Joanna Burigo
Publicado originalmente em Carta Capital – 20 de abril de 2016https://www.cartacapital.com.br/opiniao/em-meio-a-crise-o-patriarcado-contra-ataca/
O termo realpolitik refere-se à política feita a partir de considerações práticas em detrimento de noções ideológicas, mas o termo é comumente utilizado de forma pejorativa para indicar políticas coercitivas, imorais ou maquiavélicas.
Proponho um desdobramento do conceito para aplicação no nosso atual cenário político: vivemos a era da surrealpolitik, na qual democracia é o que se quer ainda que alguns dos caminhos para chegar nela sejam antidemocráticos, que as famílias dos parlamentares apa apareçam como justificativa para votar a favor de um novo governo feito pelo povo, e que uma cusparada dirigida a um defensor declarado da ditadura cause mais ultraje do que seu discurso…
A maior parte da representatividade política global é marcada maciçamente pelo gênero, classe e cor dos candidatos e representantes eleitos. Até aí, nenhuma novidade, e no Brasil a configuração não é diferente: no poder, a maioria é de homens brancos e ricos.
Sabe como as feministas chamam o paradigma que normaliza que instituições de poder sejam regidas por homens? Patriarcado. É o patriarcado que o feminismo denuncia, expõe, critica, resiste, e contra o qual luta.
Frequentemente a palavra “patriarcado” vem seguida de outras palavras, como “heteronormativo” e “branco”. Esta tríade sintetiza um conjunto de estruturas institucionais que organiza nossa sociedade, e que tem outros eixos. Mas o patriarcado heteronormativo branco existe, e é incontestável: basta observar os corpos e discursos de quem ocupa o maior número de assentos nos cargos mais altos de poder político, econômico, simbólico e social.
O feminismo aponta os ritos do patriarcado como quer que eles se manifestem, e a votação acerca da abertura do processo de impedimento de Dilma Rousseff que ocorreu na Câmara no domingo 17/04/2016 foi indubitavelmente patriarcal.
Na sessão, uma maioria esmagadora de homens brancos, ricos e (ao menos declaradamente) heterossexuais, ofereceu seu sim a um novo governo do povo com discursos contraditoriamente individualistas. Pela minha família, por deus, pelos meus. Pela mesma coisa de sempre. Pelo que é meu.
A proporção de homens e mulheres na sessão, aliada aos valores explicitados nas justificativas, acabou por nos oferecer o espetáculo da transmissão do patriarcado, ao vivo e em rede nacional. E quem assistiu viu: foi mimimi puro. Quanta ironia.
Um dos deputados chegou a declarar o seguinte: “Para me reencontrar com a História, voto sim”. Esta fala é muito significativa quando o presidente é uma presidenta. Com o que, exatamente, este senhor quer se reencontrar?
E aquele outro deputado, também branco e muito rico cujos filhos ocupam um sem-fim de cargos políticos, que dedicou seu sim ao golpe de 1964? A cusparada entre homens vira novela de meme e debate do dia. Surrealpolitik patriarcal.
Se o que está se desenvolvendo vai ficar marcado na história como golpe, com dor ou alívio logo ficará certo. Mas um golpe já é certo: este, mais um dos que recebemos do patriarcado heteronormativo branco. O “tchau, querida” é extensivo a todas nós.
Além dos horrores misóginos, racistas, homofóbicos e fascistas que compuseram uma parte muito significativa dos discursos do sim durante a votação, uma profusão de memes jocosos sobre o que acontecia na noite invadiu as redes durante a sessão.
O meme é a linguagem por excelência das redes sociais, um favorito da internet. Memes são especialmente bons no Brasil, onde fazemos chacota e deboche de tudo, e rapidamente. O compartilhamento de memes durante a votação própria não surpreende, mas dado seus conteúdos e o que ocorria, revelaram-se a falta de atenção e o peso seletivo que se dá para discursos de ódio.
A maior parte da produção feminista sobre política foca em atos e falas misóginas, no poder de significação das palavras, e em alertas sobre discursos de ódio e o que acontece quando eles se materializam.
Expomos, por coerência, ataques misóginos direcionados a todas as mulheres. Rousseff vem sendo alvo constante de ataques misóginos de toda sorte, mas esta semana mesmo – que semana – saiu uma matéria na revista Veja sobre Marcela Temer, enaltecendo-a amplamente por ser “bela, recatada e do lar”.
Ela é bela, talvez recato seja seu estilo, e do lar, bom, é elogio, mas isso não é sobre ela, e sim sobre marcar quais são os espaços onde as boas mulheres pertencem.
Demonstração da permanência do machismo institucionalizado nos meios de comunicação, que elogiam mulheres com adjetivos que denotam subserviência aos valores do patriarcado. Haja #greloduro.
Mulheres não têm equidade política, social e econômica, e coisas como a violência material e simbólica de gênero, ou as barreiras institucionais à nossa autonomia corporal, são formas de manutenção do paradigma patriarcal.
Patriarcado é o sistema, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus atos. Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encontramos evidências de todos.
A concepção de Deus e família invocada na votação, por exemplo, existe no feminismo, e existe lutando para não servir de bandeira para promoção da violência nem manta que a acoberte. Feministas: exposição do patriarcado, sempre de dentro dele, analisando todos os seus códigos.
A conclusão é que a opressão das mulheres é, apesar das diferenças materiais e simbólicas entre culturas, uma constante.
Imagino que muitos dos que creem que a saída de Rousseff seja o melhor para o País tenham se envergonhado com o que assistiram. A comemoração efusiva do resultado adicionou mais uma camada de surrealismo à nossa política. Visto o que vimos, não parece haver o que celebrar.
Mas venha o que vier, de nossa parte é garantido: seguiremos falando e denunciando, como fazemos há tempo. Seguiremos expondo o patriarcado, sua linguagem, seus códigos, seus instrumentos de propaganda, seus métodos, e suas consequências, apesar de apesar de quaisquer binarismos ou surrealpolitik que nos atravesse.
Falamos já há muito, com experiência, dados, estudos e textões sem fim, sobre as causas e consequências graves que os horrores da seara do simbólico têm quando a materialidade de seus discursos se expressa na violência brutal contra corpos que dissentem.
Falamos. Falar é um modo de resistir. Hesito em finalizar o texto com isso, mas dada a surrealpolitik patriarcal, não custa torcer para que seja possível poder continuar falando livremente.
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