expandir o movimento e formar a Federação, mais mulheres de diversos perfis uniram-se em torno da causa feminista. O feminismo defendido por Bertha e pela FBPF foi definido por algumas historiadoras como feminismo “bem comportado” ou “tático”, aproximando-se do feminismo liberal típico do feminismo da primeira onda ou do feminismo liberal. De qualquer forma, a atuação do movimento consistia em explorar os contatos políticos e atuar na mídia dando visibilidade às demandas das feministas, que fizeram muito sucesso na época.
Em 1919, Bertha Lutz tornou-se a segunda brasileira a ingressar no serviço público após passar no concurso para bióloga do Museu Nacional. No mesmo ano, junto com Olga de Paiva Meira, Bertha representou o Brasil no Conselho Feminino Internacional, órgão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde contribuiu para a aprovação dos princípios de salário igual para ambos os sexos e a inclusão da mulher no serviço de proteção aos trabalhadores.
Como fundadora e presidente da Liga (LEIM), Bertha Lutz buscou manter relações com o movimento feminista internacional como forma a dar maior visibilidade e força às mobilizações no Brasil. Sendo assim, ela manteve contato e relações com grupos em prol da emancipação feminina como National Union of Societies for Equal Citizenship, International Woman Suffrage Alliance, Alianza Uruguaya para el Sufragio Feminino, Leslie Woman Suffrage Comission, National League of Women Voters, National American Woman’s Suffrage Association. Em 1922, participou da Conferência Panamericana de Mulheres, que ocorreu na cidade de Baltimore, nos Estado Unidos da América, fortalecendo seu vínculo com o movimento norte-americano e ganhando maior visibilidade enquanto líder feminista no Brasil. Na Conferência, foi fundada a Associação Panamericana de Mulheres, com Carrie Catt como Presidente e Bertha Lutz como vice-presidente geral.
Nos anos 1920, Bertha Lutz foi protagonista das principais articulações para aprovação do voto feminino e pelo direito às candidaturas das mulheres no Brasil. Em 1927, Bertha Lutz, em conjunto com as principais lideranças da FBPF, como Jerônima Mesquita, Carmen Coutinho, Ana Amélia Carneiro de Mendonça, Almerinda Farias Gama e Maria Eugênia Celso, conseguiu a manifestação favorável do relator do Projeto de Lei que garantia o direito de voto às mulheres na Câmara, o deputado Juvenal Lamartine. Com ele, estabeleceram uma parceria política duradoura. Pouco depois, quando o parlamentar potiguar se lançou candidato ao governo do seu estado do Rio Grande do Norte, contou com o apoio político das mulheres e da FBPF e garantiu, às mulheres, o direito de votar e de serem votadas no estado.
Como consequência dessa parceria entre governo do estado e as feministas, em 1928, Alzira Soriano foi eleita a primeira prefeita mulher da América do Sul pelo Município de Lajes, Rio Grande do Norte, antes mesmo que as mulheres tivessem o direito de votar e serem votadas em todo o Brasil. No entanto, naquele mesmo ano, apesar do PL sobre o voto feminino avançar na Câmara, não avançou no Senado. Para fortalecer sua articulação política, em 1929, Bertha decidiu entrar para o curso de Direito. No mesmo ano, participou da criação da União Universitária Feminina.
O trâmite do PL sobre o voto feminino no Senado voltou a ganhar fôlego apenas em 1930, mas foi interrompido pela suspensão das atividades parlamentares, ocorrida em face da revolução de 1930. Com a vitória do movimento revolucionário, houve pressão para realização de novas eleições e, para isso, a elaboração de um novo código eleitoral, demandado pelo Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas.
Após intensa articulação feminista, Bertha Lutz conseguiu ser nomeada para a Comissão de Juristas encarregada de redigir o novo Código Eleitoral. Sua participação foi decisiva, uma vez que o coautor do anteprojeto do código não havia incorporado as mulheres no texto, o que faria com que as mulheres não pudessem eleger representantes para a Constituinte e poderia preterir o debate sobre sufrágio feminino para outro momento, apenas na elaboração de uma nova Constituinte. Bertha e outros membros da comissão pleitearam a imediata inclusão da matéria no novo Código Eleitoral. Assim, em fevereiro de 1932, foi aprovado por Getúlio Vargas o novo código eleitoral brasileiro, incluindo o direito de voto às mulheres.
Também se lançou candidata à Assembleia Nacional Constituinte, mas não se elegeu, tendo sido vítima de acusações que mais tarde se provaram infundadas. No entanto, a articulação feminista, liderada por Bertha, conseguiu indicar como representante classista, para votar na Assembleia, Almerinda Farias Gama, advogada, sindicalista e mulher negra, representou o Sindicato das Secretárias e Datilógrafos. Outra mulher também esteve presente nesse processo como votante: Carlota Pereira de Queirós, médica, escritora e, posteriormente, a primeira mulher deputada federal eleita no Brasil, representando o estado de São Paulo.
Bertha atuou, por muitos anos, como Presidente da FBPF, utilizando seu status e articulação política em prol do progresso feminino. Organizou e participou de diversos Congressos e eventos, como os Congressos Nacionais Feministas, realizados em 1931, 1934 e, seu último na Presidência, em 1936.
Em 14 de outubro de 1934, Bertha tentou candidatar-se para Câmara Federal. No entanto, novamente, não conseguiu ser eleita, tendo alcançado a primeira suplência, que lhe garantiu assumir, em 28 de julho de 1936, o mandato de deputada federal, na vaga deixada pelo titular, Cândido Pessoa, que faleceu. Enquanto deputada, apresentou o projeto do Estatuto da Mulher, que tratava sobre trabalho feminino; também apresentou a proposta de criação do Departamento Nacional da Mulher, posteriormente aprovado como Departamento do Trabalho Feminino, Maternidade, Infância e Lar, como forma de oferecer assistência pública eficiente à mãe e à criança, contrariando a proposta das feministas.
Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas decreta o Estado Novo e determina o fechamento do Congresso Nacional. Com isso, o mandato de Bertha é encerrado. Também nesse contexto político, a mobilização da FBPF foi diminuindo.
Em 1945, Bertha Lutz foi delegada representante oficial do Estado brasileiro na Conferência de São Francisco, que redigiu a Carta das Nações Unidas. Bertha Lutz é reconhecida como a principal responsável pela inclusão do princípio da igualdade entre homens e mulheres na Carta da ONU, em seu preâmbulo e no artigo 8º. Para lograr tal inclusão, contou com o apoio de Minerva Bernardino, representante da República Dominicana, assim como o da representante do Uruguai e da delegação Mexicana – que contava com uma mulher como assessora. Essas delegações incluíram em suas composições mulheres que se identificavam com o feminismo panamericano. Lideradas por Bertha Lutz, elas enfrentaram a oposição de seus colegas, inclusive das representantes mulheres dos Estados Unidos e do Reino Unido para aprovar a proposta. Na época, Bertha Lutz foi considerada feminista radical. Hoje, essas duas únicas referências à igualdade entre homens e mulheres na Carta são um marco para a promoção dos direitos das mulheres em todo o mundo e um legado das delegações latino-americanas e do movimento feminista de mulheres panamericano. Também foi uma proposta de Bertha Lutz a criação da Comissão de Status da Mulher na ONU, um órgão específico para acompanhar o progresso das mulheres no mundo.
Em 1946, Bertha obteve um prêmio de viagem aos Estados Unidos, colaborando com o Club Soroptimista e sendo considerada a “Mulher do Ano”. Em 1951, foi premiada com o título de “Mulher das Américas” e, em 1952, foi a representante do Brasil na Comissão de Status da Mulher das Nações Unidas, criada por iniciativa sua. Até hoje a Comissão é o principal órgão intergovernamental responsável por promover os direitos das mulheres nas Nações Unidas.
Em 1953, foi eleita delegada do Brasil junto à Comissão Interamericana de Mulheres da União Panamericana de Repúblicas. Em 1975, no ano internacional das Nações Unidas para a Mulher, devido às pressões do movimento feminista internacional, Bertha foi convidada pelo governo brasileiro a integrar a delegação do país na I Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, realizada no México.
Foi membra de várias entidades internacionais tais como: Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino e Igualdade Política dos Sexos (Londres), Sociedade Internacional de Mulheres Geógrafas (Washington), Comissão Feminina Consultiva do Trabalho da Mulher, do Bureau Internacional do Trabalho, da Sociedade das Nações (Genebra), Bureau Internacional de Proteção à Natureza (Bruxelas) e Museu Americano de História Natural (Nova York).
Na qualidade de cientista, trabalhou durante 46 anos como docente e pesquisadora do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. Foi reconhecida internacionalmente por sua contribuição na pesquisa zoológica, especificamente de espécies anfíbias brasileiras, sendo uma amante dos sapos. Descobriu, entre outras, a Liolaremus Lutzae (lagartixa de praia), várias Hylas, entre as quais H.Squalirostris, e Perpusilla.
Escreveu: Estudos sobre a biologia floral da Mangífera Índica L., Wild life in Brazil, A nacionalidade da mulher casada, Estatuto da Mulher, entre outros.
Faleceu no Rio de Janeiro em 16 de setembro de 1976.
Texto Adaptado do verbete contido no Dicionário Mulheres do Brasil por: Ana Laura Becker, Elaine Gomes e Schuma Schumaher.
REFERÊNCIAS
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